RETRATOS, IMAGENS, SÍNTESE DOS EFEITOS DA CRISE DA ZONA EURO SOBRE CADA PAÍS

Selecção, tradução e nota introdutória por Júlio Marques Mota

UMA HISTÓRIA SOBRE LONDRES, SOBRE A GENTE NORMAL, SOBRE A GENTE BEM ESPECIAL

Nicholas Shaxson

Vanity Fair

Abril de 2013

Disponível em http://www.vanityfair.com/society/2013/04/mysterious-residents-one-hyde-park-london

PARTE III
(CONTINUAÇÃO)

London Calling[1]

Trevor Abrahmsohn, um agente imobiliário do Reino Unido, lembra-se de Londres antes de ter começado o crescimento da propriedade moderna. “Londres foi como Paris é hoje: uma cidade interessante, peculiar, uma cidade de lembranças. “Tínhamos a Torre de Londres, a rainha, o palácio e a mudança da guarda, diz-nos ele, acrescentando ainda, tínhamos o whisky escocês como uma reflexão tardia. “Isso é o que nós éramos. Londres não era um paraíso fiscal.”

Começando na década de 1960, os novos compradores começaram por incendiar o mercado: a crise da monarquia grega trouxe um afluxo significativo de gregos, bolsos que hoje endureceram. Em seguida, veio a primeira onda de americanos, uns banqueiros atraídos pelos euro-mercados desregulamentados e uns compradores da costa oeste, muitas vezes de Hollywood. “Eles pareciam enxames aqui, em Londres, lembra-se um veterano corretor de imóveis de Londres, Andrew Langton, da firma Aylesford internacional. “Eles transformaram Chester Square em Little Los Angeles e equiparam todas essas propriedades, à custa de enormes volumes de despesa, com chuveiros, banheiros e cozinhas americanas”.

A crise do petróleo da OPEP, da década de 1970, acendeu a grande fogueira neste mercado. O dinheiro árabe subiu no chamado triângulo dourado de Knightsbridge, Belgravia e nas proximidades de Mayfair, a comprar propriedades de topo de gama. Os agentes imobiliários recordá-lo-ão como uma onda na maré: “Eles vieram em força,” diz Hersham. “Quando queriam comprar, não havia histeria ou reticência.” A queda do Xá do Irão trouxe uma onda de dinheiro iraniano, seguida depois por compradores da maior ex-colónia africana, rica em petróleo, a recém Nigéria.

O mercado fez uma pausa para respirar um pouco melhor na década de 1980, com a economia da Grã-Bretanha em crise e com a descida mundial dos preços do petróleo a minar a procura dos compradores estrangeiros ricos. Mas as reformas financeiras de Margaret Thatcher, nomeadamente o “Big Bang” da desregulamentação financeira selvagem do velho oeste, em 1986, provocaram o afluxo dos banqueiros e de tal modo a transformar-se num rio, e depois num dilúvio. “Esperar por aqueles emails terminados em ‘gs.com’ e a transformarem-se em rolling in”, lembra-se Jeremy Davidson, um consultor de propriedade com base em Belgravia. “Goldman [Sachs] partners, Morgan [Stanley] partners: eles eram o topo do mercado, e tivemos muitos deles.”

A queda da União Soviética, em 1989 e as vastas e corruptas privatizações pós-união soviética, trouxeram uma onda ainda maior, a mais imprudente onda de estrangeiros compradores que Londres já alguma vez tinha visto, com dinheiro, muitas vezes de origem questionável e escondido via paraísos fiscais secretos britânicos- como Chipre e Gibraltar. “Não há nenhuma verdadeira responsabilização desses sujeitos a entrarem — a polícia realmente não os investiga,” diz Mark Hollingsworth, co-autor de Londongrad, um livro de 2009, sobre a invasão russa. “Eles vêem a capital como o lugar mais seguro, mais justo, mais honesto para colocarem o seu dinheiro, e os juízes aqui nunca iriam extraditá-los.”

O próprio Nick Candy resumiu as atracções de forma clara: “Esta é a cidade top do mundo e Londres é o melhor paraíso fiscal do mundo para alguns.”

“Parece que cada grande desastre comercial no mundo é um desastre que acontece em Londres” observa o congressista dos Estados Unidos Carolyn Maloney em Junho passado. “E sinceramente eu gostaria de saber o porquê desta estranha coincidência.” As catástrofes a que se estava a referir são como a que levou à falência do Lehman Brothers e quase levou à falência outras empresas americanas, tais como A.I.G e MF Global[2], bem como a catástrofe que provocou perdas de US $6 mil milhões no JPMorgan Chase, pelas mãos do trader popularmente conhecido como “a baleia de Londres” — todos esses desastres aconteceram na sua maior parte nos ramos daquelas empresas a trabalhar em Londres e que custaram milhares de milhões de dólares ao contribuinte americano.

