GIRO DO HORIZONTE – A PALESTINA E O APARTHEID – por Pedro de Pezarat Correia

10550902_MvCyL[1]            Publico hoje a terceira e última de três reflexões que o “momento Mandela” me suscitou e que programei para inserir no meu Giro do Horizonte de A Viagem dos Argonautas. Não quer dizer que não possa voltar a ser motivado pela figura de Nelson Mandela mas, se o fizer, será inopinadamente e fora desta série que programei.

            O falecimento deste “meu herói contemporâneo” proporcionou e continua a proporcionar textos notáveis, dispersos por todos os tipos de media, a maioria dos quais, evidentemente, me passou ao lado. Daqueles a que tive a ventura de ter acesso selecionei um, porque aborda matéria a que tenho dado atenção e constitui foco das minhas preocupações. Aliás já aqui por mim abordada no GDH de 19 de Março de 2012, o segundo duma série que intitulei “A impunidade de Israel” e que deu lugar a um interessante e animado debate entre os nossos companheiros de viagem Carlos Loures, João Machado e Augusta Clara.

            Nesse texto procurei estabelecer o paralelo entre o impasse na Palestina e o que se vivera na África do Sul até à última década do século passado. E chamava a atenção para o fato de ter sido possível desbloquear a situação neste último país transferindo o poder para a maioria negra, sem que ocorresse o apocalipse que se receava com a expulsão da minoria branca que, pela força das armas, mantivera a ignomínia do apartheid e a exclusão dos não-brancos. E concluía anotando que a transição na África do Sul deveria servir de alerta para a Palestina, onde o poder sionista mantinha um regime de apartheid aplicado à maioria não judaica, com semelhanças óbvias com o da África do Sul. Assumo integralmente tudo quanto então, há quase dois anos, escrevi, acrescentando que a grande diferença é que na África do Sul o apartheid assentava numa discriminação identitária de base étnica, enquanto na Palestina a discriminação identitária é de base religiosa.

            Ora, a propósito de Nelson Mandela, Benjamin Barthé escreveu, em 12 de Dezembro, no Le Monde, um artigo muito interessante, “Nelson Mandela um héros encombrant pour Israel” que vem, justamente, ao encontro das questões que levantei.

            Deixo de lado a ironia demolidora com que Barthé desmonta as justificações pueris com que Natanyahou baseia a sua ausência em Pretória e a reescrita da História em que ele e Shimon Peres fundamentam a evocação do “combatente da liberdade”, do “adversário da violência”, do “resistente contra as discriminações e o racismo”. Mais importante é a sua denúncia da aliança militar dos Estados judaico e sul-africano nos anos 1970 e 1980, era Peres ministro da defesa, contra as “organizações terroristas” da OLP de Arafat e do ANC de Mandela. E da receção em Jerusalém, em 1976, do dirigente racista e simpatizante nazi Johannes Vorster, primeiro-ministro sul-africano. E a forma como desmascara Netanyahou que não quis correr o risco de se cruzar em Pretória com Ismail Coovadia, ex-embaixador da África do Sul em Israel que em Junho deste ano, depois de terminado o seu mandato, denunciou o comportamento israelita na Cisjordânia e em Gaza, como uma réplica do apartheid, ou com Ahmed Kathrada, sul-africano de origem indiana companheiro de prisão de Mandela que liderou a campanha internacional pela libertação de Marwan Barghouti, dirigente da Fatah, guerrilheiro e apoiante do processo de paz, nacionalista palestiniano que nos territórios ocupados é visto como o Mandela palestiniano.

            Barghouti que, da prisão de Hadarim onde cumpre pena de prisão perpétua, dirigiu uma memorável mensagem póstuma a Mandela, símbolo em que afirma inspirar-se, da qual extraio esta passagem exemplar: «Disseste: “Nós sabemos muito bem que a nossa liberdade é incompleta sem a liberdade dos palestinos”. E de dentro da minha cela, eu digo-te que a nossa liberdade parece possível, porque tu alcançaste a tua. O apartheid não prevaleceu na África do Sul e o apartheid não prevalecerá na Palestina». Não sei se Barghouti será o Mandela palestiniano, mas sei que ele surgirá. Como surgirá o De Klerk israelita, que aliás já espreitou dos bastidores da História na figura de Yitzhak Rabin, que o radicalismo sionista se encarregou de assassinar.

