Novas Viagens na Minha Terra – Série II – Capítulo 139 – por Manuela Degerine

Emma

 Se antes de conversar com o vagabundo eu não pegava nos cobertores dos albergues, muito menos agora lhes toco, seja qual for aimagem158 temperatura, pois o indivíduo cheirava mal e a lista dos seus passageiros ia do percevejo à pulga passando pelo piolho… Ora ontem vi um corpo enrolado nas mantas do albergue: Emma. Tem mais vinte centímetros de altura do que eu mas transporta metade da minha mochila, não traz saco-cama, não traz polainas, não traz impermeável, enfim: nada do que creio indispensável. É viúva, feminista, grande leitora, grande caminhante, mãe de filhos adultos… Uma mulher muito original.

Chove canivetes, chove picaretas, nós não os sentimos, conversamos durante os vinte quilómetros que distam do albergue ao centro do Porrinho, atravessamos a ponte, visitamos a catedral, passamos Rebordans, passamos a “Virxe do Camiño”, paramos no lugar de Santelmo (que no século XIII aqui morreu no Caminho de Santiago), voltamos a parar em Orbenlle, onde conhecemos um austríaco (Franz), atravessamos a zona industrial com chuva intensa e literatura inglesa, os camiões cobrem-nos de lama, os charcos sobem-nos às canelas, nós evocamos os contos de Saki, sucedem-se postes, atrelados, pedreiras, guindastes, contentores enquanto o boi visita Adela Pingsford, chove gatos e cães mas lançamos às fábricas, aos viadutos, ao “lavadero de cisternas” o olhar impertinente de William Somerset Maugham cujos contos nos servem de galochas, de botas de sete léguas, eis-nos à beira da N-550, os carros, as hortas, os armazéns, os espigueiros, as casas modernas escondem-se atrás de uma cortina líquida, nós saltitamos pela BBC, pela Radio France, adeptas ambas da rádio inteligente… Já vamos no Porrinho.

(Na descida para a zona industrial da Gândara, reparei nuns sinais cobertos com tinta vermelha. Que significavam? Sem decifrar o enigma, preferi não os seguir – para mais com tanta chuva. Afinal indicavam uma alternativa à zona industrial todavia, por os peregrinos constituírem um rendimento, os comerciantes tentaram apagar as setas amarelas… Portanto terei que regressar ao Caminho de Santiago para descobrir este novo itinerário.)

Emma não imagina o que fará no Porrinho durante toda a tarde. Quer avançar para Mós: a chuva não a molha. Incita-me – de maneira discreta, como inglesa que é – a continuar. Pouco passa do meio-dia, não me sinto cansada, poderia decerto prosseguir, não desperdiçar este encontro, desconfio porém da curiosidade que esconde a fadiga, por consequência opto por poupar a cavalgadura, ontem muito estafada, coser as calças, secar o calçado pois agora, nos pegos do Caminho, não obstante as polainas, até me entrou água nas botas… Por outro lado acho o Porrinho não bonito, feio tão-pouco, digamos: interessante. Prefiro passar cá a tarde, abastecer a mochila, vaguear pelas ruas, conversar com os habitantes, entrar nas igrejas e capelas… Se amanhã me sentir capaz, percorro outra grande etapa: voltaremos a encontrar-nos em Pontevedra.

Leave a Reply