KAPITAL PARA O SÉCULO XXI? por JAMES K. GALBRAITH

Selecção e tradução por Júlio Marques Mota

Falareconomia1

Kapital para o Século XXI?

Piketty - IIIThomas Piketty, 2011 (Parti Socialiste du Loiret/Flickr)

 James K. Galbraith – Spring 2014 

Parte I

1.

O que é “capital”? Para Karl Marx, era uma categoria social, política e jurídica – o meio de controlo dos meios de produção pela classe dominante. O capital podia ser moeda, pode ser máquinas; poderia ser fixo e poderia ser variável. Mas a essência do capital não é nem física nem financeira. A essência é o poder que o capital dá aos capitalistas, principalmente, a autoridade para tomar decisões e para extrair mais-valia do trabalhador.

No início do século passado, a economia neoclássica substitui esta análise social e política pela pura mecânica. O capital passou a ser tomado como um item físico, que se poderia ligar com o trabalho no processo produtivo e dar assim origem à produção. Esta noção do capital permitiu a criação da expressão matemática “função produção,” de modo que os salários e os lucros poderiam ser ligados “aos produtos marginais respectivos” de cada factor. A nova visão da economia colocou, portanto, a utilização das máquinas acima do papel social dos seus detentores e legitimou o lucro como o retorno justo para uma contribuição indispensável do referido factor na produção.

A matemática simbólica cria a quantificação. Por exemplo, se alguém está a reivindicar que uma economia utiliza mais capital (em relação ao trabalho) do que outra, deve haver alguma unidade comum de medida para cada factor. Para o trabalho podia ser tomada como unidade de medida a hora de tempo de trabalho. Mas para o capital? Uma vez que se deixa para trás “o modelo milho” em que o capital (semente) e a produção obtida, o cereal (farinha) são a mesma coisa, deve-se, de uma maneira ou de outra, ter  alguma maneira de poder medir o capital. Deve-se poder calcular o valor de todas as diversas partes do equipamento e do inventário que compõem “o stock de capital.” Mas como?

Embora Thomas Piketty, um professor na Escola de Economia de Paris tenha escrito um volumoso livro intitulado Capital in the Twenty-First Century, ele explicitamente (e sobretudo causticamente) rejeita o ponto de vista de Marx. É, em alguns aspectos, um céptico da economia moderna dominante, a neoliberal também chamada neoclássica, mas vê o capital (em princípio) como uma aglomeração de objectos físicos, na linha da teoria neoclássica. E assim deve enfrentar a questão (grave) de como medir o capital como quantidade, ou seja, como valor.

A sua abordagem é feita em duas partes. Primeiro, ele funde o equipamento de capital físico com todas as formas de riqueza expressa em valor dinheiro, incluindo terra e habitação, esteja essa riqueza está a ser utilizada produtivamente ou não. Ele exclui apenas o que os economistas neoclássicos chamam de “capital humano”, presumivelmente porque este não pode ser comprado e vendido, porque não assume por esta via  um valor de mercado. Então, ele calcula o valor de mercado do que é a riqueza. A sua medida de capital não é então em termos físicos mas sim financeiros.

Isto, receio eu, é uma fonte de confusão terrível. Muita da análise de Piketty assenta na ideia do rácio de capital — como ele o define — relativamente ao rendimento nacional: a relação capital/rendimento. Deve ser óbvio que este rácio depende muito do fluxo de valor de mercado. E Piketty di-lo. Por exemplo, quando ele descreve a relação capital/rendimento a descer em França, Grã-Bretanha e na Alemanha depois de 1910, ele está-se a referir apenas à destruição em parte física dos bens de equipamento. Não havia quase nenhuma destruição física de bens de capital na Grã-Bretanha durante a primeira guerra mundial e em França esta destruição foi largamente exagerada na época, como Keynes o mostrou em 1919. Havia também muito pouca destruição física na Alemanha, que estava intacto até ao fim da guerra.

Então o que aconteceu? A evolução do rácio de Piketty foi largamente devida aos rendimentos muito mais altos, produzido pela mobilização de guerra, em relação a capitalização existente de mercado, cujos ganhos estavam restritos ou caíram durante e após a guerra. Mais tarde, quando os valores dos activos entraram em colapso durante a Grande Depressão, não era principalmente o capital físico que se desintegrou, mas sim o seu valor de mercado. Durante a segunda guerra mundial, a destruição desempenhou um papel bem maior. O problema é que, enquanto as mudanças físicas e as operadas através dos preços são obviamente diferentes, Piketty trata-as como se fossem aspectos da mesma coisa.

A evolução da desigualdade não é um processo natural.

Piketty quer mostrar que em relação ao rendimento actual, o valor de mercado de activos aumentou substancialmente desde os anos 70. No mundo anglo-americano, calcula ele, esta relação aumentou e passou de 250-300 por cento do rendimento naquele tempo a 500-600 por cento hoje. Em certo sentido, o “capital” tornou-se mais importante, mais dominante, um factor maior na vida económica.

