UMA CARTA DO PORTO – Por José Fernando Magalhães (11)

O TIO ZÉ DAS LIBRAS

Era um dos filhos do meio de entre os vinte e quatro que tinham nascido no último quartel do século dezanove. Um dos mais novos, o vigésimo primeiro a nascer, era o meu avô paterno.

Filhos de um abastado proprietário das bandas de Paços de Ferreira, todos nasceram no Porto, na que hoje é a Avenida do Brasil, Avenida que existe desde 1864, e que à altura do nascimento de cada um deles, teria um destes nomes: Carreiro d’Ipia, Carreiro Mau, Molhe de Carreiros, ou simplesmente Carreiros. Foi a República que a baptizou com o nome que ainda hoje tem.

Mas eram duas dúzias, os filhos, e a fortuna depressa se esvaiu, provocando que o meu avô fosse criado desde quase a nascença em Paços de Ferreira, por uma irmã que tinha mais vinte anos que ele, e que muitos dos irmãos acabassem por emigrar para o Brasil.

Dos que restaram por cá, todos acabaram por morar por perto da casa paterna, na rua do Monte da Luz, na rua do Farol, na rua da Agra, na rua do Teatro, na rua de Gondarém e na Praça de Liége. E todos acabaram por ter vidas de sacrifício e de muito trabalho, já que os proventos das quintas eram parcos, e apesar de serem já poucos para alimentar, mesmo assim não chegavam para os que cá estavam.

Bem, todos não, porque o tio Zé teve sorte, ou saber, ou esperteza, ou outra coisa qualquer.

Dos que por cá ainda andam, poucos são já os que se lembram de ver o tio Zé, e os que se lembram, têm já as memórias toldadas pela idade. São no entanto todos unânimes em dizer que se lembravam do tio Zé como um homem rico, baixo, gordo e velho, e se bem que não acertem direito na casa onde ele viveu, nem tão pouco na rua, as histórias que rodeiam a sua lembrança são em tudo semelhantes.

Todos dizem que o tio Zé deveria ter sido, em novo, muito bonito, muito charmoso, muito sedutor e muito esperto. Ninguém sabe do que teria vivido nos primeiros anos de adulto, nem nos segundos ou terceiros, mas sabe-se de fonte segura que, velho e viúvo, se passeava pelas ruas da Foz, pequenino e anafado, no seu fato preto de onde sobressaía entre bolsos do colete, uma grande e grossa corrente formada por Libras de ouro. Já nessa altura toda a Foz o conhecia como o Zé das Libras.

Sabe-se também que o tio Zé tinha sido casado três vezes e das três enviuvara. A primeira mulher era uma viúva rica e sem filhos que lhe deixara uma pequena fortuna após morrer. A segunda, também viúva, também sem filhos e também com uma razoável riqueza, faleceu prematuramente, deixando-o um pouco mais rico, e à terceira, tal como as anteriores, viúva, rica e sem filhos, também ele sobreviveu, aumentando em muito o seu património.

Não se sabe ao certo onde viveu, já que os testemunhos actuais, pouco fidedignos, tanto o colocam na rua da Agra como na rua do Ribeirinho, ou ainda na rua de José de Carvalho, mas todos dizem que era, à altura, dono de mais de metade da rua, do lado Norte, entre a de Sousa Rosa e o seu términus, já que qualquer uma delas era uma rua sem saída.

E um dia o tio Zé faleceu, naturalmente, como acontece a toda a gente, e quase todos os seus parentes compareceram ao enterro esperando que ele, acabado de morrer, viúvo e sem descendentes, lhes tivesse deixado alguma coisita em testamento.

Oh! Crueldade das crueldades! Oh! Infortúnio maldito! Oh! Vida cruel! O tio Zé deixou tudo à pessoa que nos últimos muitos anos da sua vida tratou dele, lhe lavou as roupas e quem sabe o corpo doente, e lhe fez a comida, lhe ouviu as queixas e lhe aguentou as manias de velho e as rezinguices, a sua governanta e, claro, os respectivos filhos.

Às vezes lembro-me dele, e pergunto-me do que faria do seu dia-a-dia. Por onde se passeava, o que pensava da vida, e onde parava a pensar.

Por onde andaria ele, a pavonear-se com a sua corrente de Libras de ouro?

Ali à volta, para além da avenida junto ao mar, e perto da casa onde vivia, fosse ela onde fosse, temos o jardim da Praça de Liége, lindíssimo, o farol que nas noites acendia a sua luz verde, e as ruas directas de acesso à praia, a rua do Farol, a do Teatro, a rua de Diu, a rua do Monte da Luz, a rua do Túnel (esta é paralela ao mar e continuava pela rua de Gondarém)… Por vezes imagino-o faroleiro, no casinhoto octogonal, ao lado do farol, a contemplar o mar, tendo como companhia uma ou outra gaivota que passasse, o som do vento e o das ondas lá em baixo.

Com alguma frequência ando também por aquelas bandas.

