OS HOMENS DO REI – 34 – por José Brandão

D. MANUEL I (reinou de 1495 a 1521)

 

 

 

 

D. Manuel I foi o sucessor de D. João II por ter morrido desastrosamente, da queda dum cavalo, o príncipe D. Afonso, filho do monarca. O próprio cunhado e primo, D. João II, lhe prometera o trono, logo após ter apunhalado seu irmão, o duque de Viseu, nos Paços de Setúbal. Mandara-o chamar e, quando o moço D. Manuel, de 15 anos, acompanhado pelo aio, se lhe apresentou a tremer de medo, disse-lhe o rei que lhe matara o irmão, porque ele o queria assassinar, na conspiração que contra o monarca moviam ele, duque de Viseu, o duque de Bragança, justiçado em Évora, e o bispo de Évora, que morreu no Castelo de Palmela, afogado num poço.

 

A ele, D. Manuel, tão jovem, amava-o como a um filho e não havendo outro filho seria ele o seu sucessor. D. Manuel ajoelhou, tranquilo, e beijou sem mais palavras as mãos do soberano, ainda tintas do sangue do irmão. Fê-lo ainda o rei mais tarde Condestável do Reino e fronteiro-mor de Entre-Tejo-e-Guadiana. Começa aí a série de venturas que mereceram a D. Manuel o título de Venturoso.

 

O próprio assassínio do irmão implicava que, além do trono, herdava, em volta de seus degraus, uma nobreza tornada dócil, sem resistência aos desmandos que pudesse cometer. Mas a herança de maior vulto eram os impulsos já dados e as condições já preparadas para as realizações que constituem a grande glória do seu reinado e o fulgor deslumbrante da sua Corte. Diz o seu cronista, Damião de Góis, que se não furtava ao trabalho. Sistematicamente, qualquer que fosse a hora a que se deitasse, o sol, quando despontava, já o encontrava à mesa e lhe iluminava a papelada a despachar.

 

E muito havia a fazer quanto à organização interna. As «Ordenações Afonsinas» estavam antiquadas; houve necessidade de as actualizar nas «Ordenações Manuelinas». À sua politica externa não se pode negar prudência e habilidade. Recusou-se a participar nos vários e graves conflitos em que as nações da Europa andavam envolvidas, e para os quais foi solicitado, ficando sempre de bem com ambas as partes litigantes. D. Manuel pensa no mar, mas não descura os problemas em terra. Vê-se a braços com o problema dos judeus que, expulsos de Espanha, se tinham refugiado em Portugal. Pressionado pela mulher, que era filha dos reis Católicos, impõe aos judeus ou a conversão ao catolicismo ou a expulsão do país.

 

É sabido que o casamento do príncipe D. Afonso com D. Isabel, herdeira do trono de Espanha, fizera sonhar a D. João II com a união dos dois reinos da Península, sob hegemonia portuguesa. Todo o engenho de D. Manuel foi ser igualmente herdeiro dessa possibilidade, e daí o seu interesse em desposar a viúva do malogrado príncipe D. Afonso. Aceitou ela a proposta, mas com uma condição: a expulsão de Portugal de todos os judeus que não aceitassem o baptismo. D. Manuel não fez a mínima objecção à condição posta. Tudo menos a perda da possibilidade de ver ligadas uma à outra as duas coroas da Península.

 

Deu-se prazo aos judeus para a saída de Portugal. Mas eles eram necessários à economia da Nação. Remédio: ordenar-lhes a saída, mas faltar-lhes com os navios de transporte e impor-lhes, pois, o baptismo por terem ficado. Os filhos menores de 17 anos – prazo que depois se dilatou por mais três anos – esses já anteriormente haviam sido arrancados aos pais para receber o baptismo, o que provocou horrorosos desvarios, que chegaram, em certos casos, à morte das crianças pelos próprios pais.

 

Em Cortes, tanto como nos livros assinados por homens como D. Jerónimo Osório, bispo de Silves, ou Damião de Góis, na própria Crónica de el-rei D. Manuel, fica vivamente perceptível, apesar dos cuidados da censura, a reprovação da violência que provocou. Mas os judeus assim «convertidos» – os chamados cristãos novos – não foram apenas vítimas das monstruosas determinações da ambição régia. Em 1506, na igreja de S. Domingos, cheia de fiéis, uma imagem do altar pareceu iluminada de modo estranho que logo foi considerado milagre. Um cristão-novo tentou explicar o fenómeno pelo reflexo duma vela. «Heresia, heresia!» – bradaram os mais próximos; e logo a explosiva palavra ecoou, repetida por mil bocas, e dois dominicanos, de cruz alçada, a repetiram e fizeram ecoar das praças às betesgas. Uma desvairada sanha anti-semita se apoderou da multidão. Por toda a parte, durante três dias, se desencadeou a carnificina, pela associação sinistra dos fanatismos desumanos, das vinganças, das cobiças insofridas em que também tomaram parte os marinheiros de barcos estrangeiros surtos no Tejo. D. Manuel andava fora de Lisboa, fugido à peste.

 

De Setúbal, logo que informado, mandou ordens rigorosas para castigo dos mais responsáveis. Cinquenta tiveram pena capital, e a todos, estes e os restantes, além das penas corporais, foram-lhes confiscados os bens. O rei entendeu que, para crueldade, bastava a própria, tanto mais que a tais sevícias se haviam de seguir as da Inquisição, que poria toda a diligência em analisar e eliminar, pelo fogo, os desvios da fé violentamente imposta. Aclamado rei com vinte e seis anos, outros vinte e seis anos reinou em regime de puro absolutismo.

