A aventura de dois esposos, por Italo Calvino. Tradução de Sílvio Castro

Esta tradução do argonauta Sílvio Castro do conto de Italo Calvino já tinha sido publicada no Estrolabio, a propósito dos 25 anos da morte do autor.

 

Um Café na Internet

 

 

 

 

 

O operário Artur Massolario fazia o turno da noite, aquele que acaba às seis da manhã. Para retornar à sua casa tinha diante de si um longo percurso, feito em bicicleta nas belas estações, com o bonde nos meses chuvosos e invernais. Ele chegava em casa entre as seis e quarenta e cinco e as sete, isto é, certas vezes um pouco antes, outras um pouco depois que tocasse o despertador da mulher, Élide.

As mais das vezes os dois rumores: o som do despertador e o seu passo que entrava se sobrepunham na mente de Élide, chegando-lhe em fundo ao sono, o sono compacto da manhã cedo que ela tentava de espremer ainda por alguns segundos com o rosto afundado no travesseiro. Depois se levantava de repente e logo enfiava sem olhar os braços no roupão, com os cabelos cobrindo-lhe os olhos. Assim ela aparecia diante dele na cozinha, enquanto Artur tirava para fora da bolsa os recipiente vazios que levava consigo para o trabalho: a marmita, a garrafa térmica, e os depositava na pia. Já tinha acendido o fogão e preparado tudo para fazer o café. Bastava que ele a mirasse, a Élide vinha o impulso de passar a mão sobre os cabelos, de arregalar os olhos, como se todas as vezes se envergonhasse um pouco por causa dessa primeira imagem que o marido tinha dela entrando em casa, ela sempre assim em desordem, com o rosto de semi-adormecida. Quando duas pessoas dormiram juntos é uma outra coisa, se acorda pela manhã, ambos a sair do mesmo sono, se é em empate.

Diversas vezes, pelo contrário, era ele que entrava no quarto para acordá-la, com a chícara de café, um minuto antes que o despertador tocasse; então tudo era natural, a cara que luta para sair do sono tomava uma espécie de doçura preguiçosa, os braços que se levantavam para estirar-se, desnudos, acabavam por envolver o pescoço dele. Abraçavam-se. Artur estava vestido com o casacão impermeável; sentindo-o próximo ela podia saber o tempo que fazia: se chovia, nevava ou caia a neblina, conforme o seu grau de humidade e de frio. Mas ainda assim lhe perguntava: como vai lá fora? – e então ele começava com o seu habitual resmungo meio irônico, descrevendo os inconvenientes porque tinha passado, começando pelo fim: o percurso em bicicleta, o tempo encontrado saindo da fábrica, diferente daquele da noite anterior, e os problemas do trabalho, os sussurros que corriam pelo seu setor, e assim por diante.

Naquela hora, a casa estava sempre pouco aquecida, mas Élide se tinha despido completamente, um pouco tremendo, e se lavava, no pequeno banheiro. Depois ele chegava, mais com calma, se desnudava e se lavava também ele, lentamente, liberava-se da poeira e do gordurento da oficina. Assim estando todos os dois em redor da mesma pia, meio nus, um pouco transidos de frio, vez em quando empurrando-se reciprocamente, roubando de mão a mão o sabonete, a pasta de dente, e continuando a dizer as coisas que queriam dizer-se, chegava o momento das confidências, e às vezes, por ventura ajudando-se a turno a esfregar as costas, se insinuava uma carícia, e se viam abraçados.

Mas, de repente, Élide: – Meu Deus! Que horas são? – e corria a meter-se as meias, a saia, tudo numa corrida, de pé, e com a escova que já passava alto e baixo pelos cabelos, e aproximava o rosto ao espelho da cômoda com os ganchos dos cabelos estreitos entre os lábios. Artur a seguia, tinha acendido um cigarro, e a fixava, em pé, fumando, e sempre parecia um pouco embaraçado por ter de estar ali sem nada poder fazer. Élide estava pronta, vestia depressa o capote no corredor, davam-se um beijo, abria a porta e logo se sentia que descia correndo pelas escadas.

Artur ficava sozinho. Seguia o rumor dos saltos dos sapatos de Élide abaixo pelos degraus, e quando não mais a sentia, mais a continuava a seguir com o pensamento, aquele trotear rápido pelo pátio, o portão, a calçada, até a parada do bonde. O bonde, o sentia bem, em verdade: ranger, parar, e o esbater do estrado cada vez que uma pessoa subia. “Ah! acabou de tomá-lo”, pensava, e via sua mulher agarrada a um suporte em meio à multidão de operários e operárias no “onze”, que a conduzia até a fábrica como em todos os dias. Apagava a ponta do cigarro, fechava as venezianas das janelas, criava a penumbra, ia para a cama.