Para responder a sua pergunta e entender porque é que há tanto dinheiro vindo de todo o mundo para se alojar em primeiro lugar na City de Londres, é então preciso voltar a centenas de anos atrás, voltar à altura do aparecimento do que deve ser o mais peculiar, o mais velho, o menos compreendido e talvez seja uma das mais importantes instituições no jardim zoológico das finanças globais: a City of London Corporation. É a autoridade local para o espaço chamado “The Square Mile,” a bolsa do primeiro centro financeiro sobre o imobiliário centrado sobre o banco da Inglaterra e localizado a cerca de três milhas a leste de Knightsbridge, ao longo do Rio Tamisa. Mas a Corporation é também muito mais, a sua identidade está integrada e— e um pouco à parte — no estado-nação britânico. A corporação tem sua própria constituição, “enraizada nos antigos direitos e privilégios dos cidadãos antes da conquista normanda, em 1066,” e tem o seu próprio lord mayor de Londres — não deve ser confundido com o prefeito de Londres, que dirige a metrópole da grande Londres, com os seus 8 milhões de habitantes. Um sinal de identidade que bem a distingue da cidade de Londres é o facto de que a rainha, em visitas oficiais à Square Mills tenha de parar no limite da Square Mile, onde ela é recebida, e esperar pelo Lord Mayor que a envolve num ritual curto, colorido, antes que esta possa prosseguir. A maioria dos britânicos vê isto simplesmente como uma relíquia de uma época passada, uma espécie de espectáculo para os turistas. Os britânicos estão então errados.

O principal papel do Lord Major diz-nos o seu site na Internet é o de ser “embaixador de todos os serviços financeiros e profissionais com sede no Reino Unido.” Ele faz lóbi com Organismos situados em Bruxelas, China e Índia, entre outros lugares, o melhor para “expor os valores da liberalização”, mesmo que seja em sítios muito longínquos. A City Corporation está estreitamente ligada a centros de reflexão e de pressão, os think tanks, que publicam muitas publicações a explicarem porque é que as Finanças devem estar menos pressionadas pelos impostos e pela regulação. A Corporation também tem o seu próprio lobista oficial, com o nome de sonoridade medieval agradável ao ouvido The Remembrancer (atualmente um Paul Double), que está alojado permanentemente no Parlamento da Grã-Bretanha [Nota de tradução, Este originalmente tinha como função lembrar ao rei a dívida para com a City]. As eleições locais na City são diferentes de quaisquer outras na Grã-Bretanha: as grandes empresas multinacionais votam também e claramente ultrapassam o pequeno número dos 7.400 moradores na City.

Ao longo dos séculos a City prosperou, graças a uma simples vantagem: teve dinheiro para emprestar quando os governos ou os monarcas precisavam. Assim, à City foram-lhe concedidos privilégios especiais, permitindo-lhe manter-se como um fortaleza política e resistir às marés da história que transformou o resto do estado-nação britânico. Tem-se assim alimentado uma tradição britânica de ser muito boa acolhedora do dinheiro estrangeiro, a não fazer muitas perguntas, e então tem assim e desde há séculos atraído os cidadãos mais ricos do mundo. “Estão cá o judeu, o cristão e o maometano, todos a negociarem com todos” Voltaire escreveu em 1733, “como se eles todos professassem a mesma religião e só dessem o nome de infiel aos que entrassem em bancarrota. “

Quando o Império britânico se desintegrou em meados da década de 1950, Londres substituiu o abraço acolhedor das canhoneiras e da imperial preferência comercial com um novo modelo de negociação: tentar captar o dinheiro quente do mundo através de regulações laxistas e de um quadro legislativo bastante ligeiro. Havia sempre um equilíbrio subtil, envolvendo um confiável alicerce jurídico britânico que defendia fortemente a aplicação das leis e os regulamentos internos do país enquanto fazia vista grossa às violações sobre as leis estrangeiras. Era um clássico-paraíso fiscal offshore – que se oferecia aos financeiros estrangeiros da seguinte forma: ” Nós não roubaremos o seu dinheiro, mas também não faremos grande alarido se o roubar a outras pessoas.”

O termo “paraíso fiscal” é qualquer coisa de impróprio, porque paraísos fiscais significa oferecer rotas de fuga, não apenas aos impostos, mas potencialmente a todo e qualquer não cumprimento de regras, leis e responsabilidades de outras jurisdições — quer se trate de impostos, leis penais, as regras de apresentação de contas, ou incumprimento sobre regulamentos financeiros. A expressão Paraísos fiscais é geralmente ligada a como colocar o dinheiro em “algures”, geralmente em jurisdições como as Ilhas Cayman, fora do alcance dos reguladores e das finanças do respectivo país de origem. Ou então coloca o dinheiro em Londres: e é por isso que alguns banqueiros de investimento lhe têm chamado a Baía de Guantánamo das finanças. “Os britânicos pensam que eles se financiam de modo bem legal” diz Lee Sheppard, um fiscalista e especialista bancário na publicação comercial americana Tax Analysts. “Não. Bem, eles fazem as coisas legais. A maioria dos grandes bancos de investimentos situados na City são ramos de operações exteriores de bancos com sede noutros países…. Eles vão para a City porque aqui não há mesmo nenhuma regulação, qualquer que ela seja, [logo, onde quase tudo é legal].”

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[1] London Calling é o nome de uma canção pertencente ao álbum com o mesmo de nome dos The Clash, editado em 1979 (ver http://en.wikipedia.org/wiki/London_Calling)  e aqui está uma tradução brasileira desta letra  http://www.vagalume.com.br/the-clash/london-calling-traducao.html

[2] Nota de Tradução: Já depois de publicado o artigo em Vanity Fair, MF Global faliu.

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Para ler a Parte II deste texto de Nicholas Shaxson, publicada ontem em A Viagem dos Argonautas, vá a:

RETRATOS, IMAGENS, SÍNTESE DOS EFEITOS DA CRISE DA ZONA EURO SOBRE CADA PAÍS

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