 

Praça de Liége

Jardim da Praça de Liége
Jardim da Praça de Liége

O jardim da Praça de Liége é um jardim lindíssimo e muito bem arranjado, bordejado por dezenas de Plátanos. Antes de lhe mudarem o nome, em 1914, em homenagem aos habitantes daquela cidade belga que se haviam batido heroicamente contra os invasores alemães, chamava-se Largo do Monte da Luz e deveria ter sido sob esse nome que o tio Zé das Libras o conheceu.

A partir desta Praça, e em direcção a Norte, existe uma das particularidades da toponímia Portuense. Porventura uma das únicas personagens a ter o seu nome em mais que uma das ruas da cidade, João Carlos Gregório Domingos Vicente Francisco de Saldanha Oliveira e Daun, neto do Marquês de Pombal e conhecido na História pelos títulos de Duque de Saldanha e Marechal Saldanha. O Marechal Saldanha, tem aqui a sua rua, sendo que com o nome de Duque de Saldanha, também existe uma rua que parte do Campo 24 de Agosto.

 

TESOUROS ESCONDIDOS NA CIDADE

Farol do Monte da Luz

Farol-da-Senhora-da-Luz.3 No Monte da Luz, lugar da freguesia da Foz do Douro, e mesmo no seu cimo houve em tempos um farol e uma capela, a Ermida da Senhora da Luz.

Farol-da-Senhora-da-Luz.25O Farol de Nossa Senhora da Luz, também denominado Farol da Luz, ou Farol da Senhora da Luz, ou do Monte da Luz, ainda hoje lá está, em local privilegiado, cuja vista se estende da barra do Douro até à cidade de Espinho e para Norte muito para lá de Leixões, ou melhor dizendo, está lá o edifício de granito onde ele funcionava, e que foi desactivado em 1945 aquando da modernização do Farolim de Felgueiras, e modificado no seu topo (onde funcionava o farol propriamente dito – ver imagens da época) com um telhado de quatro águas.

Era constituído por uma pequena torre hexagonal no cume de um torreão quadrangular do lado oeste de um edifício de dois pisos, encimado por uma lanterna verde, hoje já retirada e substituída por um telhado. A capela, desapareceu há muito. A seu lado existe uma pequena torre octogonal de dois pisos, com a altura de cinco metros que servia de torre de vigia para o faroleiro e seus ajudantes.

Este, é um farol histórico já que foi o primeiro Farol da Costa Portuguesa, mandado edificar pelo Marquês de Pombal, tendo sido inaugurado em 1761.

torre-de-vigia-farol-600x DSC04294-600x Quem passa por aqueles lados nem se apercebe do tesouro que a cidade ali guarda. E quem lá chega acaba por ser desinformado pela placa ali aposta. Nessa placa, o desenho do farol está errado, já que o que é mostrado é a torre de vigia do faroleiro, e do desenho do antigo farol, lamentavelmente nada consta.

Encontra-se classificado como “Imóvel de Interesse Municipal” (IIM), e que bom seria que alguém de direito olhasse pelo seu aspecto e o fizesse sair do abandono a que parece votado.

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EFEMÉRIDE

Só para lembrar!

 

Hoje, 14 de Novembro de 2013, faz 174 anos que, em 1839, nasceu no Porto, na antiga Rua do Reguinho (freguesia de S. Nicolau), aquele que viria a ser o médico e escritor Júlio Diniz (1839-1871), pseudónimo literário de Joaquim Guilherme Gomes Coelho, criador do romance campesino e autor de obras como: As Pupilas do Senhor Reitor (1869), A Morgadinha dos Canaviais (1868), Uma Família Inglesa (1868), Serões da Província (1870), Os Fidalgos da Casa Mourisca (1871), Poesias (1873), Inéditos e Dispersos (1910), Teatro Inédito (1946-1947).

Além daquele pseudónimo usou também o de Diana de Aveleda, com o qual se iniciou na vida literária e subscreveu crónicas no Diário do Porto e pequenas narrativas ingénuas como “Os Novelos da Tia Filomena” (1862) e o “Espólio do Senhor Cipriano” (1863).

Viria a morrer a 12 de Setembro de 1871, com 31 anos, vítima de tuberculose, numa casa, que já não existe e que após a sua demolição deu vez a uma casa de espectáculos, da Rua Costa Cabral, no Porto.

 

6 Comments

  1. gosto que alguém se interesse pelo património Português, e quando digo Património, digo-o no sentido lato, seja arquitectónico, literário ,paisagístico ou outros . Promover e defender aquilo que nos identifica no universo é nossa obrigação.

  2. É a primeira vez que me é dado ver o antigo Farol da Luz !
    Nesse edifício esteve a redacção da Revista O Tripeiro ainda algum tempo. Creioque voltou para o Palácio da Bolsa de onde transitara.
    Também ignorava que Júlio Dinis tivesse usado o pseudónimo de Diana de Azevedo.

    Por onde se passearia o seu tio Zé das Libras ?
    Alvitro que, essencialmente, pela marginal…

    Grato por mais esta aula tão paricular.

    Um abraço.

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