UMA CARTA DO PORTO – Por José Fernando Magalhães (20)

CARTA DO PORTO

O PASSEIO ALEGRE, AS PALMEIRAS E A TREMELIQUEIRA

Foi local de romaria nocturna durante algumas dezenas de anos.

Era vê-los, alinhados, lado a lado, à espera que o fenómeno acontecesse.

E acontecia todas as noites do ano. Sem falhar, pontualmente, noite dentro. Por vezes acontecia também durante o dia, mas para tal era necessário que acontecesse uma qualquer tempestade ou chuva intensa, que tirasse as pessoas da rua.

Os carros, era dos carros que eu falava, e das pessoas que estavam dentro deles, quase sempre casais, estacionavam de frente para o rio, entre as palmeiras quase, ou mesmo, centenárias.

E esperavam!

No mesmo local, estacionavam também, durante os dias soalheiros e em especial ao fim de semana, outros carros e outras gentes. Estas gentes, mais velhas que as outras, não vinham apreciar o fenómeno, já que ele se não manifestava nessas alturas, vinham, eles, ler o jornal e ouvir os relatos de futebol, e por vezes dormitar, e elas, fazer tricô e acompanhá-los fisicamente (raramente conversavam uns com os outros) no adormecimento provocado pelo sol. Também vinham apreciar os barcos que passavam, as gaivotas e as pombas, e os pescadores que, na meia laranja, tentavam a sua sorte.

"A Foz está viva! Tenho-a diante de mim, a Foz de outrora, a Foz que já não existe (...) A Foz vai doirando lentamente, ano atrás de ano, crestada pelo ar do barro, camada de sol, camada de salitre..." (Raul Bradão in "Daqui Houve Nome Portugal") Reprodução da aguarela "Palmeiras" (avenida D. Carlos I) da autoria de Alírio Seabra (já falecido). (Propriedade particular) Imagem e legenda retirados da página  "A Nossa Foz do Douro" do Facebook
“A Foz está viva! Tenho-a diante de mim, a Foz de outrora, a Foz que já não existe (…) A Foz vai doirando lentamente, ano atrás de ano, crestada pelo ar do barro, camada de sol, camada de salitre…”
(Raul Bradão in “Daqui Houve Nome Portugal”)
Reprodução da aguarela “Palmeiras” (avenida D. Carlos I) da autoria de Alírio Seabra (já falecido). (Propriedade particular)
Imagem e legenda retirados da página “A Nossa Foz do Douro” do Facebook

Mas voltemos aos primeiros.

Esperavam…, e nunca era preciso esperar muito tempo.

Pouco tempo depois de chegarem os primeiros, o fenómeno começava a acontecer. Estranhamente, quem, por um qualquer acaso, passasse a pé pelo local, nada sentia.

Mas via!

Um a um, os seus habitantes tinham já esquecido por completo as luzinhas dos barquinhos de pesca de arrasto (desculpa esfarrapada que usavam para justificar a sua ida e posterior permanência no local), os carros começavam a abanar, e quando um parava outro começava, como se o chão tremesse, provocado por uma espécie de tremor de terra que só os automóveis sentiam. Era um acontecimento único na cidade, só comparado, na altura, ao fenómeno similar que acontecia no descampado existente em frente à refinaria de Leça da Palmeira, entre esta e o mar, para onde, hordas de carros iam “ver” corridas de submarinos à luz da “chama da Sacor” e apreciar o fenómeno do tremelicar intenso e satisfatório, que acabaria por terminar quando fizeram as obras para o arranjo urbanístico da zona.

Também aqui, entre as palmeiras (102, das quais 63 são centenárias e classificadas como árvores de interesse público), com o belíssimo jardim nas costas e o rio à frente, o fenómeno acabou por deixar de se sentir.

Também aqui, com o farolim de Felgueiras à nossa direita a deitar luz, isto de deitar luz já acabou faz tempo, e os “Pilotos” à esquerda, deixaram de se sentir os fenómenos tão do agrado dos mais jovens e também, diga-se em abono da verdade, de muitos não tão jovens.

E tudo isso porque a CMPorto decidiu proibir o estacionamento “em espinha” na Avenida D. Carlos (é assim que se chama a avenida das Palmeiras), talvez que para proteger a moral e os bons costumes das gentes tripeiras. Ainda houve quem, durante algum tempo para lá fosse apreciar a tremeliqueira, mas, a Polícia Municipal teve um papel primordial no acabar de tal hábito.