 

Foi o monarca português que mais esposas conheceu: três. Morta a segunda esposa, D. Manuel, ainda libidinoso, apaixona-se pelo retrato da fresca, jovem e virtuosa D. Leonor, filha de Filipe I, mas noiva do filho. O monarca teve o capricho de casar com D. Leonor, irmã de Carlos V e noiva prometida do príncipe D. João, filho do monarca venturoso, mais tarde o severo D. João III. Este amor entre D. Manuel e D. Leonor provocou grande sofrimento, pois o príncipe D. João nunca perdoou o acto deles. Apenas três anos durou esta terceira união de D. Manuel. Desgastado pelo peso dos anos morreu em 1521, desgostoso pelos laços mais profundos que iam unindo a mulher ao seu filho, o tal que esteve para ser marido.

 

Apesar de nenhum registo nos ter chegado de outras ligações ou de bastardos reais, não é de admirar que tenham existido, mesmo com tanta pujança demonstrada em número de matrimónios. Meses depois de nascida a última filha, morria o rei Venturoso, com 52 anos, em 1521, um dos mais poderosos da Europa. D. Manuel, nasceu em Alcochete, a 31 de Maio de 1469 e morreu em Lisboa, a 13 de Dezembro de 1521, tendo sido sepultado no Mosteiro dos Jerónimos obra fundamental da arquitectura manuelina. Duarte Galvão, Pedro Álvares Cabral, Francisco de Almeida e Afonso de Albuquerque e Vasco da Gama, foram homens do rei D. Manuel I.

 

Duarte Galvão (1435? -1517)

 

 

 

 

Diplomata e cronista do último quartel do século XV e primeiras décadas do século XVI era natural de Évora, filho de Rui Galvão, secretário de D. Afonso V, e irmão do bispo D. João Galvão. Casou com D. Catarina de Sousa, filha de Fernão de Sousa, alcaide-mor de Leiria, a quem pelo casamento sucedeu no cargo. Em 1460 nomeara-o D. Afonso V cronista do Reino, para, embora moço demais, substituir Fernão Lopes, falecido por essa época.

 

D. João II fez também de Duarte Galvão seu secretário, sem lhe ter incumbido cargos de especial relevo; mas D. Manuel, ao ascender ao trono, encarregou-o, como cronista do Reino, de escrever as crónicas dos primeiros reis da Monarquia, sobre elementos deixados por Fernão Lopes e de que, afinal, veio a aproveitar-se mais tarde Rui de Pina. A sua única obra de cronista, que ficaria na historiografia nacional, foi a «Crónica do muito alto e muito esclarecido príncipe D. Afonso Henriques», publicada só em 1728. Foi como diplomata de notável cultura que D. Manuel aproveitou os seus serviços, primeiramente enviando-o a Roma ao papa Alexandre VI, mais tarde ao imperador Maximiliano, da Alemanha, depois a Luís XII de França.

 

E, quando em 1514 veio a Lisboa um embaixador abexim, Mateus, com valiosos presentes a D. Manuel mandados pela imperatriz Helena da Abissínia, regente na menoridade do negus David, foi ainda Duarte Galvão, apesar da sua idade avançada, escolhido pelo rei para retribuir à imperatriz abexim a significativa embaixada. Em Abril de 1515 embarcou Duarte Galvão, acompanhado de frei Francisco Álvares, capelão do rei, na poderosa armada de treze naus de Lopo Soares de Albergaria, nomeado então novo governador da Índia para substituir no cargo o grande Afonso de Albuquerque. Esta embaixada vai chefiada por Duarte Galvão, figura de grande prestígio na corte, que já servira sob as ordens de D. Afonso V e D. João II, e que, com a sua pena ligeira, já fora o obreiro da versão messiânica e profética que acompanhava a monarquia portuguesa desde o reinado de D. Afonso Henriques. A sua expressão mais óbvia corporizava-se no milagre de Ourique, quando Cristo aparecera ao primeiro rei de Portugal antes da batalha.

 

Chegada à Índia, a poderosa esquadra, em Setembro, as graves dissenções e a anarquia militar que lavravam já entre os grandes capitães da Conquista, fizeram demorar Duarte Galvão em Goa, onde lhe nasceu então o filho António Galvão que viria a ser um dos mais ilustres vultos históricos dos fastos portugueses no Oriente, chamado o Apóstolo das Molucas. Só em 1517 conseguiu Duarte Galvão seguir de Goa para a Abissínia, e desempenhar-se da sua missão junto da imperatriz Helena.

 

Embarcado para o Norte de África noutra armada de Lopo Soares de Albergaria, destinada a dar batalha e destruir no Mar Vermelho uma esquadra turca, devia o embaixador desembarcar no porto de Zeila e seguir para a capital do soberano da Abissínia, não tendo chegado, porém, a desempenhar-se da missão, pois faleceu a bordo, no Mar Vermelho, em Junho de 1517. A batalha naval não se travou, porque a armada turca entretanto se dispersara. O ataúde de Duarte Galvão foi levado então para Goa, onde ficou provisoriamente sepultado, até que António Galvão, seu filho, no regresso ao Reino, cerca de 1550, pôde trazer os despojos mortais e depositá-los no convento de S. Francisco, em Lisboa. As crónicas de Duarte Galvão atribuem a Portugal uma missão providencial.

 

A seguir: Pedro Álvares Cabral

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