Crenças e fundamentalismos – por Carlos Loures

A propósito de uns artigos que publiquei sobre as raízes do fundamentalismo islâmico, recebi uma série de mensagens. Nenhuma delas ameaçadora, esclareço desde já, até porque era gente minha conhecida, amigos, quase todos. Dois ou três deles enviaram-me fotos, que já conhecia,de uma manifestação em Londres onde muçulmanos exibem cartazes com frases de um profundo radicalismo. Não sei se as fotos são autênticas ou fruto de habilidades e, por isso, não as reproduzi. As mensagens vinham sobretudo de cristãos censurando a justificação que dou para o terrorismo. Mas houve também  um (islâmico?), descontente com o que digo dos clérigos muçulmanos. Houve ainda dois comentários anónimos no blogue, estes de um anti-islamismo muito primário.  De facto, é uma matéria em que não consigo agradar a nenhuma confissão. E nem sequer abordaria tal tema, não fossem as profundas ligações entre as crenças no Além e o que se passa no mundo real.

 

Foi Carl Sagan que disse não ser possível «convencer um crente de coisa alguma, pois as crenças não se baseiam em evidências, mas sim numa profunda necessidade de acreditar». Só recentemente li esta frase de Sagan, mas nunca tentei demover ninguém da sua crença. Até porque acreditar que há um ser que olha por nós deve ser reconfortante. Quem, como eu, não acredita em nenhum deus não deve sequer tentar retirar esse bem seja a quem for. Que fique claro – não faço proselitismo do ateísmo. É produto de consumo interno.

 

A minha relação com a Igreja Católica foi conflituosa. Lisboeta, nascido em plena Baixa, a minha avó tinha casa no Banzão e deve ter sido por isso que foi em Colares que me baptizaram. Os meus pais eram católicos não praticantes – missas só as dos principais sacramentos. Em todo o caso, rodeado como estava de gente, mais ou menos, crente, não consigo compreender por que razão nunca acreditei que pudesse haver um ser que tudo controlasse. Fazia perguntas incómodas que despertavam risos e às vezes irritações.

 

Em dada altura fui para a catequese. Uma dúzia de miúdos e miúdas entre os seis e os dez anos talvez. Era enfadonho, a sala contígua á sacristia cheirava mal a rosmaninho apodrecido e tinha umas vitrinas com paramentos ou lá o que era aquilo. Um tormento. O padre não seria velho, embora a mim me parecesse um sobrevivente do Dilúvio.

 

Um dia, insistiu na Santíssima Trindade e tantas voltas deu que, embora embirrando comigo desde o primeiro dia, me fez uma pergunta. Eu com aquela queda que conservo para fazer humor às vezes a despropósito debitei uma graça que tinha ouvido não me lembro onde (mas não a inventei) e em vez de responder à pergunta, perguntei se o Espírito Santo era o mesmo que jogava no Benfica. Havia um grande jogador chamado Guilherme Espírito Santo. Havia e há, pois ainda está vivo. A miudagem desatou a rir, o meu objectivo estava alcançado.

 

 Mas o padre não achou graça, ficou corado levantou-se e, pensei, «vou levar uma chapada». Depois reconsiderou, deu meia volta, sentou-se, mas não me dirigiu mais a palavra. Quando a minha mãe me foi buscar, houve uma longa conversa. Minha mãe não me falou durante o caminho até casa. Quando o meu pai chegou, contou-lhe. Lembro-me de o ver de costas para mim, estremecer os ombros. Estava a rir-se. «Estou safo». Mas lá arranjou maneira de compor uma expressão severa e de me passar um raspanete. Mas o crime pareceu compensar e fiquei livre da catequese. Isto foi no Verão.

 

Passados meses a minha avó, uma grande amiga, morreu, e no princípio do Outono foi-me diagnosticada uma pleurisia. Pensei que o tal ser ou não existia, ou era mau e vingativo e, portanto, não merecia consideração e muito menos orações.

 

Quando tinha quase catorze anos nasceu a minha irmã e os meus pais quiseram que eu fosse padrinho de baptismo. O padre era o mesmo, mas não se lembrou de mim. E lá me obrigou, dado que não tinha feito a comunhão, a frequentar a catequese. Dei a volta por cima – a sacristia continuava a cheirar mal e aleguei incompatibilidade com os horários escolares. Comprometi-me a decorar o livrinho e assim foi. Um fim de tarde lá fui com a minha mãe, papagueei tudo o que o homem perguntou e arranquei-lhe um sorriso de agrado.

 

Quando casei a minha mulher ainda era menor e a minha futura sogra quis exigir-me o casamento religioso. Recusei sem lhe dar hipótese – ou era só o casamento civil ou esperávamos pela maioridade. O negócio não estava acabado. Contra minha vontade, impôs o vestido de noiva – Cedi, com uma condição – eu não aparecia em nenhuma fotografia. E assim foi – há dezenas de fotografias da minha mulher e nenhuma minha. Há pouco tempo, trabalhando com o José Ferraz Diogo na biografia de Manuel Rodrigues Lapa, tive a surpresa de saber que assumira, muitos anos antes de mim, posição idêntica.

 

Numerosos amigos meus são católicos praticantes. Amigos como o António Cabral, sacerdote católico quando o conheci ou como o José Guilherme, de Tomar, do qual fui sócio numa livraria. Grandes amigos. A instituição é odiosa. E para que não fiquem dúvidas – detesto a Igreja Luterana, a Anglicana … O Islamismo é igualmente detestável, sobretudo quando é defendido por aqueles clérigos que cospem ódio por todos os poros. O Hebraísmo idem, pois é o culpado de tudo, – foi sobre o Antigo Testamento ou Torah que se decalcaram as demais crenças, tem ainda o ónus, a meu ver, de ser suporte moral do imoral e miserável sionismo. Enfim, seja sob que disfarce me apareça o grande Manitu, para mim vem de carrinho.

 

E mais uma vez cito o Carl Sagan: «A ideia de que Deus é um gigante barbudo de pele branca sentado no céu é ridícula. Mas se, com esse conceito, se pretende referir um conjunto de leis físicas que regem o Universo, então claramente existe um Deus. Só que é emocionalmente frustrante: afinal, não faz muito sentido rezar uma oração à lei da gravidade!”

 

Boa Carl!

5 Comments

  1. Muito obrigado pelos vossos comentários. Publiquei este texto para esclarecer os que me acusavam, explícita ou implicitamente, de defender o islamismo ou de o atacar – não defendo nem uma coisa nem outra. Defendo a tolerância e ataco o fundamentalismo e os integrismos – venham de que lado vierem. Porém, além de factores de natureza religiosa, existem outros que nada têm a ver com o mundo espiritual – interesses económicos e a protecção que os Estados Unidos e a União Europeia mantêm relativamente a Israel. A destruição de Israel, seria corrigir um erro histórico com uma monstruosidade. No entanto, permitir que os israelitas assassinem impunemente palestinianos é inaceitável e, a meu ver, juntamente com outras prepotências colonialistas e com agressões a países islâmicos, constitui o principal motivo para o integrismo islâmico e para o terrorismo . Agradeço-vos o terem lido este esclarecimento.

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