Dia do Porto: FOZ – Camada de sol, camada de salitre – Por Joaquim José Pinto da Silva

diadoporto

FOZ

Camada de sol, camada de salitre
Raul Brandão

Entre pinheirais e um mar revolto, adormecida entre a invernia ruidosa da barra e as mares e os estios calorosos, nebulosos por vezes, mas sempre, sempre, com o olor da maresia levado pela brisa ligeira ou as nortadas agrestes, ei-la, a Foz, a tal “de um rio… mas não de um rio qualquer”: a foz do Douro.

Habitada desde há milhares de anos, conforme achados arqueológicos das zonas da Ervilha, Castelo do Queijo e Monte da Senhora da Luz, a Foz aparece registada, isto é, entrou na História, no século XII, com uma doação do rei Afonso Henriques. Era então à Foz, supomos, uma terra mais ou menos aglomerada em torno ou próximo de uma ermida.

A sua população, por certo vivendo da pesca de rio e mar e da agricultura, teria porventura já algum reduzido comércio e relações que lhe advinham da frequentação de embarcações na barra do Douro.

Nevogilde, em 1258, pertencia também ao Julgado de Bouças e possuía 11 casais habitados, sendo a sua actividade exclusivamente agrícola. Da sua Igreja, que sobreviveu até ao século XVIII, D. Domingos de Pinho Brandão descreve-a como pequena, situada a 600 metros para ocidente da actual e hoje completamente desaparecida.

O Porto, no seu progresso económico dos séculos XIII e XIV, séria então uma povoação longínqua, à qual nenhum caminho digno desse nome a ligava. Restava essoutra “estrada”, sempre viva e atraente, a mor das vezes perigosa, chamado Rio Douro. Assim comunicou fundamentalmente, mas pouco, a Foz com o Porto e o interior duriense durante centenas de anos.

 “A arquitectura moderna em Portugal começa na Foz”, tais são as conclusões que as últimas escavações e estudos acerca da Igreja construída por volta de 1527 vêm demonstrar. Esta Igreja, “uma das mais belas criações da Renascença “foi, por razões de conjuntura (mas provavelmente por perseguição política a quem a mandou construir: o bispo de Viseu, D. Miguel da Silva), cercadas quase destruída pela construção do Castelo da Foz, iniciada a partir de 1571.

A Capela-farol de S. Miguel-o-Anjo, o próprio Palácio anexo à Igreja e as colunas e estátua no rio indicativas para a navegação, para além da própria Igreja, são um conjunto único que importaria estudar mais e a necessitar de maior relevo, correspondente à sua real importância.

Nesta altura a Foz andava pelos 1 300 habitantes (para, em 1623, ultrapassar os 1.500), enquanto Nevogilde contava apenas 79, e como ponto de comunicação e comércio e também como posto avançado de defesa cidade do Porto, a sua barra tinha uma importância crescente. Daí as diligências para a construção do Castelo da Foz que apenas apôs a Restauração, pelos anos de 1670, foi concluído.

É originado por essas obras que a Matriz da Foz, funcionando na Igreja do Castelo, se transfere para a Igreja de Santa Anastácia aguardando a construção da nova, iniciada apôs 1640, a meio de uma colina sobranceira à praia fluvial entre S. Miguel-o-Anjo e o Castelo.

Em Nevogilde, a expensas da cidade do Porto, foi construído, em 1661 ou 62, o Castelo do Queijo, sob a pedra que lhe deu o nome e arrancam, mais tarde, as obras da nova Matriz (à volta de 1730), bem no centro da povoação.

O movimento marítimo e os interesses piscatórios da região determinam a construção de um farol no Monte da Luz, junto à ermida lá existente, e que só deixará de funcionar perto de 1930, registando na sua atribulada vida vários melhoramentos e alterações.

D. Maria I faz avançar, em 1790, o piano de Reynaldo Oudinot relativo as obras da barra, nomeadamente o dique-cais entre as rochas de Felgueiras e a Capela de S. Miguel-o-Anjo. Em 1803 estão concluídas.

