“VOGAIS E CONSOANTES POLITICAMENTE INCORRECTAS DO ACORDO ORTOGRÁFICO”, DE PEDRO CORREIA – por Manuel Simões

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Pedro Correia é jornalista com larga experiência, destacando-se a sua colaboração no “Independente”, noImagem1 “Público” e no “Expresso” (nestes dois últimos como correspondente em Macau), para além da mais recente passagem pelo “Diário de Notícias”. Subscreve agora um trabalho sobre o acordo ortográfico (AO90) que vai para além do recorte jornalístico e que a editora “Guerra & Paz” acaba de editar.  Manuel Simões leu-o, analisou-o e vai dar-nos a sua opinião.

Neste trabalho produz o Autor uma reflexão profunda sobre a história dos acordos ortográficos em geral e do AO90 em particular, do qual, como se compreende do título, discorda plenamente. Analisa as motivações dos promotores desta aberrante criatura, que não obedeceu a um critério científico, visto que, como acabou por confessar o linguista Malaca Casteleiro, o grande responsável português pelo tratado, o mesmo nada tem que ver com «uma questão linguística, é uma questão política […] no âmbito da lusofonia» (“Expresso”, 29/2/2008). E os mesmos responsáveis fizeram ouvidos de mercador ao parecer da Comissão Nacional da Língua Portuguesa, coordenada por Vítor Aguiar e Silva, comissão que logo em Junho de 1989 tinha emitido um parecer desfavorável ao “Anteprojecto de Bases da Ortografia Unificada da Língua Portuguesa”, fonte principal do AO90: «sofre de numerosas insuficiências e deficiências científicas e técnico-linguísticas» (“Boletim da CNALP”, 1989).

A tese que defende uma grafia que reflicta a pronúncia não encontra realização em nenhuma língua porque todas se regem por uma codificação (convenção implícita) pela qual certos nexos fónicos se pronunciam e se escrevem diversamente: ‘ch’ do italiano = ‘qu’ do português ou do francês = ‘k’, por exemplo. A escrita, por isso, não pode ser uma transcrição da fala, já o disse, entre outros, o linguista António Emiliano, da Universidade do Porto (“Revista de Estudos Linguísticos”, 4, 2009). E como refere pertinentemente Pedro Correia: «se o fosse, aliás, o ‘r’ seria suprimido em todos os infinitivos dos verbos, omitido na pronúncia brasileira: “Escrever” passaria a grafar-se “escrevê”, “falar” tornar-se-ia “falá”» (p.71). Mas parece que só o português europeu é que tem que se adaptar…

Um aspecto essencial que transparece de todos os documentos fundadores do AO90, incluindo a “Nota Explicativa do AO”, e das sucessivas motivações justificativas dos seus ideólogos, consiste na falácia da «unidade intercontinental do português», desmentida imediatamente pela manutenção de um sem fim de ‘facultatividades’, o que leva o Autor a considerar os muitos absurdos do (des)acordo e a esta síntese significativa: «Muito se altera – e, no entanto, pouco se unifica» (p. 77), até porque o AO introduz duplas grafias onde antes existia grafia única: “acepção”, “aspecto”, “perspectiva”, etc.. São estes absurdos que levaram o grande humorista brasileiro Millôr Fernandes a dizer expressiva e radicalmente: «O acordo ortográfico é uma merda!» (“DN”, 23/8/2009).

Por tudo o que fica dito, trata-se de um trabalho meritório, de revisitação e crítica às mil incongruências do acordo ortográfico, trabalho enriquecido pela indicação, nas notas, das muitas fontes bibliográficas que o informaram e que serão úteis a quem queira abordar até onde chega a arrogância do poder perante o clamor das vozes discordantes.

3 Comments

  1. Bom, se é meritório terá mérito. Porque se não fosse meritório, não teria mérito. Mas pergunto: Que problema há com as duplas grafias? Existem em inglês (meu deus, grande idioma e unido, mas não uniformado), no castelhano (revejam o DRAE)…
    Sabem que? Que os lusófonos, ao repararem unicamente, exclusivamente nas divergências, conseguirão ser, em conjunto, ainda menos considerados no “concerto das nações”. (Não digo, como o humorista brasileiro, que acabem desconsiderados como merda, não é essa nem a minha intenção nem a minha apreciação. Mas continuem por esse caminho e talvez não desconsigam…)

  2. Ah, como hispanófono, reconheço que a “política” da RAE é bastante sensata, ao reconhecer que todas as “academias de la lengua española” têm voz e voto nos acordos ortográficos e ainda mais, apesar de a demografia dar prevalência à RAE… Mas é perceção talvez um pouco enganosa: de facto a RAE, por tradição e sobretudo por peso demográfico, prevalece sobre as outras academias, salvo pormenores sem grande importância como a duplicidade gráfica de “guion/guión” e outras semelhantes. Outras foram de velho admitidadas, como “sustantivo/substantivo”. E não se passa nada.
    Digo enganosa, porque dos 300.000.000 ou 4.000.000.000 (depende dos contadores) de utentes de castelhano, apenas uns 4.000.000, como muito, distinguem na pronúncia entre /s/ e /th/ (o zeda castelhano. Não obstante, sem paradoxos, poucos propuseram a unificação gráfica para /s/ (s), maioritária na Hispanofonia. Mais curioso é o facto de as academias persistirem em distinguir graficamente “b” e “v”, de idêntica pronúncia em toda a Hisºanofonia”, ou “j” e “g+e,i”, igualmente de quase geral pronúncia na Hispanofonia.
    Vou a que a língua escrita, ortografada, garante a unidade, apesar da diversidade, mesmo grande, de pronúncias. É facto que não acabo de perceber que percebam bastante linguistas lusófonos. Apenas atendo aos seus “argumentos”…

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