O TEMPORAL, O SR TEIXEIRA, E UM CIMBALINO* SE FAZ FAVOR
Chove que Deus a dá e eu a olhar para o Farolim de Felgueiras.
A máquina fotográfica na mão direita, o guarda-chuva na esquerda, aberto, como convém nestas circunstâncias, e a chuva, tocada a vento forte e constante, a vir de sudoeste, e por vezes de poente.
Está nevoeiro o que pode permitir “fazer uns bonecos” giros, mas de cada vez que levanto a máquina, a chuva encharca a lente.
– Que chatice, penso!
O tempo passa e a espera por melhoria de tempo começa a ser cansativa.
– Logo estará melhor, digo entre dentes!
Devagar, retiro-me, encharcado e com frio. Apetece-me um café. Bem quente, em chávena escaldada.
Dirijo-me ao Chalé Suíço, café antigo do Jardim do Passeio Alegre, e entro. Em menos de nada as lembranças de outros tempos chegam, tropeçando umas nas outras.
Era no Chalé Suíço que parava amiúde o poeta Eugénio de Andrade. Muitas e muitas vezes o vi por lá, e se bem que fosse uma das minhas influências primárias na escrita de muitos dos meus poemas, nunca cheguei à fala com ele. Só um bom dia ou boa tarde de circunstância.
Era no Chalé Suíço que eu parava quando levava os meus filhos mais velhos a passear no Jardim, e também era ali que lanchava nos dias de jogar mini-golfe.
Há quantos anos não jogo mini-golfe! Bons tempos, aqueles.
– Bom dia, faz favor.
Estava longe, mergulhado nos meus pensamentos e a voz do empregado sobressaltou-me.
– Um cimbalino se faz favor! – saiu-me!
E o empregado virando-se para o balcão – Um café … e de novo para mim – curto?, normal, respondi.
Um cimbalino… há quanto tempo não pedia assim o meu café. Um cimbalino! Tem piada, pensei, há poucos dias li uma crónica de Onofre Varela onde se falava do cimbalino e do sr Porfírio, que lhe tinha inventado o nome. Por causa dessa crónica, fui à rua de Santa Catarina, ao café Aquarela, beber um. Era o único sítio, que eu conhecesse, que os servia. No tempo em que eu parava diariamente em Santa Catarina e ia amiúde ao Primeiro de Janeiro, era ali que tomava o meu. Gostava do ambiente. Pedia-se um café, e os empregados e o dono viravam-se para o balcão e diziam
– Um cimbalino!
Já há uns anos, poucos, que ali não ia, três, talvez.
Entrei e dirigi-me à sala lá ao fundo. O empregado, de dentro do balcão pergunta
– Café?
– Sim, se faz favor. Respondi.
Na parede um cartaz amarelo dizia, café 0,60€.
Quando o empregado chegou com a bebida perguntei-lhe se já não utilizavam o termo cimbalino, ao que me respondeu que não, já ninguém o usava, que estava ali há oito anos mas que já há alguns anos que tinham mudado o cartaz que dizia cimbalino para o que dizia café.
Gostaria de ter falado com o dono do café, mas o senhor não estava.
Que desilusão! Que tristeza me assaltou nesse dia.
Que grande oportunidade que os donos daquele café deitaram a perder. Em vez de se elevarem pela diferença, diminuíram-se pela igualdade.
Apercebi-me nesse dia que o cimbalino tinha falecido (de vez?), já que o último bastião de resistência que eu conhecia, o único estabelecimento de venda de café à chávena que eu conhecia e que mantinha o nome inventado pelo sr Porfírio, também esse tinha perecido à voragem da globalização dos termos e, quem sabe, se à concentração e colonização verbal, bem assim como à disseminação dos termos considerados “bem”, com a consequente ablação dos restantes.
Claro que se eu mandasse, ou pudesse mandar, ressuscitaria o nome como marca da cidade, fazendo uma campanha a nível autárquico para a sua renovada implantação. Se preciso fosse ia a Lisboa buscar o sr Porfírio, agora com quase 86 anos, para dar a cara pela campanha. Deixar morrer o cimbalino é que não!
