A GALIZA COMO TAREFA –Tempos- por Ernesto V. Sousa

tempos

Os tempos são chegados
Dos bardos das idades
Qu’as vossas vaguidades
Cumprido fim terão.

Podemos escutar estes versos, quase no final do hino galego, naquela letra preciosa, intensa e não pouco críptica de Eduardo Pondal, que tão bem acompassa a música de Pasqual Veiga. Como sabemos pelas crónicas, os sermões, os ensaios, as reportagens, ou as redes sociais, em realidade, os tempos – catástrofes ou grandes sonhos – sempre estão chegando.

Poderia dizer-se, sem ir além do tópico, que na Galiza a ideia de passado predomina, como a humidade, no ambiente, e que a resistência ou a prudência da gente perante mudanças não bem ensaiadas, é também parte da paisagem conhecida.

Se as práticas, e a vida, como a paisagem e os ritmos, foram mudando com a tecnologia e a modernidade no último século e meio, em constante e desapiedada aceleração, não é menos certo que com elas mudaram também as comunidades, as práticas de trabalho, consumo, gasto e ócio, as referencias, as necessidades, o relacionamento e o sucesso; e daí transformaram-se também as imagens que elaboramos de nós próprios, da nossa sociedade, do presente e da nossa história.

Mudou ligeiro o mundo, e mudaram valores e a importância que se dava a umas cousas e a outras novidades, mas não tanto mudou a interpretação do mundo. Na linguagem, nas metáforas, nos ditos, na narrativa, nos conselhos, na base da prática explicada e na imaginação conservam-se ainda as referencias e advertências codificadas e próprias de centos, talvez milheiros de anos de experiência.

Talvez por isso, a meio caminho entre a desconfiança do que parece ser, a vaga lembrança do que já foi e isso de ir preparando o que vier que na Galiza muitos somos quem de enxergar futuros, mesmo para além da moderna ideia de progresso e da desfeita [gal. ruína].

A associação Véspera de nada publicou com apoio de muita gente, entre dezembro de 2013 e junho de 2014, as duas edições do Guía para o descenso enerxético, em que, sob capa de conselhos, instruções, ensaio teórico, narrativa e uma cuidadíssima estética da mão da ilustradora Antía Barba Mariño, apresenta-se um interessantíssimo cenário após petróleo, não apenas para imaginarmos uma Galiza esmorecente, após industrial e ancorada com as letras, as artes e a literatura, numa Arcádia folclórica, ou num resto sentimental de um passado arcaizante.

Movimentado e coordenado por Manuel Casal Lodeiro, há todo um programa e aviso para além do peak-oil. Uma Galiza que vai emergindo vital, cá e lá, pensada sem esse petróleo que não teve nem tem, que convidam a conscientizar-se como coletivo, a repensar e dar resposta, a construir, de baixo para cima, uma nova sociedade mais modesta, mais local, mais prática e mais comunitária; mais ciente dos seus recursos e potencialidades. Como bem apontou o Carlos Calvo; camuflada de manual prático, talvez seja o livro sobre transformação social mais ambicioso dos últimos tempos.

Não é preciso chegarmos a um cenário sem petróleo, para reagir. Chegaria com mirar os restos arqueológicos anteriores ao século IV para ver. Não se necessita enxergar mais longe do que hoje, ou dos conselhos das nossas avoas, para pensar uma Galiza futura e livre, melhor encaixada com o seu passado, com menos petróleo e mais sociedade, com menos dirigismo comercial e mais participação individual, com menos consumo e mais comunidade. Uma sociedade capaz de sobreviver mesmo ao colapso dos Estados, à ruína das urbes e ao abandono das grandes estradas e rotas comerciais. Não se necessita mais para agir, usufruir e ir revezando um património e identidade que encaixam utilitários e plenos de sentido em qualquer presente ou futuro.

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