CARTA DE ALFONSO CASTELÃO A SALAZAR – versão de António Gomes Marques

Uma carta a Oliveira Salazar

Como vosselência não deixaria chegar ao povo português a voz dos patriotas galegos, queremos que, pelo menos, chegue a vosselência a queixa dorida de dois galegos que sempre amaram Portugal.

Asseguram que vosselência crê em Deus. Não o sabemos… E não o sabemos porque Deus ―infinitamente bom, sábio, justo e, ademais, imortal― não quis ser Ditador e concedeu-nos o livre arbítrio para que nós mesmos buscássemos o caminho da felicidade, enquanto que vosselência ―cativo verme, que se considera feito à imagem e semelhança de Deus― não teve dúvida em aprisionar a liberdade do povo português, a asfixiar a livre emissão do pensamento e submeter a nação portuguesa ao seu capricho. Grande pecado de soberba, senhor Ditador!

Não sabemos se vosselência é um Ditador tão vaidoso como Mussolini e Hitler (vemos que não gosta tanto dos fotógrafos); mais, ainda que o fosse, não cremos que vosselência pretenda tapar com a sua figura os progenitores da Pátria lusa. Eles conquistaram a independência da Nação portuguesa e vosselência está jogando-a agora na roleta internacional, em conluio com os inimigos da liberdade.

Não sabemos se a História perdoará os seus delitos, tão graciosamente como a mais alta hieraquia da Igreja lhe perdoa os seus pecados. Contudo, não se julgue seguro no castelo de fumo que a imaginação de vosselência criou, porque o povo tem um sentido incoercível de justiça e do seu cerne podem surgir juízes terrivelmente vingativos.

Mas no entanto é forçoso reconhecer que vosselência manda hoje em Portugal.

Por que ajuda vosselência os militares espanhóis, que se ergueram em armas contra o Poder legitimamente constituído? Mediu vosselência os riscos que de semelhante ajuda podem derivar para o Estado português? Porque a beligerância de Portugal na guerra civil espanhola é, simplesmente, uma imprudência temerária, que não abona o talento de vosselência. Tenha vosselência por bem seguro, além do mais, que Espanha* vai ser a campa do fascismo internacional, porque vencer a um povo em armas, dentro do próprio território, não é vencer a força máxima do seu pensamento nem matar a razão que o assiste. A luz das estrelas não se apagará soprando desde Roma. Agora bem; as ajudas fascistas prolongarão a guerra e agravarão os seus resultados, em prejuízo, naturalmente, das concepções que vosselência defende.

Mas nós iremos falar somente como galegos para que apareça mais avultada a gravíssima intervenção de vosselência.

Sabe vosselência que Galiza tem todos os atributos de uma nacionalidade língua, terra, história, arte, espírito, etc., e que, portanto, seria fácil fomentar ali um ideal patriótico de carácter separatista; mas nós aspirávamos, modestamente, a uma simples autonomia que garantisse o livre desenvolvimento da cultura autóctone e que nos permitisse resolver os problemas vitais que a morfologia social e económica de Galiza tem estabelecidos. Sabe vosselência que Galiza apresentou às Cortes da República espanhola três dias antes de rebentar o movimento subversivo um Estatuto autonómico proposto pela quase totalidade dos Concelhos e aprovado, em plebiscito recente, por setenta e cinco por cento do Corpo eleitoral; ou seja, depois de vencer com o mais rigoroso zelo as condições que a Constituição exige. Crê vosselência, senhor Professor de Direito, que nós realizámos algum atentado criminal? Pois a fronteira portuguesa não se abriu para os autonomistas galegos, que fugiam da morte, negando-lhes vosselência o direito de asilo a homens que viviam dentro da Lei e que não cometeram maior delito do que defendê-la. E a polícia de vosselência a polícia de um país que aboliu a pena capital entregou muitos galegos para que fossem assassinados.