Jardim do Passeio Alegre - vista de Nascente - Os Obeliscos de Nasoni em primeiro plano
Jardim do Passeio Alegre – vista de Nascente –
Os Obeliscos de Nasoni em primeiro plano

Hoje é o que se sabe e vê, os fantasmas das tropas de D. Pedro IV que, após o desembarque na praia do Mindelo, em 1832, na altura do Cerco do Porto, tinham avançado para a cidade do Porto, e passado entre os obeliscos de Nasoni que estavam na Prelada e hoje se encontram no início nascente do jardim, e que por certo provocavam com o seu marchar as tremeliqueiras nos automóveis, foram marchar para outro lado, à espera que os descubram em outras zonas do seu percurso, ou, e esta é a hipótese mais correcta, ainda se mantêm por ali, para cá e para lá entre os obeliscos, mas não têm quem os sinta ou possa sentir (às marchas que tudo fazem tremer).

O Jardim foi construído com o desenho de um jardim romântico, com um chafariz (também de Nasoni e que, como os obeliscos veio da quinta da Prelada) na entrada poente, e lagos e esculturas e um coreto, hoje já quase sem préstimo como todos os seus irmãos espalhados pela cidade, e os obeliscos do lado nascente, e tendo sido plantadas árvores, hoje centenárias, tais como tílias, palmeiras (doentes nos dias de hoje com o ataque do escaravelho vermelho), plátanos, ciprestes, araucárias e pinheiros, e enxameado de dezenas de bancos de madeira, confortáveis (não como outros que hoje se fazem, de pedra cinzenta, duros e frios, ou com “design” futurista, uns e outros com risco de arquitecto, mas totalmente desconfortáveis), e assim continua (romântico), tendo sido poupado, sabe-se lá como ou porquê, à voragem cinzentista da Porto 2001.

da direita para a esquerda - Capela de N.S. da Lapa, farol S. Miguel-O-Anjo, Jardim do Passeio Alegre, farolim de Felgueiras
da direita para a esquerda – Capela de N.S. da Lapa, farol S. Miguel-O-Anjo, Jardim do Passeio Alegre, farolim de Felgueiras

brasão da foz do douroO jardim do Passeio Alegre não foi sempre assim, um jardim à beira mar plantado, o jardim da Foz do Douro. Foz de gente ilustre, de artistas e de poetas, António Nobre, Irene Vilar, Eugénio de Andrade (que, para vergonha dos Portuenses, já teve uma fundação na rua do Passeio Alegre mas que nos “fizeram o favor” de acabar com ela), Vasco Graça Moura, Raúl Brandão (que tem monumento em sua memória na Av. D. Carlos), e outros. Foz do Douro que, para muitos ainda, os mais velhos, faz parte da cidade do Porto mas não está nela, é tão somente a Foz, terra onde se “vive” e de onde se vai ao Porto fazer seja o que for.

Em tempos, o espaço onde está o jardim foi até, um vasto descampado com uma enorme poça, usufruídos em exclusivo pelos pescadores, depois praia e, mar. Mar da barra do Douro.

Na altura, a Cantareira era costa marítima, imagine-se!

Como se pode ver de seguida, pelas datas, a construção do jardim e do cais onde ficaria o farolim (começou a sua construção em 1790) e tudo o mais que disse respeito ao arranjo da barra do Douro, foi muito lenta, à velocidade da entrada de dinheiros para a obra.

O jardim só começou a ser construído em 1860, com a edificação de um molhe que permitiu secar a poça que ali existia, e as primeiras árvores foram plantadas em 1870 (em 1873, “o Passeio Alegre é gente e poeira, americanos e árvores raquíticas” – em O Tripeiro). As árvores mais raras, plantadas no jardim, como as Araucárias Australianas vieram da Alemanha.

Ficou pronto (o jardim) em 1892 embora a sua inauguração tenha ocorrido quatro anos antes, poucos anos depois da inauguração do farolim de Felgueiras (1886), mas desde 1874 que já um dos seus ícones de hoje existia, o Chalé.