Nas minhas andanças pela vida e nas minhas defesas do que é genuinamente nosso, sejam eles termos ou coisas, sejam eles da minha região ou do meu País, cheguei até a ouvir dizer, que dizer “cimbalino”, tal como outros termos característicos da minha cidade, era provinciano, separatista, regionalista no pior sentido, e não me ficava nada bem.
Pobres coitados!
Seria por causa disso que me saíra assim,
– Um cimbalino se faz favor!?
E, como os pensamentos são assim mesmo, saltei para outras lembranças, outros lugares e outras gentes, ainda com os cimbalinos a bailarem-me nas recordações.
Estávamos em meados dos anos sessenta. Nessa altura, de entre muitas coisas, duas havia que faziam parte do quotidiano de todos nós. A ida diária ao café e o grande começo da proliferação dos cafés com máquinas Expresso.
À época, o café de saco era o café por excelência e o do café Progresso o melhor de todos (um dia irei falar dele), com fama e renome a condizer.
Os empregados de café, normalmente gente honesta, simples e afável, ganhavam muito pouco, e o seu salário era melhorado com as gorjetas dos clientes. Ainda hoje é mais ou menos assim, embora os ordenados sejam já substancialmente melhores.
Havia no entanto alguns empregados que, para melhor subsistirem, e acreditando que os seus patrões os exploravam, usavam de subterfúgios para ganharem mais um pouco.
As coisas passavam-se assim. Cada funcionário tinha uma gaveta com chávenas, vinte salvo erro, que compravam ao balcão. De cada vez que acabavam de vender vinte cafés, entregavam a gaveta cheia de chávenas usadas e recebiam em troca uma outra de chávenas lavadas, e pagavam o respectivo valor. Era fácil e tudo girava sobre rodas. No entanto, os funcionários que usavam do estratagema de tentar ganhar mais algum dinheiro do que o devido, usavam a mesma chávena para servir mais do que um café, e assim, cada gaveta de vinte chávenas valia trinta ou mais, ou mesmo muito mais se não houvesse qualquer controlo.
Com a chegada dos cimbalinos isso acabou, ou começou a acabar. A máquina passou a estar dentro do balcão, virada para os empregados que lá trabalhavam, e não virada para fora, para os empregados de mesa, de forma que, de cada vez que um cliente pedia um cimbalino, era necessário pedi-lo ao balcão, entregando para isso uma chávena lavada e previamente comprada. Para além disso, o café expresso tinha espuma que não saía com uma simples passagem de água quente, como o café de saco, o que impedia a manigância de servir mais do que um café na mesma chávena.
Havia funcionários que não gostavam dos cimbalinos.
Chamava-se Teixeira e era um dos empregados de um café que hoje, como muitos, é um banco, e que, como muitos colegas seus, não gostava dos cimbalinos, fossem quais fossem as suas razões.
Por defeito de educação, na altura éramos quase todos educados dessa maneira, toda a gente o tratava por sr Teixeira, pese embora o sabermos que o homem era antipático.
De cada vez que alguém lhe pedia um cimbalino, e nessa altura já começava a estar na moda, o sr Teixeira resmungava, punha cara feia (o que não era difícil já que todos os antipáticos assim a têm), e quase atirava o café para cima da mesa de quem lho pedira.
Nós, chavalos e irreverentes, pensávamos diariamente numa forma de lhe ensinarmos e lhe dizermos que ele estava errado. Mas o sr Teixeira era já velhote e estava próximo da reforma e portanto era digno de respeito (se fosse hoje, esta parte de digno de respeito não era considerando a ter). E, como, não o desrespeitando, lhe poderíamos fazer ver que ele estava errado?
Numa tarde de um dia de semana, estava o sr Teixeira de serviço, entrara depois da hora do almoço, e o café estava vazio. Provavelmente não teria vendido nenhum café ainda. Éramos quinze rapazolas e eu um dos mais novos, e entramos no café. Espalhamo-nos pelas mesas, mais ou menos a meio do recinto, todos seguidos, dois a três em cada mesa. Sorridente, provavelmente na esperança de vender quase uma gaveta de chávenas, mais uma outra qualquer iguaria, dirigiu-se ao primeiro.