Sabe vosselência que Portugal reclamou e conquistou, violentamente, a sua independência nacional, mais do que para romper a unidade hispânica, para não se submeter à tirania centralista. Portugal não queria morrer assimilado por Castela, e num arroubo de génio rompeu as amarras familiares, pediu separação de bens e foi viver a sua vida na melhor frente do lar comum, na grande frente do Atlântico. Não há dúvida que foi Portugal quem quebrou a unidade hispânica. E fez bem. Agora, senhor Professor de Direito, sabe vosselência que o “motivo patriótico” que invocam os militares espanhóis, para justificarem o seu crime, foi provocado pela generosidade constitucional, pois, segundo eles, a concessão das autonomias regionais põe em perigo a “sagrada unidade da pátria”, quando, na verdade, serve para fortificá-la. Sabe vosselência que os militares facciosos defendem, somente, um sistema um sistema unitário e centralista, que causou a perda do nosso império colonial depois de desintegrar a Península e acirrar novos separatismos. Sabe vosselência que esses militares desprezam olimpicamente Portugal, sem o conhecer, e guardam no seu interior um anseio irreprimível de reconquistá-lo pela força, enquanto que os povos autónomos da República espanhola seriam sempre uma garantia da independência de Portugal e um estímulo eficaz de aliança peninsular. Sabe vosselência que o triunfo do fascismo em Espanha supõe o regresso de Catalunha, Euzcadi** e Galiza à tirania centralista tirania que Portugal não suportou. E não falamos do que a Portugal pode sobrevir-lhe do triunfo das ideias totalitaristas e a participação de uma Espanha ensoberbecida no concerto europeu. Crê, vosselência, senhor Ditador, que Portugal pode dignamente ajudar os militares espanhóis no afã de abolir as autonomias e contribuir para a morte da democracia na Europa? Pois vosselência ajuda a esses militares, concede asilo generoso aos facciosos e aos políticos do velho sistema, convertendo Portugal em “galinheiro de Espanha”.

Sabe vosselência, apesar de ser judeu, que Galiza e Portugal formam, etnicamente, um mesmo povo. Foram-no no amanhecer da História e caminharam juntos muito tempo, a falar e a cantar no mesmo idioma. Juntos ergueram um dos mais belos momentos do mundo: a grande poesia lírica dos Cancioneiros galaico-portugueses. Juntos criámos uma cultura e um modo de vida. E o rio Minho era o nosso pai. Sabe vosselência que ainda depois da malfadada separação, Galiza e Portugal queriam-se como dois namorados. Portugal era o moço forte, que partiu para a guerra e Galiza foi a moça que ficou a tecer saudades. Galiza dera a Portugal, como prenda de amor, a fala e a arte; Portugal deu muitas vezes a Galiza o socorro do seu braço forte. Sabe vosselência que a separação foi desventurada. A Portugal faltou-lhe a força “frenética” de Galiza e enloqueceu; à Galiza faltou-lhe a força “simpática” de Portugal e esmoreceu. A Portugal faltou-lhe o “caminho estrelado da Europa” e à Galiza faltou-lhe a continuidade na História. Portugal esqueceu-se da Galiza e desgastou o seu sangue com misturas de cor; Galiza esqueceu-se de Portugal e ficou estéril para conceber. Pois bem, senhor Oliveira: sabe vosselência que os galeguistas éramos algo mais que políticos.

Respeitávamos como não! a fronteira que separa os dois Estados peninsulares: mas queríamos asas para voar e comunicarmos convosco, sobre o Minho, por cima dos carabineiros e dos guardas fiscais. Queríamos voltar a falar e cantar no mesmo idioma. Com canto amor pensávamos em Portugal! Deve saber vosselência que o nosso amor a Portugal valeu-nos o ódio dos chamados “nacionalistas” espanhóis e que foi justamente esse amor o delito mais grave que se nos imputa.

Crê vosselência, senhor Oliveira, que os galeguistas estávamos infectados de alguma enfermidade perigosa para o povo português? Pois vosselência tratou-nos como empestados, metendo galeguistas em cadeias imundas ou entregando-nos aos assassinos da “Falange Espanhola”.

