CLEARSTREAM – A CÂMARA DE COMPENSAÇÃO INTERNACIONAL, por Rémy Gyger – II,

Selecção, tradução e introdução por Júlio Marques Mota

(continuação)

Os nossos governos igualmente muito interessados

Outro exemplo de utilização de Cedel ocorreu com o caso dos reféns da Embaixada dos Estados Unidos em Teerão. Devemos relembrar o contexto: as sondagens davam o Presidente em exercício, Jimmy Carter, lado a lado contra Ronald Reagan na corrida à Presidência. A libertação dos reféns antes do dia das eleições praticamente significava a reeleição do primeiro candidato, o Presidente em exercício. Reagan negociou calmamente com os aiatolas uma posterior libertação em troca de títulos e de armas para o Irão combater contra o Iraque. O envio dos títulos só poderia ser alcançado multiplicando os movimentos financeiros fraccionados e fazendo-os transitar através de países terceiros, para melhor os poder esconder . Foi assim que Backes foi agraciado com a ordem dos Bancos Centrais americano e Inglês por ter levantado 7 milhões de dólares de contas de dois grandes bancos privados, contas  situadas nos  paraísos fiscais e de os transferir para o Banco Nacional da Argélia, a desempenhar o papel de catalisador dos fundos destinados aos iranianos. Na ausência dos seus superiores e na impossibilidade de obter o acordo das contas a debitar, Backes transgride as regras e os reféns foram libertados no dia seguinte ..

Com este exemplo entre muitos outros, compreendemos qual  o interesse dos dirigentes dos Estados Membros para com os paraísos fiscais e para com as câmaras de compensação. Fora o custo do resgate, a venda de armas a países em guerra, as  comissões secretas de compensação de que beneficiam os políticos e os seus partidos, a transferência de tecnologia nuclear, tudo isto exige uma opacidade total.

Em 1988, é a vez do primeiro-ministro luxemburguês Jacques Santer, ir  procurar uma entrevista com Backes, poucos dias após a liquidação do Banco de Crédito e Comércio Internacional (B.C.C.I), em que a holding está instalada no Luxemburgo, com personalidades do Grão-Ducado nos diversos conselhos de administração das empresas pertencentes ao grupo. A clientela tinha um painel bem pródigo de ditadores e de traficantes de drogas. Na verdade, quando se deu a falência judicial do B.C.C.I., Backes vê assim como o N ° 1 do país está bem informado sobre as continuadas actividades ilegais deste banco. Face aos fracos resultados das comissões rogatórias, enviadas pelos Estados Unidos, o FBI contactou Backes que lhes redigiu um relatório de 250 páginas sobre o B.C.C.I. em  que se diz que  Cedel autorizou mais de um mês após a colocação do Banco sob sequestro a que fossem pagos 15 milhões de euros a um dos seus credores, enquanto muitas dezenas de milhares foram enganados.

Desde 1991, Cedel torna-se totalmente mafiosa

Em 1991, André Lussi foi nomeado para ficar à frente de Cedel. A sua reputação está manchada pelo seu passado de quadro da filial de União de Bancos Suíços, UBS, na Inglaterra em que aí se esteve em causa por envolvimento num caso de financiamento de entrega de armas para países do Oriente Médio sob embargo. Todos os policias encarregados da investigação foram transferidos sob pressões políticas antes de terem acabado a missão, mas um director foi forçado a renunciar. Lussi acentua as particularidades da Cedel: rotação ultra-rápida de enquadramento, estágios de gestão dirigidos por cientologistas, fraccionamento das actividades, segurança reforçada. O sentido das decisões escapa ao rigor da análise objectiva e é claro que a aplicação de uma estratégia planeada por aqueles que colocaram Lussi naquele posto: um Conselho de administração, cuja composição evolui muito pouco. É interessante notar que, durante o seu mandato à frente da Clearstream, André Lussi contou sempre  com o apoio sem qualquer concessão do seu antigo empregador e accionista importante na Câmara de Compensação., o banco UBS..

A gestão do pessoal faz-nos questionar: por um trabalho equivalente ao aplicado no Euroclear, um novato é pago 30% a mais e esta diferença aumenta com a hierarquia, a tal ponto que a relação seria de 1 a 5, ou ainda mais, a nível dos principais dirigentes. No entanto, os mesmos bancos detêm o poder em ambas as entidades; Como justificar então essa enorme diferença de remunerações… Graças às suas confidências, aos documentos que lhe apresentam, Backes detecta a deriva do sistema que ele ajudou a colocar em marcha: um circuito paralelo vive na sombra do circuito oficial, inclusive para cobrir operações que ligam Cedel aos habituais clientes dos bancos, agora em situação de curto-circuito, que a tinham criado. Os protestos têm sido abafados pela direcção, sob o pretexto de que as excepções vêm do mais alto nível do Estado. O Ministério do Tesouro de Luxemburgo tem ele próprio uma conta pela qual o mail e as mensagens transitam através deste portador e interlocutor exclusivo. A justificação das contas não publicadas numa base de simplificação para as casas-mãe  não tem nenhuma vantagem para o Banco de Inglaterra, por natureza desprovido  de qualquer filial e que é, contudo, um  forte consumidor de contas ausentes nas listas oficiais ..