A cama era como a tinha deixado Élide quando se levantara, mas do seu lado, aquele de Artur, era quase intacto, como se tivesse sido apenas refeito. Ele se deitava no próprio lado, do melhor jeito, mas depois alongava uma perna para lá, aonde tinha ficado o calor de sua mulher, depois se alongava também a outra perna, e dessa maneira, pouco a pouco, mudava completamente para o lado de Élide, um nicho di tepidez que ainda conservava a forma do corpo dela, e então afundava o rosto no seu travesseiro, no seu perfume, e depois caia no sono.

Quando Élide retornava, de noite, Artur desde muito girava pelos aposentos da casa: tinha acedido o aquecedor, preparado alguma coisa para cozinhar. Determinados trabalhos ele os fazia, naquelas horas antes do jantar, como refazer o leito, passar a escova de chão por um pouco, até mesmo preparar a água para a lavagem das roupas sujas. Élide, em seguida, achava que tudo tinha sido feito de mal-geito, tudo errado, mas ele, se se deve dizer a verdade, não se empenhava a fundo nessas coisas: o que ele fazia era uma espécie de ritual enquanto a esperava, quase um ir ao seu encontro, porém sempre permanecendo entre as paredes de casa, enquanto lá fora as luzes se acendiam e ela passava pelas lojas em meio àquela animação exagerada dos bairros nos quais existem muitas mulheres que fazem as compras no fim da tarde.

Em determinado momento sentia o passo pela escada, muito diferente daquele da manhã, agora lento, pesado, porque Élide subia cansada pelo jornada de trabalho e carregada de sacolas das compras. Artur saia para ir ao seu encontro, pegava as sacolas, entravam falando um com o outro. Ela se jogava em cima de uma cadeira da cozinha, sem tirar o capote, enquanto ele arrumava as coisas das compras. Depois: – Bem, vamos lá! – ela dizia, e se levantava, tirava o capote, se vestia com um vestido de casa. Começavam a preparar a comida: jantar para todos os dois, depois a merenda que ele levava para a fábrica para o intervalo de trabalho da uma da madrugada, o almoço que ela devia levar consigo amanhã para o trabalho e aquele que deveria já estar pronto para quando ele, no dia seguinte, se levantasse.

Ela, por um lado se dedicava a preparar as coisas, por outro se sentava na cadeira de palha e dizia a ele o que deveria fazer. Ele, pelo contrário, aquele era o momento em que mais se sentia repousado, se prodigava aqui e ali, em verdade gostaria de fazer tudo ele, mas sempre um pouco distraído, com a cabeça já ligada a outras coisas. Em tais momentos, às vezes, quase chegavam ao ponto de discutir, de dizer algumas coisas de ruim, porque ela gostaria de vê-lo mais atento a quanto fazia, que procurasse ser mais ativo, ou senão que fosse mais atento a ela, que lhe fosse mais próximo, lhe desse mais consolações. Pelo contrário, ele depois do primeiro entusiasmo porque ela chegara de volta, logo tinha a cabeça fora das coisas de casa, fixado no pensamento de apressar tudo porque tinha de ir embora.

Preparada a mesa, arrumadas todas as coisas de maneira que não se tivesse necessidade de levantar por nada, então chegava o momento da tristeza que a ambos acometia, porque nem um, nem o outro tinha mais tempo para estarem juntos, e então quase não conseguiam levar o garfo à boca, pela única vontade que tinham de estar ali como agora com as mãos unidas.

Mas, ainda não chegara ao café que ele já estava à procura da bicicleta e a verificar se tudo estava no lugar. Abraçavam-se. Artur somente então parecia compreender como era suave e tépida a sua mulher. Porém, metia às costas o cano da bicicleta e descia atento às escadas.

Élide lavava os pratos, refazia toda a casa, as coisas que o marido tinha feito, balançando a cabeça. Agora ele corria pelas ruas escuras, entre os raros faróis, talvez já ultrapassado o gazômetro. Élide se deitava, apagava a luz. Deitada na própria parte da cama, alongava um pouco um pé na direção do lado de seu marido, para procurar o calor dele, mas cada vez que o fazia compreendia que onde ela dormia era mais quente, sinal que também Artur ali tinha dormido, e por isso provava uma grande ternura.

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