Sabe vosselência que os intelectuais portugueses e galegos começavam a formarem uma comunidade cultural que seria outro expoente da nossa estirpe atlântica. Chamávamo-nos “irmãos”, e Rosalía de Castro era o “corpo santo da saudade”. Um poeta amigo de vosselência, quis engaiolar a Galiza com este chamamento: “Deixa Castela e vem a nós!” Sabe vosselência que os galeguistas fechávamos os ouvidos a todo chamamento ilícito; mas queríamos ser fiéis aos legados da tradição, e cada vez nos sentíamos mais empurrados face a Portugal. O rio Minho queria juntar-nos de novo. Sabe vosselência que os jornais portugueses submetidos à censura governativa seguiram com simpatia os incidentes do movimento autonomista em Galiza e não dissimularam o seu contentamento ante o resultado favorável do plebiscito estatutário. Outro tanto fizeram já quando se resolveu o pleito catalão. Tudo nos fazia supor que Portugal ansiava uma estruturação federativa do Estado espanhol, e nós sonhávamos para quê negá-lo? com que algum dia se consagrasse definitivamente a irmandade galaico-portuguesa. Pois bem, senhor Oliveira: vosselência matou as nossas ilusões. Crê vosselência que se pode ajudar descaradamente aos imperialistas espanhóis? Pois vosselência tornou-se cúmplice desses assassinos que cometeram em Espanha o crime mais arrepiante que a História regista. E vosselência fechou as portas, sempre abertas, da nossa República, aos seus próprios amigos, que algum dia renderão contas ante a justiça inexorável do povo português.

Sabe vosselência que na Galiza ainda irmã de Portugal cometeram-se muitos milhares de assassinatos. Massacrou-se o melhor e mais puro da nossa mocidade. Fuzilaram-se centenas de mulheres. Mataram-se rapazes cheios de vida na presença de seus pais. As estradas apareciam, e ainda aparecem, diariamente orladas de cadáveres desfeitos, que não podem identificar-se.

Sacavam-se da cadeia os presos inocentes para serem assassinados pela noite. As autoridades ordenavam fuzilamentos sem prévia formação de causa. Enfim; abonda*** dizer que era uma honra ser julgado e fuzilado “oficialmente”. Sabe vosselência que falamos em tempo passado, mas que ainda hoje continua o massacre dos cidadãos galegos. Pelos jornais da nossa Terra submetidos ao controlo militar verá vosselência a insaciável criminalidade dos seus aliados e amigos. Sabe vosselência que para reconstruir o nosso lar desfeito provavelmente não nos fica mais que a reserva dos galegos que andam pelo mundo. Pois bem; estes galegos vingarão os nossos mártires e criarão uma nova Galiza que já não medirá sonetos em louvor de Portugal. Crê vosselência que os bons galegos enlutados para sempre podem viver sem amaldiçoar? Pois nós dizemos-lhe que vosselência causou o luto de muitas famílias galegas por não abrir generosamente as portas de Portugal. E dizemos-lhe mais: vosselência será para os sobreviventes de Galiza algo menos que um assassino; será um cúmplice de assassinos.

Alfonso R. Castelão e Ramón Suárez Picallo

In Nova Galiza, n.º 2 (20-IV-1937)

Versão de António Gomes Marques
não respeitando o novo acordo ortográfico

Agradecimento
Há quem diga que o dicionário de galego é o dicionário de português; portanto, verter para o português corrente «Uma Carta a Oliveira Salazar» será tarefa fácil, dirão, pelo menos, alguns. Será. Devo dizer-vos, no entanto, que me vi e desejei para encontrar algumas palavras que fossem entendidas pelo português comum sem deixar de ser o mais fiel possível aos autores, a Castelão em particular, o que me levou a solicitar a sapiência do Professor Carlos Duran (Durão, como ele às vezes escreve), a quem manifesto a minha gratidão.
Logicamente, também por ser verdade, a responsabilidade da versão que leram é toda minha.
Notas:
*Castelão, ao acrescentar um H inicial (em vez de España escrevia Hespaña, derivado de Hispânia), marcava a diferença entre a Espanha oficial, especialmente a de Franco, que negava assim a sua diversidade, e a Espanha do futuro que, na sua concepção, construiria a sua unidade na sua pluralidade; no fundo, para Castelão escrever Hespaña era o mesmo que escrever Ibéria ou Península Ibérica. A vontade manifestada por Castelão foi que a Hispânia se construísse como uma Federação das nações que a constituem: Castela, Catalunha, País Basco, Portugal e Galiza (nota de AGM).
**Mantemos o termo que Castelão utilizou ao referir-se ao País Basco, que em basco se escreve Euskal Herria, significando literalmente «terra do euskara». A utilização do termo requer sempre algum cuidado dado que pode querer dizer apenas País Basco, assim designado em Espanha, como pode querer dizer País Basco e Navarra, também na actual Espanha, ou pode querer incluir também, além destes, o território basco que está incluído em França.(nota de AGM).
***Preferimos manter o termo usado por Castelão, sabendo que é arcaico, mas não haverá ninguém em Portugal que não saiba que quer dizer «basta» (nota de AGM)