Piketty atribui esta subida a um crescimento económico mais lento relativamente à  rentabilidade do capital ( segundo a definição de capital citada), de acordo com uma fórmula a que ele chama “uma lei fundamental.” Algebricamente, esta é expressa como sendo r>g, onde r é a taxa de rentabilidade do capital e g é a taxa de crescimento do rendimento. Aqui, de novo, parece estar a falar sobre os volumes físicos de capital, aumentado ano após ano através dos lucros e das poupanças..

Mas Piketty não está a medir volumes físicos e a sua fórmula não explica muito bem as estruturas de capital dos diferentes países. Por exemplo, a sua relação do capital-rendimento sobe no Japão em 1990 quase um quarto de século antes, no início da queda do longo crescimento japonês -e para o Estados Unidos em 2008. Enquanto isto, no Canadá, que não teve nenhum crash financeiro, aparentemente está ainda a aumentar. Uma pessoa simples poderá dizer que é sobretudo o valor de mercado e não o seu volume físico que está a variar e que o valor de mercado está a ser determinado pela financeirização e exagerado pelas bolhas, aumentando onde lhe é permitido e caindo quando as bolhas rebentam.

Piketty quer estabelecer uma teoria relevante para o crescimento, o que exige a presença de capital físico como o seu input. No entanto ele apresenta uma medida empírica que não está relacionada com o capital físico produtivo e cujo valor em dólares depende, em parte, da rentabilidade do capital. De onde é que vem a taxa de rentabilidade do capital? Piketty nunca o diz. Afirma simplesmente que  esta geralmente assume,  em média, um certo valor, digamos 5 por cento sobre a terra no século XIX, e um valor mais alto no século XX.

 A teoria neoclássica básica sustenta que a taxa de rentabilidade do capital depende de sua produtividade (marginal). Nesse caso, nós devemos pensar em termos de capital físico – e isto, de novo, parece ser a opinião de Piketty. Mas o esforço para construir uma teoria do capital físico com um taxa de rentabilidade tecnológica já se desmoronou desde há muito tempo, sob uma forte crítica dos economistas de Cambridge, em Inglaterra desde o anos 50 e nos anos 60 até meados dos anos 70 , particularmente a partir de Joan Robinson, de Piero Sraffa e de Luigi Pasinetti.

Piketty dedica apenas três páginas às controvérsias de “Cambridge-Cambridge”, mas estas são importantes porque elas são profundamente enganadoras. Piketty escreve:

A controvérsia continuada… entre os economistas esteve primeiramente baseada em Cambridge, em Massachusetts (incluindo [Robert] Solow e [Paul] Samuelson)… e com os economistas que trabalham em Cambridge, Inglaterra… em que  estes  (não sem alguma confusão às vezes) viam no modelo de Solow uma pretensão de que o crescimento é sempre perfeitamente equilibrado, assim se negando a importância que Keynes tinha atribuído às flutuações a curto prazo. Não era assim, de facto,  até aos anos 70, altura em que o chamado modelo neoclássico do crescimento à Solow ganhou definitivamente a controvérsia.

Mas o argumento das críticas não é construído à volta de Keynes ou das flutuações. Este argumento é acerca do conceito do capital físico e se o lucro pode ser derivado de uma função de produção. Numa síntese extrema, esta questão levanta três vias de análise. Primeiramente: não se podem adicionar os valores dos objectos tomados como bens de capital para obter uma quantidade agregada  [ em valor] sem ter antes uma taxa de juro que (desde que é prévia) deve vir do sector financeiro e não do mundo físico. Em segundo lugar, se a taxa de juro real é uma variável financeira, variando por razões financeiras, a interpretação física de um stock de bens de capital avaliado em dólares correntes não tem qualquer sentido. Em terceiro lugar, um ponto mais subtil: como a taxa de juro cai, não há nenhuma tendência sistemática para adoptar uma tecnologia “capital intensiva”, como o supõe o modelo neoclássico.

Em suma, a crítica de Cambridge torna sem sentido a pretensão de que os países mais ricos seguem aquela via, a prescrita pelo modelo neoclássico, usando “mais” capital. De facto, os países mais ricos usam frequentemente menos capital aparente; os serviços têm na composição do PIB, um forte peso e as suas exportações são relativamente mais intensivas em trabalho – o “paradoxo de Leontief.” Em vez disso, estes países tornaram-se ricos-como Pasinetti mais tarde argumentou – pela aprendizagem, pela melhoria das técnicas, pela criação de infra-estruturas, com a educação, e – como tenho defendido- ponto em prática uma profunda regulação e criando a Segurança Social. Nada disto está necessariamente relacionado com o conceito físico de capital de Solow e menos ainda com uma medida da capitalização da riqueza nos mercados financeiros.

Não há nenhuma razão para pensar que a capitalização financeira contém e suporta uma relação estreita para com o desenvolvimento económico. A maioria dos países asiáticos, incluindo a Coreia, o Japão e a China, trabalharam muito bem durante  décadas sem financeirização; assim fez também a Europa continental nos anos do após-guerra e quanto a este tema assim fizeram os Estados Unidos antes de 1970.

E o modelo de Solow não deixou de ter críticos. Em 1966, Samuelson admitiu os argumentos de Cambridge!

(continua)

 

 

 

Kapital for the Twenty-First Century?

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