UMA CARTA DO PORTO – Por José Magalhães (13)

O SENHOR ANTERO ANDRADE

O senhor Antero Andrade habitava, três meses em cada ano, a barraca ao lado da nossa. A nossa nuns anos à direita, noutros à esquerda, a dele,  sempre no mesmo local. Diziam que a barraca, e o pano que a cobria, eram mesmo dele. A nossa era alugada, como todas as outras existentes.

Na nossa barraca acabávamos por estar muitos, pelo que era uma das maiores barracas que por lá havia. Entre primos e primas, tias e tios, os meus pais e uma empregada que nos ia servir o almoço, chegávamos a ser dezassete, mas, ao mesmo tempo, nunca mais de dez. A barraca do senhor Antero, que servia só duas pessoas, era ainda maior que a nossa. Era a maior de todas, e o pano que a cobria era diferente de todas as outras, com riscas mais finas e tricolores, enquanto as restantes tinham riscas largas e bicolores.

Durante os três meses que durava a estação de veraneio, encontrávamo-nos, pontualmente às nove horas de cada manhã, exceptuando aos Domingos.

“Bom dia senhor Andrade” 

“Bom dia meninos, bom dia minha senhora.”

“Bom dia dona Maria.”

“Bom dia minha senhora, bom dia meninos.”

“Hoje é que está bom!”

“É verdade, está um dia bonito!”

“O marido, está bem?”

“Está sim, obrigada senhor Andrade, vem logo à tarde para nos vir buscar.”

E as conversas, que começavam sempre assim, lá derivavam para outros assuntos, comezinhos, banais. Enfim, conversas de praia.

O que me lembro do senhor Andrade é muito pouco. Já tinha muita idade, talvez muito perto dos oitenta anos, quando eu ainda era uma criança. Era baixo, careca e um pouco cheio de carnes, mas muito musculado. Era um nadador exímio e resistente. Provavelmente teria sido atleta de competição quando fora novo. Todos os dias nadava naquelas águas muito frias, da Foz do Douro, mais de uma hora seguida de manhã e outra de tarde, numa toada lenta e constante, de um lado para o outro. Era um regalo vê-lo. Como era também um mimo apreciar o amor, o desvelo e o carinho com que a dona Maria o preparava para o banho e o ajudava no fim.

Como muita gente fazia naquela época, sendo o senhor Antero careca, deixava crescer de um dos lados, onde ainda tinha cabelo, uma longa madeixa que, serpenteava, tapando grande parte do cocuruto da cabeça. Era a dona Maria que lhe serpenteava o cabelo, e, antes do banho de mar, lhe colocava uma touca de pano, que ela mesma fizera, que colando-se muito bem, qual segunda pele, evitava que esse serpenteado se desfizesse. No fim do banho, era o movimento contrário, de tirar a touca e refazer o que estivesse mal. Isto, duas vezes por dia.

Nunca me cansei de apreciar essa demonstração, diária, de amor.

Anja - fot. internet
Anja – fot. internet

O senhor Andrade, que eu ouvia em conversas animadas com meu pai, era casado em segundas núpcias com a dona Maria e viviam mesmo ao lado da Torre dos Clérigos, num quarto ou quinto andar, com vista privilegiada sobre o Campo dos Mártires da Pátria, onde se encontra o Jardim da Cordoaria (de João Chagas desde 1924), que foi o grande rival do Jardim de S. Lázaro nos finais do século XIX, e sobre a Praça de Lisboa (antiga praça do Anjo), onde hoje existe o Jardim das Oliveiras e onde, alguns anos antes destas minhas memórias, tinha funcionado o Mercado do Anjo (inaugurado a 9 de Julho de 1839 e definitivamente destruído em 1948). Com facilidade veria também a estátua de bronze “Anja”, do escultor José Rodrigues, que lá havia e que foi roubada em Dezembro de 2006. Se fosse vivo, o senhor Andrade, por certo gostaria que a CMP, que era a proprietária da escultura roubada, propusesse a José Rodrigues que realizasse uma réplica da escultura, ou uma nova versão da mesma, e depois, ou antes, “contemplasse a memória do antigo mercado em painéis de azulejos  (Germano Silva in Porto – história e memórias), e, eventualmente voltasse a chamar àquela Praça, Praça do Anjo, já que o actual nome nada tem a ver com a cidade.

Arca do Anjo - fot. Internet
Arca do Anjo – fot. Internet

Na Praça havia a “Arca do Anjo”, e na altura da destruição do mercado temeu-se pelo seu desaparecimento. A arca, de pedra, recolhia a água que vinha do manancial de Paranhos e Salgueiros e abastecia o mercado e as freguesias da Vitória, Miragaia, de S. Nicolau e da Sé, e estava na rua do Anjo (hoje rua do Dr. Ferreira da Silva). Felizmente a “Arca” não se perdeu e está “guardada” nos Jardins da Quinta de Nova Sintra, localização dos ex Serviços Municipalizados de Águas e Saneamento, onde se poderá visitar e aproveitar para ver outros tesouros da cidade.