            Para além dos paralelismos entre os apartheid’s de Pretória e de Tel-Aviv, também podemos encontrar muitos nas formas como os dirigentes mundiais, nomeadamente no ocidente, foram e são com eles coniventes e lhes deram e dão cobertura. Por isso, como muito bem denunciou José Goulão no seu “Mundo Cão” de 9 de Dezembro, há uma insuportável e revoltante dose de hipocrisia, ou talvez, sejamos benevolentes, de ajuste de contas com a própria má-consciência, na sofreguidão com que se quer marcar presença nas fileiras dos louvores a Nelson Mandela.

            É uma constante da História. Os políticos sempre contaram com a memória curta dos povos.

 23 Dezembro 2013

 P.S. Porque admito que possa interessar junto o texto integral da mensagem de Marwan Barghouti. PPC

 

«Prisão de Hadarim, 6 de Dezembro de 2013.

“A nossa liberdade parece possível, porque tu alcançaste a tua”

Durante os longos anos de minha própria luta, tive a oportunidade de pensar muitas vezes em ti, querido Nelson Mandela. Ainda mais desde a minha prisão em 2002. Eu penso num homem que passou 27 anos numa cela de prisão, apenas para demonstrar que a liberdade estava dentro de si antes de se tornar uma realidade de que o seu povo pudesse desfrutar. Eu penso na sua capacidade para desafiar a opressão e o apartheid, mas também para desafiar o ódio e para escolher a justiça em vez da vingança.

Quantas vezes duvidaste do resultado dessa luta? Quantas vezes te perguntaste se a justiça ia prevalecer? Quantas vezes te admiraste por que estava o mundo tão silencioso? Quantas vezes te questionaste se o teu inimigo alguma vez poderia tornar-se o teu parceiro? No final, a tua vontade mostrou ser inquebrantável tornando o teu nome um dos nomes mais brilhantes da liberdade.

Tu és muito mais do que uma inspiração. Tu deves ter sabido, no dia em que saíste da prisão, que não estavas apenas escrever a história, mas a contribuir para o triunfo da luz sobre as trevas, e contudo permaneceste humilde. E tu carregavas uma promessa que ia muito além dos limites das fronteiras do teu país, a promessa de que a opressão e a injustiça serão derrotadas, abrindo o caminho para a liberdade e a paz. Na minha cela, eu lembro-me diariamente desta missão, e todos os sacrifícios se tornam suportáveis pela única perspectiva de que, um dia, o povo palestino também será capaz de desfrutar da liberdade, do regresso e da independência, e esta terra irá finalmente desfrutar de paz.

Tornaste-te um símbolo que permitiu que tua causa brilhasse e se impusesse na cena internacional. A universalidade para combater o isolamento. Tornaste-te um símbolo em torno do qual todos aqueles que acreditam nos valores universais que fundamentaram a tua luta puderam reunir-se, mobilizar-se e agir. A unidade é a lei da vitória para os povos oprimidos. A cela pequena e as horas de trabalho forçado, a solidão e as trevas, não te impediram de ver o horizonte e compartilhar a tua visão. O teu país tornou-se um farol e nós, palestinos, estamos a lançar as velas para alcançar as suas praias.

Disseste: “Nós sabemos muito bem que a nossa liberdade é incompleta sem a liberdade dos palestinos”. E de dentro da minha cela, eu digo-te que a nossa liberdade parece possível, porque tu alcançaste a tua. O apartheid não prevaleceu na África do Sul e o Apartheid não prevalecerá na Palestina. Tivemos o grande privilégio de acolher na Palestina, há alguns meses, o teu camarada e companheiro de luta Ahmed Kathrada que, após esta visita, lançou a Campanha Internacional para a Libertação dos Prisioneiros Palestinos, a partir da tua própria cela, onde uma parte importante da história universal foi moldada, demonstrando que os laços entre nossas lutas são eternos.

A tua capacidade de ser uma figura unificadora, e liderar de dentro da cela de prisão, e ser-te confiado o futuro do teu povo enquanto eras privado da capacidade de escolher o teu próprio futuro, são as marcas de um grande e excepcional líder e de uma figura verdadeiramente histórica. Saúdo o combatente da liberdade e o negociador e construtor da paz, o comandante militar e o inspirador da resistência pacífica, o militante incansável e o estadista.

Dedicaste a tua vida a garantir que a liberdade e a dignidade, a justiça e a reconciliação, a paz e a coexistência podem prevalecer. Muitos honram agora a tua luta nos seus discursos. Na Palestina, prometemos prosseguir a busca dos nossos valores comuns e honrar a tua luta, não só através de palavras, mas dedicando as nossas vidas aos mesmos objectivos. A liberdade, querido Madiba, prevalecerá, e tu contribuíste enormemente para tornar essa crença numa certeza. Descansa em paz e que Deus abençoe tua alma invencível.

Marwan Barghouti

Prisão de Hadarim

Cela n ° 28»

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