– Faz favor…
– Não quero nada, obrigado
e ao segundo
– Faz favor…
– Não quero nada, obrigado
e ao terceiro, e ao quarto, e por aí fora, obtendo de cada um a mesma resposta
– Não quero nada, obrigado
A cara do sr Teixeira foi-se fechando à medida que as respostas se sucediam. Quando já estava quase a explodir, deixando de ser delicado como muitas vezes antes acontecera com outras pessoas, chegou ao último do grupo e não lhe perguntando nada, virou costas num repelão.
O meu amigo, o mais velho do grupo e o último das mesas falou
– Ó sr Teixeira, e eu?
O sr Teixeira parou e olhou para trás
– Por favor traga-me um cimbalino.
Segundos de silêncio…
Quando já estávamos quase todos a começar a rir, nas costas do sr Teixeira, ouvimos o som característico de uma bandeja a cair no chão.
O sr Teixeira estava lívido e encostado à coluna junto às escadas que permitiam o acesso ao balcão. Quase nos arrependemos do que fizéramos, mas não tivemos oportunidade de lho dizermos. O sr Teixeira foi-se embora furioso, só regressando, muito mais calmo, no dia seguinte.
Segundo me disseram, nunca mais resmungou ou tratou mal um cliente, quando lhe pediam um cimbalino.
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*- Cim-ba-li-no, substantivo masculino, (Portugal-Norte) Café feito em máquina de pressão e geralmente servido em chávena pequena.
(Dicionário Priberam on line)
POR CÁ:
O Majestic, considerado como o sexto mais belo café do mundo pelo site cityguides e distinguido pelo TripAdvisor com o Certificado de Excelência, entre outras distinções como a Medalha de Mérito Turístico e a Medalha Municipal de Mérito-Grau Ouro, vai estar encerrado para obras de manutenção até ao dia 1 de Fevereiro.
Até lá, tomemos um cimbalino noutro café do Porto, que os há tantos, e muitos bem bonitos e emblemáticos.
VOTE:
A cidade é finalista na competição.
Veja AQUI
A partir de 22 de Janeiro VOTE em http://www.ebd2014.com
Café feito em máquina de pressão e servido geralmente em chávena pequena.
“cimbalino”, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, http://www.priberam.pt/DLPO/cimbalino [consultado em 09-01-2014].
cim·ba·li·no
(Cimbali, marca registada + -ino)
(Cimbali, marca registada + -ino)
substantivo masculino
[Portugal: Norte] Café feito em máquina de pressão e servido geralmente em chávena pequena. = BICA, EXPRESSO
“cimbalino”, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, http://www.priberam.pt/DLPO/cimbalino [consultado em 09-01-2014].
cim·ba·li·no
(Cimbali, marca registada + -ino)
(Cimbali, marca registada + -ino)
substantivo masculino
[Portugal: Norte] Café feito em máquina de pressão e servido geralmente em chávena pequena. = BICA, EXPRESSO
“cimbalino”, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, http://www.priberam.pt/DLPO/cimbalino [consultado em 09-01-2014].
cim·ba·li·no
(Cimbali, marca registada + -ino)
(Cimbali, marca registada + -ino)
substantivo masculino
[Portugal: Norte] Café feito em máquina de pressão e servido geralmente em chávena pequena. = BICA, EXPRESSO
“cimbalino”, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, http://www.priberam.pt/DLPO/cimbalino [consultado em 09-01-2014].
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Gostei muito desta crónica que partindo de uma tempestade real na beira mar, nos levou para o centro a cidade onde uma outra “tempestade” causada pelo cimbalino quase atirou com o Sr, Teixeira para o chão…
* Um texto bem revelador de uma poca de valores tinha chegado ao fim -interessante -Maria *
Os meus Parabens por este texto magnífico; eu também sou do tempo do Cimbalino, que chegou depois depois do café de saco e da cevada. Infelizmente vivemos uma época em que os valores morais desapareceram, e o resultado está à vista. Um Abraço.