LIVRO & LIVROS – UMA LEITURA DE “BAIRRO OCIDENTAL”, DE MANUEL ALEGRE – por Manuel Simões

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Imagem3A produção poética de Manuel Alegre é por demais conhecida desde que publicou, há cinquenta anos, o seu livro Praça da Canção (1965) que, de algum modo, surpreendeu a crítica pela síntese que a sua poesia evidenciava relativamente à grande tradição, sem excluir a poesia oral ou a veiculada pelo romanceiro popular. Basta pensar no grande número de composições intituladas romances, trovas e baladas, convocando, porém, temas contemporâneos, com a actualização histórica de um presente desamado, profeticamente evocado como “país de Abril”. A par disto, a colectânea representava, no contexto político-social daqueles anos (a ditadura vigilante e ferozmente repressiva), uma ousada intervenção que propunha um novo discurso relativamente ao cânone da poesia portuguesa na segunda metade do século XX.

            Vem isto a propósito da recente publicação de Bairro Ocidental, título que funciona, desde logo, como metáfora de um país concreto, de que implicitamente se faz aqui a representação histórica, actualizando os elementos referenciais num presente que perpassa por entre as dobras dos poemas: «somos do Sul e o saldo somos nós» (“Pátria minha”, p. 13). Ou como se insiste no poema que dá o título ao livro e cuja amplitude discursiva ultrapassa as fronteiras geográficas do país: «Não digas pátria: essa palavra está malvista/ proibida pelo Império Orçamental./ Eurogrupado: tu e os maus da fita/ filhos do Sul e do pecado original» (“Bairro ocidental”, p. 18). E a actualização volta a ser pungente no poema simbolicamente intitulado “Cassandra e a Troika”, com o sujeito a convocar temas que atingem o coração de um espaço marcado pelo sentido da perda e da soberania dividida: «tinha vindo [Cassandra] para avisar que a Troika/ é o novo cavalo falso dentro da cidade/ os seguranças rodearam-na mas ela falava/ seus longos cabelos soltos sob o sol de Lisboa/ clamava justiça e dignidade» (p. 15).

            Há aqui uma incidência, ao mesmo tempo de invenção e memória, dado que o Autor, como homem do seu tempo, pretende recuperar a História para a sua proposta poética, dando seguimento ao programa de toda a sua obra (13 livros de poesia, para além de romances e contos) e cujo texto exemplar é talvez a colectânea Atlântico (1981) com os seus onze sonetos do “português errante” e outros poemas de fundo e fundamento épico, alicerçados como estão na ressemantização de temas que afloram os grandes mitos nacionais. No livro agora em análise, e reiterando os pressupostos de uma exegese do “bairro ocidental”, o poeta justifica a sua incursão pelos meandros da História, recusando a hipótese de esta não poder ser objecto de tratamento poético: [A História] Entrou na pele e ficou lá. Como ser/ neutro inespacial intransitivo? […] manchou de guerra a virgem literatura […] a História entrou no poema e não tem cura» (“E de súbito a História”, p. 45).

            O novo livro recupera algumas das isotopias recorrentes em toda a obra de Manuel Alegre, para além dos estilemas reconhecíveis, e que fazem parte da sua bagagem poética. Vejam-se, por exemplo, os frequentes oxímoros e expressões como «pegar no poema e disparar» (“Arte de pontaria”, p. 12), que remete para o «poema como arma» de O Canto e as Armas (1967); «o não dentro do sim» (“Pátria minha”, p. 13) onde ecoa «Tempo de não tempo de sim», da mesma colectânea, ou «Abril de sim Abril de não» (Atlântico, 1981), tudo casos que testemunham a intratextualidade como traço de união a ligar globalmente os diversos textos do Autor. Neste aspecto assinale-se ainda o modo de representar o fluxo temporal através de fórmulas identificáveis com a sua poética («escrita/ canto a canto»; «noite a noite galoparam»; «pétala a pétala a desfolho», por exemplo), outras tantas invariantes num processo escritural que privilegia a longa melodia da memória. Daí a nostalgia, como ferida insanável, que se inscreve nestes poemas («já não há nautas para as ondas bravas/ nem fogo nem revolta nas palavras», “Hora inversa”, p. 19), quase um paradoxo para acentuar a condição do «desconcerto do mundo», que é, no fim de contas, a isotopia dominante desta colectânea.

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