GIRO DO HORIZONTE – NELSON MANDELA – por Pedro de Pezarat Correia

«Parece sempre impossível antes de ser feito»

10550902_MvCyL[1]Era inevitável que, hoje, o meu GDH incidisse sobre Nelson Mandela. Até porque me orgulho de ser dos poucos portugueses que, não investidos em funções de Estado, tiveram o privilégio de o conhecer pessoalmente e de, em público, lhe dirigir uma saudação. Em 5 de Outubro de 1993, já depois da sua libertação e ainda antes de ser eleito presidente da República da África do Sul (RAS), visitava Portugal e, num almoço que lhe foi oferecido no Castelo de São Jorge pelo Movimento Português Contra o Apartheid, a que então presidia, coube-me a honra de, na mesa que com ele partilhava, o saudar. Guardo-o como momento inesquecível da minha vida pública.

Não vou fazer o elogio de Nelson Mandela, nem destacar as virtudes deste Cidadão do Mundo, que viveu uma vida de luta e resistência exemplar. Quatro dias depois da sua morte já tudo se disse e Mandela merece mais do que a reprodução de louvores que, por muito repetidos, correm o risco de se tornarem lugares comuns. Apenas quero registar algumas notas que o respeito pela sua figura não me deixa calar.

Gerou-se na comunicação social uma polémica sobre a mensagem de condolências do presidente português, Cavaco Silva, que em 1987 era primeiro-ministro quando a delegação portuguesa na ONU juntou o seu voto ao dos EUA de Ronald Reagan e ao da GB de Margaret Thatcher, contra uma resolução que veio a ser aprovada por larga maioria, apelando à libertação incondicional de Nelson Mandela. Afinal o voto terá sido “apenas” contra a legitimação da resistência armada na luta contra o apartheid. Depois vieram as habituais justificações esfarrapadas a que Cavaco Silva já nos habituou, a guerra civil em Angola, a guerra civil em Moçambique, os emigrantes portugueses na RAS. Esqueceu-se que as guerras civis eram fomentadas e apoiadas pela RAS que, de resto, mantinha estes seus vizinhos sob continuada agressão armada. Ao negar o direito à resistência armada contra a violência do apartheid sobre os sul-africanos, sobre os angolanos, sobre os moçambicanos Portugal, implicitamente, tomava partido a favor de Pretória. Pois é, nessa altura Nelson Mandela ainda estava preso e Portugal votava com os que ainda o consideravam “terrorista”.

Com esta atitude Portugal evitava a questão de fundo, fugia a distinguir sobre a génese da violência, se estava no próprio regime ou na resistência à violência do regime. Aceitava ou não o governo português como legítima, a resistência violenta contra a opressão violenta? O artigo 21.º da Constituição da República Portuguesa então em vigor e que se mantém na atualidade, proclama que «Todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública.» Aquele voto português na ONU ofendia a sua própria constituição, ofendia os que em Portugal e nas colónias haviam lutado contra a violência da ditadura colonial, ofendia o 25 de Abril paradigma de resistência armada contra a violência de um regime ilegítimo.

A política estúpida e de vistas curtas que condescendia com Pretória invocando a defesa dos interesses da numerosa colónia de emigrantes portugueses nem sequer alcançava que, numa altura em que o apartheid já estava em evidente declínio, os interesses da comunidade portuguesa na RAS não passavam pelo alinhamento com o governo da minoria branca, mas na solidariedade com a maioria negra em vésperas de conquistar o poder e o reconhecimento internacional.

No programa Quadratura do Círculo da SIC Notícias do passado dia 5, Lobo Xavier, essa figura de topo da direita envernizada, com visível incómodo, fazia um esforço para não destoar no elogio a Nelson Mandela, não sem que frisasse que se referia ao Mandela dos tempos recentes. Queria que entendêssemos que se demarcava do Mandela guerrilheiro, o Mandela que se decidiu pela luta armada de libertação nas fileiras do ANC, em solidariedade com os seus concidadãos vítimas de uma opressão inominável, quando a violência da repressão do apartheid não deixava outra alternativa. Decisão que o que o levou à prisão durante 27 anos. Como se fosse possível isolar o cidadão Mandela, o estadista, o humanista, do militante, do guerrilheiro, do combatente solidário disposto a morrer pelo seu povo. Condição que Mandela nunca renegou. A tentativa de descaraterizar a globalidade do seu percurso é um insulto à memória de Nelson Mandela que foi o que foi, porque também foi guerrilheiro de uma causa justa. Recusou mesmo uma libertação isolada a troco do abandono e condenação da luta armada. Colocou a liberdade como valor universal acima da sua própria liberdade. «A vossa liberdade e a minha não podem ser dissociadas» é um dos seus pensamentos mais nobres e que levou aos extremos porque, na “vossa liberdade”, incluiu a liberdade dos seus camaradas, do seu povo, mas até dos que tinham sido seus adversários, seus algozes e seus carcereiros.

Nelson Mandela situa-se noutra dimensão, que louvores hipócritas não alcançam. Situa-se num patamar no qual, em meu juízo, incluo um número muito restrito de Cidadãos do Mundo do século XX. Daqueles que, nesse século decisivo para a libertação do Homem, se deram empenhadamente a esse combate. Mahatma Gandhi, Che Guevara, Rigoberta Menchú, Luther King, Rosa Parks, Willy Brandt, Amílcar Cabral, entre outros mas muito poucos mais, emparceiram com Nelson Mandela. São os eternos. Se um ser humano vive para além da morte enquanto deles perdura a sua memória, destes eleitos jamais a humanidade se esquecerá.

Não escandaliza considerar que, mesmo entre estes, Mandela sobressai. Não apenas porque a sua presença ainda está muito viva, mas porque terá sido, de todos, o que enfrentou condições mais adversas.

Dezembro de 2013

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