EM COMBATE – 199 – por José Brandão

Sagal

O ataque ao aquartelamento do Sagal durava já há mais de 48 horas, quando regressou a Mueda a coluna de abastecimento a Mocimboa do Rovuma. O empenhamento das forças da Frelimo, que actuavam em Cabo Delgado, neste ataque, possibilitou a realização da coluna, sem grandes sobressaltos, o que era inédito naquelas paragens. Entretanto em Mueda, com as notícias que chegavam dos militares cercados no Sagal, a situação ia-se agravando. Os meios aéreos não se aproximavam, face aos dispositivos de defesa montados pelos guerrilheiros, conhecedores dos efeitos da ajuda que os aviões e hélis prestavam aos quartéis atacados. As notícias apontavam para a quase impossibilidade de uma coluna militarizada, por terra, lá chegar. Não se sabia ao certo se havia feridos graves, mas havia já a certeza que não existiam mortos.

O tipo de ataque desencadeado, com o emprego de material pesado e sofisticado, e com a duração que havia já, colocou novos problemas a quem tinha a tarefa de envidar todos os esforços possíveis para auxiliar os atacados. Este era o drama dos responsáveis e restantes militares de Mueda. Até que se decidiu, após três dias de ataques ininterruptos, organizar uma coluna de auxílio. Também era certo, face à escala, que o comando desta coluna não caberia ao capitão da «companhia macaca», pois acabara de realizar o abastecimento a Mocimboa. Logo, seria o outro, comandante de tropa mais fresca, embora há cerca de 12 meses em Mueda. Mais uma vez, ter-se-ia a comandar a coluna, o comandante de uma companhia, com soldados da outra. As soluções típicas há muito que se haviam esgotado. Restavam 2 capitães, uma companhia relativamente completa, e outra, a «companhia macaca», reduzida a um punhado de sobreviventes em condições físicas e psicológicas deficientes. O Natal e o fim do ano aproximavam-se e deste modo cumpria-se a tradição com o incremento da actividade guerrilheira. Aproveitavam os dois comandantes das companhias operacionais para falar, um, sobre a experiência que acabara de viver, com a realização de uma coluna sem baixas, e o outro, preocupado com a partida, manhã cedo, para socorrer os homens do Sagal. Momento especial para o outro capitão, pois trava-se de uma operação de alto risco. Publicado por António Almeida

O Dia em que Comandei a Companhia

O primeiro objectivo de um soldado é permanecer vivo, e não há soldado que não faça tudo para sobreviver; mas a um enfermeiro na guerra é exigido mais do que isso. É necessário que se esqueça de si no momento mais perigoso e vá em socorro dos que tombaram, trocando a arma pelos produtos de enfermagem, que terá que manejar com os cuidados e assepsia possíveis no meio do pó, da terra, da confusão e do perigo de morte. É a ele que cabe dizer-nos que tenhamos coragem, que não vamos morrer, quando ficamos feridos, e é a ele que cabe procurar o que resta de nós na picada ou no meio do capim quando somos feitos em pedaços por uma mina, e depois arrumar o que se pôde encontrar para que as nossas famílias, lá longe, venham a ter algo de nós para velar. Quando se ouve o sinistro estampido de uma mina todos os soldados se atiram ao chão, rastejam e se protegem debaixo das viaturas. Todos não. O cabo Costa levantou-se quando os outros se baixaram, e foi em busca dos feridos. Dirigiu-se ao Raimundo e preparou-se para o socorrer. A cara dele numa pasta de sangue quase sem ver nada. – Vai procurar o Lemos, Costa. Vai socorrer o Lemos. Não tinham passado mais de vinte segundos desde a explosão.

Os helis vieram e levaram os feridos, a coluna organizou-se e continuou a sua missão. A tensão, o medo e um ódio indefinido tomou conta de todos como era costume. E longe dali, os que verdadeiramente mereciam ser objecto do nosso ódio, aqueles que não tinham coragem de tomar decisões com medo de mudar o rumo da história, por não estarem à altura dos cargos que ocupavam, continuaram ainda por muito tempo a manter tudo na mesma, até que um dia o nosso ódio não coube mais em nós, e apeámo-los do poleiro. As mesmas mãos e as mesmas armas, e a mesma generosidade. Quando um povo é capaz de lutar e descobre que não são justas as causas que lhe deram, inventa uma. Depois seguiu-se um longo período de silêncio sobre a Guerra Colonial em que a nação inteira pareceu viver um colectivo distúrbio pós-traumático do stress de guerra. Silêncio só entrecortado por uma falsa autocrítica de características tipicamente portuguesas, que se apressou a fazer alarde de todos os erros e crimes dos soldados portugueses, desculpando ou ignorando os dos seus opositores na mesma guerra; o que ainda assim teria algo de positivo se fosse genuína e contribuísse para uma reeducação colectiva, porque todos os crimes merecem denúncia e punição. Mas infelizmente essa autoflagelação, essa ancestral e muito portuguesa lamúria auto punitiva, não passa de uma cobarde generalização dos erros dos nossos pares com o intuito de parecermos individualmente a excepção à regra. A mesma pseudo-autocrítica que ao longo dos anos só tem contribuído para perpetuar o enaltecimento reverencial dos feitos alheios e cultivar a baixa auto estima nacional. Mas se a má consciência pátria esquece os seus soldados assim que não precisa deles, ou se acha que é fingindo que nada aconteceu que paga a sua dívida para com a História, é porque não aprendeu nada. Tão indignos são os governantes que não estão à altura da história por tentarem manter uma guerra injusta, como aqueles que se esquecem das suas vítimas. E nós? Será que nós não temos a obrigação de pôr o pudor de lado e contribuir com a nossa experiência para que os nossos filhos não permitam que cheguem ao poder aqueles que hão-de enviar os nossos netos para a guerra?

De Penafiel a Mueda, do Tejo ao Rovuma, do lar ao fim-do-mundo, da inocência ao inferno se fez a história da Companhia de Artilharia 3503. Cada um dos seus homens tem muitas histórias para contar, trazem-nas consigo há muitos anos; alguns querem guardá-las em silêncio consigo, como algo de íntimo e intransmissível, por acharem que uma vez verbalizadas se tornariam banais, e os sentimentos que lhes estão associadas desbaratados por quem não sabe o que significou negociar com a Morte dia-a-dia de arma na mão.

Houve uma guerra. Nós lutámos lá; nós morremos e matámos lá. Para denunciarmos, para perdoarmos, mas para jamais esquecermos!

Publicado por Manuel Bastos

http://cart3503.blogspot.com/

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