Por certo que o senhor Antero Andrade terá assistido ao ciclone que em 1941 destruiu e alterou muita da aparência do jardim da Cordoaria (fundado em 1865  pelo Visconde de Vilar d’Allen), que ninguém conhece pelo seu verdadeiro nome actual, jardim de João Chagas. No ano de 2001 sofreu nova transformação no âmbito do “Porto 2001, Capital Europeia da Cultura” (obra que foi muito contestada por algumas personalidades e associações do Porto pois que implicou uma grande e profunda modificação da aparência do jardim).

Passeio dos Plátanos
Passeio dos Plátanos

O jardim tem uma forma triangular, sendo cada lado realçado pelo alinhamento de árvores de folha caduca. A poente, em frente ao Palácio de Justiça, encontra-se uma alameda de plátanos; a sul, encontra-se o passeio das tílias; a norte, erguem-se carvalhos americanos, alguns centenários. No centro e rodeando o lago, araucárias, cedros e sequoias. Ao longo do ano, o arvoredo vai variando em cores e contrastes, dando ao jardim aparências diversas, cada uma mais encantadora que a outra.

Treze a rir uns dos outros
Treze a rir uns dos outros

Espalhadas pelo jardim estão as estátuas “Rapto de Ganimedes” (1898), de Fernandes de Sá; “Flora” (1904), de António Teixeira Lopes; “Ramalho Ortigão” (1909), de Leopoldo de Almeida; “António Nobre” (1926), de Tomás Costa; e “Treze a rir uns dos outros” (2001), de Juan Muñoz.

A rivalidade que o jardim da Cordoaria teve com o Jardim de S. Lázaro, à altura no seu apogeu de popularidade, advém da novidade, da dimensão e dos atractivos que aquele trouxe à cidade a partir de 1866, da mesma forma que este tinha tido com as alamedas das Fontaínhas, da Lapa e das Virtudes, e vencido, destronando-as de principais atracções domingueiras dos portuenses. S. Lázaro era para o Bairro Ocidental do Porto o que a Cordoaria acabaria por vir a ser para o Ocidental, um espaço público onde se faziam negócios, onde a política, a má-língua e a intriga eram o pão nosso de cada dia, e onde se realizavam, até, casamentos.

Logo após a sua abertura, o jardim foi assaltado pelos janotas e as elegantes do burgo, sendo ruidoso e alegre nos dias de descanso.

DSC04494-960xNo que era o jardim de “bom tom” do Porto, a burguesia tripeira, aos domingos, nos dias festivos e às quintas-feiras à noite, tomava conta da avenida dos plátanos que se encontrava em frente ao coreto, deixando a zona que circundava o lago à disposição dos soldados, das costureiras e das criadas de servir.

Durante a semana era um jardim calmo. Pela avenida principal passeavam-se os notáveis da cidade em amenas cavaqueiras de fim de tarde e no restante do jardim eram parte integrante deste, os fotógrafos à-la-minuta com os seus cavalinhos feitos de papelão e madeira.

Hoje, já não é aqui que os portuenses se encontram. Outros lugares e novas formas de vida transformaram o modo de conviver dos nosso concidadãos. Pelo jardim da Cordoaria já só vemos, nas manhãs brumosas, alguns velhos, amigos das pombas, que arrastam, com alguma dificuldade, a sua velhice, indiferentes ao crescente buliço da cidade, dando um aspecto poético ao local, e turistas, muitos turistas, que nos vão dando vida aos locais que já só revisitamos para nos lembrarmos das coisas belas que tínhamos e que hoje estão desaparecidas ou esquecidas ou desaproveitadas.

Devido às plantas de grande valor que se plantaram na Cordoaria, em especial à volta do lago central, o jardim foi considerado “botânico” até ao início do século XX. Os plátanos que orlam o “passeio”, alameda romântica da parte poente em frente ao Palácio da Justiça e onde se implantaram as esculturas de Juan Muñoz, são figuras estranhas, monstruosas e fantasmagóricas, como raramente se vêem. Os seus troncos disformes, que atraem os visitantes, tomaram esta forma no princípio do século XX, altura em que uma moléstia os atacou.

Sendo hoje, talvez, as árvores mais conhecidas e notáveis do jardim, não foi no entanto, sempre assim. A árvore mais notável do jardim da Cordoaria foi uma sequóia. Deveria ter sido plantada logo no altura da inauguração do jardim. Era gigante na verdade. Tinha um metro e vinte e cinco centímetros de diâmetro junto ao solo, e mais de trinta metros de altura. Um exemplar raro em Portugal.

