MUNDO CÃO – O EGIPTO – por José Goulão

Foi o maior cenário do movimento a que convencionou chamar-se, com a precipitação inerente aos interesses da propaganda, a “Primavera Árabe”.

Basta fazer uma curta viagem de memória através dos resultados actuais dos acontecimentos aglutinados nesse conceito, pela Síria, pela Líbia, pelo Bahrein, pela própria Tunísia, pelo Egipto, para percebermos que se é de “Primavera” que falamos então as conjunturas meteorológicas não podem ter calhado mais tempestuosas, trágicas, sangrentas.

Vejamos o caso do Egipto, exemplo da incapacidade da chamada “comunidade internacional”, designação cada vez mais resumida ao poder de decisão dos dirigentes imperiais e neocoloniais, para se comportar de maneira coerente perante as consequências de políticas que ela própria recomenda, isto é, impõe.

Depois de longos anos convivendo em cumplicidade com a ditadura militar, primeiro de Anwar Sadat, depois de Hosni Mubarak, essa “comunidade internacional” moldou-se ao vigor do movimento popular no Egipto exigindo a mudança e geriu a implantação do modelo padronizado de democracia, o único que considera válido para que um país seja aceite no círculo dos bem comportados. Como seria de esperar, o radicalismo islâmico sunita, “moderado” ou extremista, na sua vertente salafita, venceram de maneira arrasadora todas as eleições, actos esses que, apesar da sua complexidade por se realizarem no mais populoso entre os países árabes, não se caracterizaram pelas manipulações e falsificações praticadas, por exemplo, no “democrático” Afeganistão.

Assim sendo, os fundamentalistas – Irmandade muçulmana, com grande vantagem, e os salafitas – apoderaram-se de três quartos do Parlamento do Cairo e fizeram sentar o seu confrade Mohammed Morsi na cadeira ainda quente que pertencera a Mubarak. Foram essas as consequências da aplicação da democracia padrão, aquela que é encaixada às cegas em sucessivas nações sem ter em conta a história, tradições, relações étnicas e regionais, características de organização social, desde as tribais às religiosas.

Um ano depois, e perante a acelerada islamização da vida social decorrente do poder exercido pelas organizações confessionais egípcias, vastos sectores da população voltaram às ruas protestando contra a situação, contra os vícios autoritários próprios da incompatibilidade natural entre liberdades políticas e a obediência aos estatutos comportamentais impostos por qualquer cadeia hierárquica religiosa. Por definição, o confessionalismo não pode ser democrático.

Perante um país imenso, estratégico e paupérrimo em convulsão, a dita “comunidade internacional” admitiu na prática que as eleições democráticas não valeram porque não deram os resultados desejados e toleraram um pronunciamento militar que instalou no governo e na presidência figuras bem vistas nos círculos estrangeiros de poder e sem peso político e eleitoral dentro do Egipto. As forças armadas egípcias, um braço da presença norte-americana no Médio Oriente, ficaram a tutelar este sistema dito “transitório” e foi então que, num acto de crua hipocrisia, os Estados Unidos fingiram distanciar-se dos acontecimentos ameaçando reduzir a cooperação com o exército enquanto pediam, juntamente com a Alemanha e outros países da União Europeia, não a restauração das instituições democráticas mas apenas a libertação de Mohammed Morsi, detido num quartel sem acusação nem julgamento.

Morsi é um democrata? Não é e jamais será. Tal como o islamita turco Erdogan, também ele um islamizador de uma sociedade laica, lesto em recorrer à violência para dissolver protestos populares, mas de pedra e cal porque é um bom aliado na guerra que a tal “comunidade internacional” conduz contra a Síria ao lado de grupos e grupinhos extremistas islâmicos. A mesma Síria onde o regime de Assad apoiou o pronunciamento militar no Egipto, em sintonia com os mesmos governantes ocidentais que apoiam os seus inimigos internos.

A “comunidade internacional” repetiu no Egipto o mesmo comportamento de rejeição dos resultados democráticos que já adoptara na Argélia e na Palestina, neste caso quando o Hamas ganhou eleições livres em 2007.

Percebem-se assim muito bem as razões pelas quais os próprios regimes democráticos de países como os Estados Unidos e os seus aliados europeus se aproximam cada vez mais dos autoritarismos pré-fascistas. Porque o que verdadeiramente está em causa são relações de domínio e de poder exercidas por interesses e mercados para os quais os mecanismos democráticos representam estorvos a arrasar.

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