FALEMOS DE ECONOMIA, FALEMOS ENTÃO DE POLÍTICA – INTRODUÇÃO AO TEXTO DA IFRC

IFRC-logo

Introdução ao texto da IFRC (Federação Internacional das associações da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho)

Júlio Marques Mota

PARTE II
(continuação)

Num outro continente emprego foi procurar e durante um ano por lá andou a trabalhar. Mas não dava, a instabilidade política de lá e de cá, não dava para que a família se mudasse com armas e bagagens para lá do mar. Regressou, mas falido em Portugal se ganha para lá do salário mínimo é-lhe todo o dinheiro apanhado. Só tem uma saída. Procura-a, um contrato de trabalho em que para lá do salário mínimo, seja todo ele pago por baixo da mesa. Ilegalmente, portanto, livre de impostos. Encontrou-o, numa empresa a criar por um amigo seu. Trabalha intensamente durante quatro meses em que se cria a empresa, em que ele na verdade ficava como gerente, mesmo que no contrato estivesse escrito de servente. Mas a crise muda tudo, até os comportamentos. O seu patrão, seu amigo de anos, ficou portanto com um trabalhador fiel e competente que ele conhecia bem, mas ficava com alguém que podia ser tratado como um imigrante, ilegal, se necessário fosse, pois era essa a garantia que lhe oferecia o contrato. E foi isso mesmo que aconteceu. Ao fim de quatro meses, porque a empresa ainda não tinha começado a trabalhar, começado a ter receitas, recebeu, por conta, 500 euros! E depois dizem-lhe que ou ficas assim, por este ordenado, ou podes ir embora e vai reclamar para a “p. que te pariu”. Foi assim mesmo, um contrato entre amigos estabelecido, um contrato entre inimigos rompido. E entretanto os filhos vão crescendo, o outro lado do mar vai ficando distante, não navegável agora esse oceano, e a precariedade instalou-se e difundiu-se a todos os membros da família. E a consequência lógica, natural, inscrita na ordem da crise, aconteceu, isto é, veio a separação, veio o divórcio. Agora nem casa barata nem cara, agora volta para casa dos pais. O fim de um ciclo, talvez. Assim penso. Aliás o texto da Cruz vermelha vai no mesmo sentido:

“O diretor-geral do Comité Internacional da Cruz Vermelha (ICRC), Yves Daccord, referiu-se a esta situação, de forma semelhante durante um encontro organizado pela Cruz Vermelha finlandesa em Julho de 2013. “A Europa tem um longo registo de manutenção de uma plausível confiança no futuro dos seus jovens, mesmo durante crise económica e social. Nada mais. Com os preços a subirem e com o desemprego a aumentar de forma galopante, os jovens citadinos já não vejam nenhum futuro para si mesmos, e os governos começam a perder a credibilidade e a sua própria legitimidade,” disse ele, advertindo que algo de dramático pode acontecer na Europa.

Nós iremos ver algo a acontecer. Não necessariamente uma repetição do que aconteceu algures, onde as pessoas gritaram por liberdade, mas vamos ver alguma coisa. Está já a haver muita pressão dirigida contra os governos.”

Fim de um ciclo, penso eu a propósito do meu amigo que quer emigrar mas não sabe sequer para onde, se é que há um onde para onde possa emigrar. Sinceramente duvido que haja. Fim de um ciclo e ele está na parte mais funda do cilco, como está praticamente quase toda a Europa. Em termos gerais, o director-geral da Cruz vermelha fala no mesmo sentido, creio. A saída da crise não se determina nas ruas é certo, fiquem disso descansados todos os que estiveram na conferencia realizada na Culturgest sobre a crise do euro, mas o pontapé de partida necessariamente passará pelas ruas. Passará por serem as ruas a impô-lo, disso não tenho dúvidas. Até porque a marcha da História ninguém a pode deter, uma vez criadas as linhas de força que a fazem cavalgar sobre as forças da desumanidade agora instalada. Fim de um ciclo, na parte mais baixa do ciclo, à espera da força da História, do desencadear da sua dinâmica, é isso, para dessa parte baixa todos nós nos erguermos.

Fim de um ciclo, em que o neoliberalismo tentou destruir o estado Social e veja-se a fúria e o despudor com que o está a fazer, ao que dele ainda resta. Ramaux tem razão quando nos disse na Culturgest:

A grande crise atual tem duas vertentes: a do modelo neoliberal, é o Ato I da crise aberta em 2007; a da Europa, é o Ato II começado em 2010 e que é a crise do próprio euro. A segunda vertente, em parte, deriva da primeira: tendo sido o euro introduzido na base de um modelo liberal, a sua crise exprime a do neoliberalismo em geral. Mas não se reduz à primeira vertente: o euro acrescentou um suplemento ao modelo neoliberal, o qual se acrescenta à crise. É por isso que o Velho Continente é hoje o grande paciente da economia mundial, apesar de a crise ter nascido nos Estados Unidos e ter uma dívida pública, para citar apenas esta vertente, em média menor do que a dos Estados Unidos ou a do Japão.

