Novas Viagens na Minha Terra – Série II – Capítulo 152

Acordo ortográfico

imagem158Quando me sentei com Emma no lugar de Santelmo, passaram no sentido contrário vários caminhantes. Exprimiam-se numa língua quase sem conotação regional, para eles seria decerto galego, para mim era português… Tratava-se – é claro – de um grupo de citadinos com formação universitária; sinto em contrapartida alguma dificuldade na compreensão dos camponeses galegos, mas também o português popular de Castro Verde – aqui ao pé de mim – não me parece dos mais fáceis. A barreira que realmente me separa do galego é a leitura; a ortografia isolou-o das outras variantes da língua. Fechou-o em casa.

Eis a razão que me leva a querer aplicar o acordo ortográfico: tenho consciência de falar, de escrever a grande língua portuguesa. Quem proclama que “escreve em português” por não seguir o acordo ortográfico mostra que nunca refletiu sobre linguística; o que é uma língua, qual a sua natureza, como evolui no tempo e no espaço… Ao contrário do que eles afirmam, a ortografia não é o português, mas apenas um código de registo; pode haver – há a transcrição fonética – outros, a língua permanece igual.

A ortografia é uma estrita convenção. É um compromisso mais ou menos equilibrado para representar distintas maneiras de falar nas regiões lusófonas: de Faro a Fortaleza. É um pacto no espaço e no tempo, discutido, assinado pelos que detêm o poder, portanto muito mais Lisboa e Brasília do que Rabo de Peixe e João Pessoa. É um atrelado de hábitos e tradições que a língua vai arrastando atrás de si… É todavia igualmente o ponto de encontro dos lusófonos numa sociedade que pôs a escrita no centro da comunicação. A difusão planetária do texto continuará a progredir através da Internet; importa que usemos o mesmo código.

Estes debates fazem-me lembrar da minha avó que – nas Sarzedas do Vasco – achava o português “do outro lado da serra” muito feio… O acordo ortográfico reúne uma comunidade linguística multicontinental – para além das serras e dos oceanos – enquanto a divergência, equivalente à opção galega, nos fecha numa língua magnífica no passado, mas lida no século XXI apenas neste lado da serra. No que me toca: faço parte da que se fala e escreve – agora – de Braga a Belo Horizonte passando por Luanda e Maputo; o que não me obriga a falar, como alguns ignorantes me opõem, à maneira brasileira, luandense ou maputense. A minha variedade é lisboeta, enriquecida na infância por Tomar e pelas Sarzedas do Vasco, mais tarde pela universidade que me fez estudar latim, paleografia, sociolinguística, história da língua, que me fez descobrir a literatura clássica, moderna e contemporânea, mas também por todas as experiências da idade adulta, através de Goa, Ceilão, Macau, do Brasil, da Galiza, dos lusófonos parisienses, através igualmente de livros, de discos, de filmes, da impensa, de documentários, de encontros com alcoutenejos e albicastrenses, através do próprio encontro com a língua francesa… Cada um de nós fala – por razões biográficas – uma língua absolutamente única que comunica com as outras através de pontes. E uma delas é a ortografia.

A sociedade global não se desmorona se me encolher – com medo – dentro da despensa; quem perde com a clausura sou eu. Não me quero limitar à tábua que atravessa do meu português ao português do meu irmão, nem à passarela – pouco maior – que vai de Lisboa à ilha do Faial; quero uma ponte Vasco da Gama para todos os continentes. Gosto das palatais de Viseu, das vogais açorianas, da criatividade cabo-verdiana e guineense e são-tomense… Amo toda a língua portuguesa na sua história, na sua geografia, na sua literatura. Todas as suas pronúncias. Todo o seu léxico. Todos os seus ritmos. Mas quero que a língua portuguesa se mantenha una – e a comum ortografia contribuirá para a consciência de fazermos parte da mesma comunidade linguística.

Os que tanto se irritam com o acordo ortográfico (que os obriga a mudar: traumatismo nunca confessado) combateriam mais utilmente em prol da língua portuguesa se assediassem os que na rádio pronunciam “treuze” em vez de “treze”. Para só dar este exemplo… Terão muito com que se ocupar. É que os portugueses não precisam dos brasileiros para dar pontapés não só na ortografia mas também na sintaxe, na fonética, no léxico, enfim… em toda a sua língua materna. É este o traumatismo mais danoso. Não vos parece?

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