6 Comments

  1. Impressionante! é a primeira palavra que me vem às mentes, pelo fundo da pluma de Castelão, e pela forma da pluma de A. Gomes Margues, quem soube adaptar perfeitamente o galego apaixonado dos anos 30 do nosso Castelão ao português aprimorado contemporâneo: bem haja! e permita-se-me partilhar com colegas e amigos esta carta, ainda palpitante mas já parte da história, nossa e também vosa;

    muito obrigado,

    Carlos

  2. E vosselência FECHOU AS PORTAS. Tal qual o Paulo Portas-Fechadas em julho de 2011. A história repete-se se os agentes são da mesma caste.
    Como o Carlos, fico muito obrigada por esta atenção, A. Gomes Marques.

  3. Os meus parabéns pela informação preciosa que desconhecia. Leio com muita atenção.
    Quanto ao País Basco, Euskal Herria, para os soberanistas bascos, inclui o País Basco francês, as províncias bascongadas (Euskádi) e Navarra (Nafarroa), reino propriamente basco independente até 1512 em que foi conquistado pelo regente de Castela, Fernando de Aragão, esposo da defunta rainha Isabel.
    De jeito semelhante agem os soberanistas catalães: Os Paisos Catalans compreendem a Catalunya francesa (Perpinyà), El Principat (comunidad autónoma de cataluña), o País Valenciâ (comunidad valenciana) e Les Illes balears (comunidad autónoma balear).
    O reino bourbónico procura dominar dividindo, como faziam os conquistadores-dominadores romanos: “Divide et impera”.
    Não fez isso, dividir, Portugal com o Brasil. E agora andam portugueses ciumentos da potência lusófona brasileira até o ponto de preferirem isolar-se (para acabar no seio do reino boubónico?) antes de fruir da Lusofonia global. (Como fazem determinados “notables” galegos: “antes espaÑoles que lusófonos”.)

    1. Meu Caro António Hernández, há uma afirmação sem sentido – a de que os portugueses «estão ciumentos da potência lusófona brasileira ao ponto de preferirem isolar-se» – e profundamente disparatada a pergunta «para acabar no seio do eino bourbónico?». Para já, tanto quanto julgo saber, Portugal é o único país da CPLP onde o AO (quanto a mim inútil, mas inofensivo) está em vigor. Os portugueses lidam muito bem com a inquestionável dimensão do Brasil. Porém, pelo facto de ter menor peso político, não perdem os portugueses o direito de ter opinião sobre o idioma que, sendo comum, foi aqui desenvolvido e por nós espalhado pelo mundo. A nossa independência não depende do AO. A nossa identidade nacional não está em causa – o reino bourbónico não nos atrai. E para muitos de nós é algo de repugnante e ridículo. Meu caro, o maniqueísmo a nada conduz e considerar os portugueses responsáveis por frustrações alheias não é benéfico para ninguém.

  4. Compartilho A por A e B por B, até o Z, o que bem expões Castelão e Suárez Picallo. Sou humano antes de “espaÑol”.
    E, como humano, tenho de reconhecer que a “espaÑa” atual está “construída” sobre a destruição: dos judeus, dos árabes, “cidadãos” seculares da Península; dos reformados e mesmo dos conversos; dos galegos, dos bascos, dos catalães… e dos próprios castelhanos (na rebelião dos “comuneros”, decapitados por ordem do Carlos V da Alemanha… Alemanha, como hoje a esfarelar o sul…).
    Enfim…
    Que dizer da colaboração, ontem, do Salazar e salazarismo, do Franco e do franquismo, do Coelho e do coelhismo, do Rajoy e do rajoyismo, com os destruidores dos povos hispânicos em benefício dos seus donos, todos alheios e alienadores?

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