(…)

O modelo neoliberal impõe-se como dominante a partir do final da década de 1970 e com um projeto claro: pôr em causa a grande revolução do Estado Social (ou Estado-Providência). O Estado Social é aqui entendido em sentido lato: não inclui só a proteção social, função à qual é frequentemente reduzido, mas inclui também a regulação das relações de trabalho e de produção (principalmente o direito do trabalho), os serviços públicos e as políticas económicas keynesianas (de rendimentos, orçamental, monetária, industrial, comercial…) de apoio à atividade económica e ao emprego. Com estes quatro pilares, as economias já não poderão ser consideradas, estritamente falando, como sendo economias de mercado, são antes economias mistas com mercado, são economias de iniciativa privada, mas também de intervenção pública. O capital ainda domina, certamente, mas o seu poder é limitado (fiscalidade, direito do trabalho) e segmentos significativos da atividade escapam ao seu controlo e à sua dinâmica (serviços públicos, proteção social). O Estado, porque é um campo específico, não é, decididamente, apenas uma muleta ao serviço do capital contrariamente ao que defende o pensamento marxista. Existe uma mão esquerda do Estado como o reconhecerá tardiamente — e sem chegar a teorizar — Pierre Bourdieu. O capital compreendeu-o perfeitamente: a partir do fim dos anos de 1970 e do início dos anos de 1980, este retoma a ofensiva contra o Estado Social. E é a atacar cada um destes quatro pilares do Estado Social que ele encontra a sua coerência global: reorientação das políticas económicas num sentido liberal, privatização e reorganização sobre um modo mercantil da proteção social e dos serviços públicos, flexibilização do direito do trabalho.2

O resultado desse combate está bem à vista. Como nos assinala o texto que estamos a querer apresentar :

“Há cinco anos, teria sido inimaginável; tantos milhões de europeus em filas de espera a pedir alimentos em cozinhas de sopa para os pobres, a receberem pacotes de comida em casa ou a serem indicados como pessoas com direito a compras com enormes descontos (lojas onde eles podem comprar alimentos a preços muito reduzidos após terem sido encaminhados pelas autoridades sociais). Pessoas outrora pertentes à classe média moram agora em reboques, roulottes, em barracas, nas estações do caminho-de-ferro ou nos abrigos para os sem-abrigo, hesitando em ir à Cruz Vermelha e ao Crescente Vermelho ou a outras organizações pedir ajuda.

Quando as pessoas pedem ajuda, é muitas vezes como um último recurso. Elas estão a pedir comida ou medicamentos ou dinheiro para pagar os serviços públicos ou o aluguer de casa para não serem despejadas das suas casas. Milhões são afectadas pela pior crise desde há seis décadas; uma crise que tem visto as pessoas estarem a perder os seus empregos e as casas, e isto quando elas nunca tenham imaginado que alguma vez uma tal situação lhes poderia acontecer; uma crise que fez com que os pobres fiquem ainda mais pobres. ‘Crise’ era suposto significar dificuldades temporárias, um solavanco na estrada da vida e que iria, em breve, passar. Quem teria imaginado que isso duraria tanto tempo e que iria afectar tantas pessoas e em tão grande profundidade ? Actualmente existem mais de 18 milhões as pessoas que receberam ajuda alimentar financiada pela UE, 43 milhões que não recebem o suficiente para comer todos os dias e 120 milhões em risco de pobreza no conjunto dos países abrangidos pelo Eurostat. E enquanto isso, ainda esperamos que a crise vá acabar em breve, quando para muitos a crise apenas começou. Ou está ainda prestes a começar.”

(continua)

______

Para ler a Parte I desta introdução de Júlio Marques Mota ao trabalho que elaborou sobre o relatório da IFRC, publicada ontem em A Viagem dos Argonautas, vá a:

FALEMOS DE ECONOMIA, FALEMOS ENTÃO DE POLÍTICA – INTRODUÇÃO AO TEXTO DA IFRC

Para ler o trabalho propriamente dito, clique na etiqueta ifrc, e aparecerão no ecrã as 19 partes em que foi publicado, mais esta introdução, que por sua vez sairá em quatro partes.

1 Comment

Leave a Reply