O Chalé foi, desde a sua construção, paragem obrigatória das gentes importantes da Foz. Ainda hoje ostenta no cocuruto do telhado a escultura do Carneiro, bem pintado de branco. O Chalé assistiu, ao longo dos anos, a encontros breves e furtivos, entre brumas e penumbras, de quem vinha do Porto num dos eléctricos (o 17, o 2 com traço ou o 18 com dois traços), e também a tertúlias literárias e outras (Camilo Castelo Branco, Arnaldo Gama, Ramalho Ortigão, Alberto Pimentel e outros, eram frequentadores assíduos), e a tardes e noites chiques. Mas as tertúlias aconteceram nos seus tempos áureos, e os encontros breves e furtivos, enquanto o automóvel não tomou conta de toda a gente após a revolução. Hoje pouco mais é que um local simpático, que nos faz recordar tempos bem passados, mas onde, graças à sua actual “vestimenta” acabamos por reparar no quanto é acanhado, se bem que ainda caloroso e, até, quase romântico. Deixou de ser discreto (o que é uma pena e uma perda para todos nós pois que lhe dava uma aura maravilhosa), a partir do momento em que lhe colocaram aqueles reclamos luminosos, de um mais que discutível gosto. São realmente feios e nada a condizer com o local.

DSC05375-960xHoje, chama-se “Suisso” graças a um antigo proprietário, mas já foi chamado do “Carneiro”.

No jardim, o mini-golfe, existente desde 1967, o coreto, o chafariz, a estatuária e os sanitários públicos, construídos em 1910 e decorados com azulejos Arte Nova e loiças inglesas, são de contemplação obrigatória.

Para além do jardim, classificado como Imóvel de Interesse Público, a principal atracção turística do Passeio Alegre deveria ser o Castelo (Forte de São João Baptista) mas na realidade é o farolim de Felgueiras (o molhe e o farol adoptaram o nome do rochedo que lhes está mesmo à frente, do lado poente, a pedra de Felgueiras) e o novo paredão e mais as ondas que neles batem, que o são.

Farolim de felgueiras
Farolim de felgueiras

Também de grande interesse público e turístico deveriam ser, o farol de S. Miguel o Anjo (também conhecido por Torre, Capela ou Ermida de São Miguel-O-Anjo, é um primitivo farol português, classificado como Imóvel de Interesse Público e que é o primeiro edifício puramente renascentista datado, em Portugal, e um dos mais antigos da Europa, mandado construir em 1527. Em 1841 foi construído um edifício anexo à Capela-Farol, para aí instalar um posto da Guarda-Fiscal, e em 1852 foi edificada uma torre anexa, com 3 pisos, onde foi instalada uma estação telegráfica), o farolim da Cantareira (o farolim servia como baliza para os navegantes entrarem na barra do rio Douro, e Cantareira era o antigo nome da rua do Passeio Alegre), a Capela de Nossa Senhora da Lapa ou Capela dos Mareantes (dizem que fechada e degradada), o Marégrafo (servia para registar e medir a amplitude, fluxo e refluxo, das marés e que, infelizmente, está desactivado há já alguns anos), e a Fundação Eugénio de Andrade (já inexistente).

PASSEIO ALEGRE - FOZ DO DOURO - PORTO De cima para baixo e da esquerda para a direita Forte S. João da Foz, entrada nascente e placa a Eugénio de Andrade em frente à extinta Fundação, Coreto e Sanitários públicos, Escultura a Raúl Brandão, Capela N.S.da Lapa e vista do lado da Cantareira com farol de S. Miguel-O-Anjo e Marégrafo
PASSEIO ALEGRE – FOZ DO DOURO – PORTO
De cima para baixo e da esquerda para a direita
Forte S. João da Foz, entrada nascente e placa a Eugénio de Andrade em frente à extinta Fundação, Coreto e Sanitários públicos, Escultura a Raúl Brandão, Capela N.S.da Lapa e vista do lado da Cantareira com farol de S. Miguel-O-Anjo e Marégrafo

Seja de que maneira for, e apesar do aparente abandono “turístico” por parte dos mandantes da cidade, o Jardim do Passeio Alegre, com ou sem tremeliqueiras, continua a ser de uma leveza impressionante e merecedor de uma visita prolongada e pormenorizada.

8 Comments

  1. Quem é que não se lembra das célebres corridas de submarinos, parabéns Magalhães está muito bem escrito e contextualizado. Uma história viva. um abraço

  2. Se lhe disser que esta CARTA DO PORTO retrata fielmente a beleza e os motivos de interesse que se podem ( e devem ) apreciar nesse vasto espaço que se estende do Farol de Felgueiras até aos Pilotos, passando pelo Jardim belíssimo do Passeio Alegre ( onde é de admirar o coreto e as peças dos sanitários M and W ), não é novidade para si, pois não ?
    Poderia ter incluído o monumento ao Ferreira de Castro, digo eu…

    Um abraço-

  3. Interessante crónica sobre a Foz, o Passeio Alegre e …sobretudo pelo antigo “Hotel las Palmas”…um hotel
    grátis, com muita tremideira e com estórias magníficas…hoje “fechado”…um abraço

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