O desenvolvimento de contas não publicadas por Cedel é tal que estas são quase tão numerosas quanto as oficiais: quase 2.000 em 1995, mais de 7.000 em 2000, anos para os quais os investigadores procuraram os microfilmes de ficheiro de arquivo. A proporção é quase tão importante em Euroclear, cujo Presidente admite que o seu interesse reside na dificuldade do acompanhamento de transacções que se deseja ocultar. O forte aumento no número de clientes de Cedel (2500 pertencentes a mais de 100 países em 2000) é o resultado da irrupção maciça dos países do leste e das filiais dos bancos europeus e americanos instalados nos paraísos fiscais, com estes últimos a contarem em média 5 contas não publicadas por cada conta oficial, por cada conta publicada.

Mas vejamos ainda mais um exemplo prático: estima-se em 15% do volume do PIB italiano o volume de negócios da máfia italiana. Dada a massa de notas que isso representa, estas notas são transportadas por caminhões que transportam de noite o dinheiro da Itália para o… Luxemburgo, onde pode ser investido sem perguntas incómodas. Um embaixador belga colocado no Grão-Ducado tinha enviado ao seu ministro responsável um relatório descrevendo os circuitos de branqueamento do dinheiro ganho com o crime, colocando em causa o Banco Continental do Luxemburgo, de que Alfred Sirven teve durante muito tempo 15% das acções e Paribas uma boa parte das restantes …

Desde 1996, esta firma mudou o seu estatuto. Além de ser uma câmara de compensação, Clearstream tornou-se também um banco. Não um banco com balcões para atendimento das pessoas, mas um banco um pouco especial reservado às “instituições financeiras” e “profissionais do sector financeiro. A definição destes “profissionais” é suficientemente vaga para que ai se misturem as “companhias financeiras” dos grandes grupos, as fiduciárias da Suiça, os bancos offshore, os corretores-traders de Taiwan … Cedel Bank, que se tornou então Clearstream Banking em 2000, será capaz de jogar habilmente com este estatuto  duplo do banco e de câmara de compensação . Num banco, de facto, a lógica ditaria que os números das contas e a identidade dos seus proprietários não sejam publicados. Mas isto não é de forma alguma o caso de uma Câmara de Compensação.

Conclusões

Depois de tais revelações, estamos pois capacitados para entender como é que o mecanismo de branqueamento generalizado é posto a funcionar. Também estamos confiantes de que os dirigentes dos nossos governos, os juízes encarregados dos controles, as polícias encarregadas das investigações financeiras e os jornalistas financeiros estejam perfeitamente conscientes desses crimes. Porque se persiste então? Primeiramente porque os meios financeiros usam e abusam da nossa preguiça para esta realidade querer compreender e porque eles bem beneficiam da complexidade das termos financeiros e da extensão dos conhecimentos que é necessário nós aprendermos para se poder compreender estas matérias, a sua matéria. Eles são uma casta, vêem-se como agentes superiormente informados, conectados no mercado global. Estes fazem das praças financeiras o teatro principal dos negócios do planeta.

Por outro lado, o benefício que os nossos governantes e partidos políticos pode tirar de um tal sistema explica porque é que eles nunca se comprometeram para acabar com estes tráficos e para lutarem contra o crime económico e contra a fraude fiscal.

Com estas revelações, é possível dizer que o sistema capitalista contém intrinsecamente o autoritarismo, o fascismo de características soft, de que nos fala Susan George. De facto, abandonando a criação monetária ao sector privado e suprimindo o controle sobre as actividades bancárias e a circulação de capital, do poder democrático nada mais resta que uma miragem de si-mesmo. É mesmo possível ir mais longe, sabendo que toda e qualquer actividade económica depende dos créditos concedidos , quer seja ao nível do Estado quer ao nível das empresas ou quer ainda ao nível dos simples cidadãos,  e dizermos  que ninguém está hoje em condições , sem uma tomada de conscientização de todos, de se poder opor ao sistema bancário ou até mesmo até de poder exigir uma qualquer supervisão.

O dever de associações como a Attac é o de promover a divulgação dessas informações. As nossas propostas para colocar a finança sob controle, para acabar com os paraísos fiscais e para proibir a especulação podem parecer anacrónicas e inadequadas a alguns; eles são apenas as condições preliminares para uma evolução rumo a um mundo em que se respeite a vida e haja Justiça.

Rémy Gyger

Leave a Reply