Mas a mais conhecida de todas as do jardim, e também da cidade, a árvore que esteve ligada a lendas, estórias, superstições e equívocos, a árvore que possuía um estranho ramo em forma de cotovelo (que se partiu em 1963, aquando de um temporal), que com o tronco fazia um ângulo de noventa graus, era a “Árvore da Forca”, um Ulmeiro velho, de mais de trezentos anos, única a resistir naquele lugar (na altura chamava-se Campo do Olival), ao Cerco do Porto e à razia feita às árvores da cidade que foram cortadas para se aparelharem peças de artilharia. Na realidade nunca ninguém foi enforcado naquela árvore. Só a imaginação popular e a forma do ramo fizeram com que se dissesse que lá se penduravam os condenados à morte.

Árvore da forca (em segundo plano) - Fot. Internet
Árvore da forca (em segundo plano) – Fot. Internet

Nos seus trezentos e setenta e quatro anos de vida (morreu em Junho de 1986), esta árvore  assistiu a muita da história Nacional, desde a Restauração às Guerras Liberais e às Invasões Francesas, desde a implantação da República à Revolução de Abril. Ouviu as queixas sobre a sociedade da altura e as suas saudades de Ana Plácido (presa no mesmo local),  gritadas por Camilo, que do outro lado do jardim convivia com o famoso salteador “Zé do Telhado” nos calabouços da Cadeia da Relação (onde funciona o Centro Português de Fotografia, desde 1997).

Cidade cheia de sedução e de histórias, o Porto encerra em locais ocultos verdadeiros tesouros. Ali, junto ao Campo dos Mártires da Pátria, onde hoje é o Palácio da Justiça, existia um cruzeiro. Estava de fronte ao mercado do peixe, que lá existia, e era dedicado ao Senhor da devoção dos negociantes de peixe, por via do qual lhe faziam grande festa todos os anos. Era o padrão do Senhor da Saúde, mas todos o conheciam pelo nome de Senhor dos Peixeiros. Hoje podemos vê-lo no interior da capela de S. José das Taipas, ali mesmo na ponta sul da Cordoaria.

Como eu gostaria de poder voltar a ouvir as conversas de meu pai com o senhor Andrade.

E POR CÁ TEMOS:

Cedofeita Viva

mercado cedofeitaO Cedofeita Viva vai realizar, este Sábado 30/11, o mercado de rua Oitocentista, inspirado na segunda metade do século XIX.

Quem passar em Cedofeita e Miguel Bombarda vai ver dezenas de pessoas envergando trajes de época, a passear, cantar e dançar a valsa.
Convenhamos que será muito engraçado vir conhecer a oferta de mais de 100 bancas de artesanato urbano, petiscos, usados e velharias, num ambiente animado pelo Rancho Folclórico do Porto e pela equipa Cedofeita Viva, e aquecido por castanhas assadas em vários pontos da rua.
Haverá contos para crianças, narrados por Augusta Santos, Vânia Abreu e Vítor Fernandes, jogos tradicionais animados por Vasco Nuno Silva, e a oportunidade de valsar connosco!
O programa inclui, ainda, duas rotas pedonais em Cedofeita e no Bairro das Artes, conduzidas pela equipa CHIP – Culture, Heritage and Identity in Porto, que vai oferecer um percurso pelos 200 anos de história desta zona, enquanto decorrerão performances literárias pelos actores Margarida e Nuno Meireles (produção CulturePrint).
Visite o mercado Cedofeita Viva e reencontre também o comércio tradicional de Cedofeita!

A não perder!

O NATAL ESTÁ A CHEGAR AO PORTO

Árvore de Natal 2013 - Av Aliados - Montagem
Árvore de Natal 2013 – Av Aliados – Montagem

O Natal está a chegar à cidade!

Amanhã, sexta-feira 29/11, às 18h00, será inaugurada a iluminação na Av. dos Aliados.

Volta à avenida a grande Árvore de Natal, que tem 26 metros de altura e 14 de largura.

Para além da Árvore de Natal, a avenida vai receber novamente  “Nove Baloiços/Nove Palavras”, com as seguintes mensagens: Porto, Natal, Amor, Sonho, Abraço, Festa, Paz, Magia e Família.

Durante os fins de semana da época natalícia, haverá dança, música e histórias contadas e encantadas junto à árvore de Natal.

As restantes iluminações da cidade acendem a partir do dia 6 de Dezembro.

BOAS FESTAS, FELIZ NATAL!

MÚSICA SACRA NA IGREJA DAS CARMELITAS

CONVITE
CONVITE

7 Comments

  1. Obrigada por esta partilha que me fez recordar tempos de infância. Gostei,como sempre, do texto descritivo bem com da informação de actividades a realizar em Cedofeita.
    Abraço amigo,
    Eudora

  2. Um passeio leve pela nossa Cidade…que vai resistindo como pode aos que vão atentando contra a sua estrutura romântica, e que teimam em deixar o seu nome gravado nos lugares que agridem…

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