O Cerco do Porto, que durou cerca de um ano (1832/33), marca um período atribulado na história da Foz e da cidade. No Castelo da Foz, na “Mata do Pasteleiro”(agora a Pasteleira) e sobretudo no Monte da Luz, que servia de defesa da Praia dos Ingleses por onde lhe chegavam os víveres e armamento, instalaram-se os liberais. Do lado do Crasto e da Ervilha, estão os miguelistas, impotentes perante a determinação e a melhor posição daqueles.

Escrava da sua posição geográfica, às portas da progressiva cidade do Porto, a Foz do Douro tem ainda um efémero período de “consagração e independência”: entre 21 de Setembro de 1834 e 26 de Novembro de 1836, tem existência o Concelho da Foz, isto é, a Vila da Foz (Matosinhos só o seria em 1909). D. Maria II, naquela data, promulga a lei que íntegra a Foz na cidade do Porto.

Nos anos de 1840 a 1860, veem a Foz e Nevogilde desfilar pelas suas praias, cafés e clubes, escritores como Arnaldo Gama, Camilo Castelo Branco, Ramalho Ortigão, Soares de Passos, e tantos outros. Nasce toda a zona intermédia entre a chamada Foz Velha (a norte das ruas Alto de Vila e Cerca) e o Monte da Luz: Praça de Liège, Ruas do Farol, do Teatro, Nova do Túnel, Fonte da Luz, etc. Carreiros frequenta-se e cresce para norte, aproximando Matosinhos, e a estrada marginal Foz-Porto é aberta nos anos 50 do século XIX, criando a opcional à então única existente, a que, vindo da cidade, passava em Lordelo e entroncava na actual Padre Luís Cabral.

A primeira linha de “carril americano” é aberta entre o Porto e a Foz em Maio de1872, sendo altamente frequentada no período estival. Em 1874 é a vez de o comboio partir da actual Praça de Carlos Alberto e parar em Cadouços, seguindo, mais tarde, também até Matosinhos, atravessando, por túnel, o Monte da Luz e prosseguindo por Nevogilde até Matosinhos, pela que actualmente é a Rua de Gondarém.

Entretanto, a barra do Douro continua como cenário fantasmagórico de naufrágios mortíferos: o vapor “Porto”, em 1852, leva à morte mais de 60 pessoas.

A via Foz-Leça é finalmente estrada, “Carreiros” desaparece. A povoação da Foz passa a ter uma relação com Matosinhos e Leça tão forte quanto com o Porto.

Na actual rua com o seu nome, nasce, em 12 de Marco de 1867, o escritor Raul Brandão, que, mais tarde, testemunha esta transmutação da Foz de aldeia a centro de veraneio e povoação já com 5.000 pessoas.

À volta de 1887, o Molhe de Carreiros, que oferecia alternativa à barra do Douro quando esta era inacessível – e isto, claro, antes do porto de Leixões – estava já construído, muito embora já tivesse serventia muito antes.

Dá-se a construção da Estrada da Circunvalação, em 1895, e, no mesmo período, a integração de Nevogilde na cidade do Porto.

Morre António Nobre, na Av. Brasil 531, em Março de 1900. Os poentes da barra continuam no entanto a fazer desmaios.

Nevogilde continua a ser, por excelência, a Foz do futuro: em 1921 nasce a Estação de Zoologia Marítima, criada por Augusto Nobre, no Castelo do Queijo primeiro e depois para edifício próprio na actual avenida de Montevideu.

Ainda por divulgar e estudar como merece, a obra de Raul Brandão é, também ela, vítima do “periferismo” do seu autor e da sua temática em relação ao centro e aos interesses político-económicos dominantes. A profundidade existencial “avant la lettre” do autor não é reconhecida com este em vida… nem sequer ainda hoje. “Os Pescadores”, “Húmus”, “Memórias”, as suas diversas peças de teatro, aguardam persistentemente o recolocar da verdade histórico-literária. Em Dezembro de 1930, quando morre, Raul Brandão só não é um homem desiludido… porque não tinha ilusões acerca da sociedade que o rodeia e das elites que a dirigem.

A Foz e Nevogilde continuam no seu crescimento bivalente: residência de milhares de trabalhadores e funcionários, sobretudo na Foz Velha, mas também em Nevogilde (Passos, Castelo), e lugar privilegiado de famílias abastadas que atinge o m2 mais caro do país. Quadro bem traçado deste período da vida foz-duriense, centrado sobretudo na zona do Molhe, encontra-se no romance “Sporá”, de Pedro Baptista, recentemente editado.

