“BARBERSHOP”, ROMANCE DE JÚLIO CONRADO – por Manuel Simões

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Manuel Simões, num texto que foi antes publicado no Estrolabio, dá-nos conta das suas impressões de leitura de um livro de Júlio Conrado – Barbershop.

Júlio Conrado há muito que se tornou conhecido na literatura portuguesa contemporânea, sobretudo depois dos romances Era a RevoluçãoImagem1 (1977), Maldito entre as Mulheres (1999) ou Desaparecido no Salon du Livre (2001), saborosa narrativa de intenção satírica e que, como obra literária, ganharia maior densidade de análise se fosse menos explícita a personagem objecto de escárnio. Depois disso, ainda publicou, entre outros, o romance Estação Ardente (Prémio Vergílio Ferreira de 2006) e agora Barbershop (Lisboa, Ed. Presença, 2010), título de algum modo provocatório mas que se insere num contexto considerado cosmopolita como Cascais (Cascale no romance), espaço onde evolui a representação romanesca, embora com ramificações em Lisboa ou na ilha de Armona, em Olhão, referência esta que evoca sons e odores que a semântica da memória traz à superfície do texto: “era o cheiro urbano, lavado, de uma cidade, outrora vila (Ai Vila de Olhão/ da Restauração…Olá, Zeca!)”, uma espécie de fronteira odorífera para o narrador/autor (pp.98-102).

Apesar do indicador do título, não é a barbearia o espaço privilegiado para o desenvolvimento das acções. Numa delas, de nome afrancesado “Ao Corte Superior”, que antecede a designação moderna, tem por assim dizer início a estória que culminará de modo trágico no interior da outra barbearia (“A Brilhante”), ambas dirigidas, em épocas distintas, pelo barbeiro Diamantino Neto, instrumento do jogo perverso do destino trágico. De resto, as acções mais significativas têm lugar em alcovas (Bairro Alto, em Lisboa; Condomínio, em Cascais; ilha de Armona, de que já se falou) até porque o romance acaba por ter o seu núcleo narrativo nas duas relações sentimentais do protagonista Rogério Bordalo, que desaguam no casamento e viuvez no primeiro caso e divórcio no segundo, arquitectado no seguimento da traição de Bordalo com a brasileira que lhe promoveu a “barbershop”, traição recíproca como vingança e armadilha preparadas pela mulher. Curiosamente até, neste sistema que conduz à situação picaresca de uma personagem socialmente desqualificada, são as mulheres que saem vencedoras, se nos lembrarmos que a segunda, “que não suporta o corneio de homem a quem pague para o ter em exclusivo” (p. 109), era sócia honorária do chamado “Movimento Feminista Global, Sector Donas de Casa Prontas para Tudo”, que a orientaram no que o movimento representa como “ataque ao machismo”.

Romance polifónico na medida em que a sua modelização textual assenta na pluralidade de registos discursivos – e até linguísticos: notável o repositório de termos da gíria e de outras formas da cultura popular -, nem sempre as acções narradas correspondem ao princípio da verosimilhança. Este aspecto, sobretudo evidente nas referências ao poeta F.F., residente em Cascais, a quem é comunicada a atribuição do Prémio Nobel da Literatura (com a consequente recusa) e na surpresa quanto ao percurso ideológico e cultural do barbeiro, explica-se pela operação textual própria do género – trata-se, afinal, de um romance – com a escolha do Autor pela situação paródica, isto é, pela condução de partes essenciais da narrativa em termos irónicos, pondo em evidência a crítica ao modelo, de resto um procedimento já anteriormente experimentado por Júlio Conrado, no já citado Desaparecido no Salon du Livre, por exemplo.

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