Os anos 60 e primeiros da década de 70 são marcados por um compromisso cada vez maior de camadas, sobretudo jovens, na oposição à ditadura e à guerra colonial (a actividade cultural da Cooperativa da Foz é marcante, mas também o Solar Clube no Bairro da Pasteleira, entre outros). Por outro lado, dá-se uma forte entrega de muitos cidadãos a actividades “para-culturais”, como os cortejos de S. Bartolomeu, as testas associativas, o desporto (no futebol, as camadas jovens do Foz ganham nomeada, José Vilela é, por varias vezes, campeão nacional de ténis).

António Rebordão Navarro, sem cedências as modas e ao êxito fácil, é um grande escritor nacional a sofrer como Brandão do seu afastamento voluntário dos poderes e centros. A Foz geográfica mas também social, sobretudo dos anos 40 para cá, revê-se em “Praça de Liège”, “Mesopotâmia”, “Parábola do Passeio Alegre” e ainda um pouco em “0 Parque dos Lagartos”, romances publicados desde então até hoje.

Por esta época dá-se o maior atentado arquitectónico-cultural contra a Foz: a construção da Rua Coronel Raul Peres (Estrada Nova) que destrói uma ligação “natural” entre a praia e o núcleo habitacional, retirando terreno àquela e descaracterizando dezenas de casas com a obstrução ou amputação da sua frente marítima.

Abril de 1974, como todas as revoluções politicas, não é acompanhada no imediato da transformação cultural e mental necessária. O renascimento associativo é, nos primeiros anos pós-ditadura, em muitos casos, apenas aparente. De positivo há uma maior participação do cidadão na vida associativa, mas sem que isso signifique elevação de objectivos e de consciência.

De lá, até hoje, sobram a dinâmica Academia de Danças e Cantares, o Jornal O Progresso da Foz (19/8/80), sob a direcção de José Augusto de Castro, algum teatro do Orfeão e dos Fragatas, a Banda da Foz, os Pauliteiros de Nevogilde, algumas iniciativas ocasionais (Julho Cultural Foz 84) e pouco mais.

A agonia da importante Cooperativa dos Trabalhadores da Foz do Douro, que chega a ser uma das mais importantes do país, em simultâneo com o amordaçar de O Progresso da Foz, aceleram a morte de José Augusto de Castro, Homem de cultura e de acção.

"Camões" de Irene Vilar e "Gilreu" Fotog - José Magalhães
“Camões” de Irene Vilar e “Gilreu”
Fotog – José Magalhães

O “Camões”, da artista Irene Vilar, e oferecido à Foz, jaz, ignorado e maltratado, em frente do Gilreu, talvez imitando a vida do representado, aguardando que se ocupem dele, realçando aquela que é a mais bonita escultura da Foz.

Rosa Mota conquista, entretanto, o título de Campeã do Mundo e a Medalha de Ouro na Maratona dos Jogos Olímpicos de Seul, em 1988.

Os últimos anos acentuam aquelas que são tendências antigas e que diríamos “naturais”: aumento da população e incremento do lazer e da recreação (as esplanadas marginais, o Parque da Cidade), e outras, absolutamente a combater: destruição de património histórico e arquitectónico, ocupação demencial de construção em altura e sem qualidade e absoluta falta de equipamentos culturais: onde esta a Biblioteca, e o Cinema, e o Teatro, e um simples e digno centro cultural!

A Foz, a “saudosa”, de Ramalho, “a que já não existe”, de Raul Brandão, e todas as outras … — a nossa! — são o passado. Não haja, não há, ilusões. Poderá haver ainda algum rapaz da aldeia de Pascoaes que, perante o mar que vê pela primeira vez, exclame: — Que Tâmega! — pois na imensidão ninguém ainda mexe. Mas, quanto à terra, aquela que em cifrões se mede e se gere, essa está irremediavelmente condenada ao empobrecimento e ao caos de um urbanismo desajustado.

A não ser, … a não ser que o Homem — o responsável — saiba recolher, de um passado rico e belo, as linhas para traçar um presente que salve o futuro.

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