KAPITAL PARA O SÉCULO XXI? por JAMES K. GALBRAITH

Selecção e tradução por Júlio Marques Mota

Falareconomia1

Kapital para o Século XXI?

Piketty - IIITHOMAS PIKETTY, 2011 (PARTI SOCIALISTE DU LOIRET/FLICKR)

 James K. Galbraith – Spring 2014 

Parte II

(continuação)

2.

O corpo empírico central no livro de Piketty é dedicado à distribuição do rendimento calculado este a partir dos registos dos impostos num grupo de países ricos – principalmente a França e a Grã-Bretanha mas também os Estados Unidos, Canadá, Alemanha, Japão, Suécia, e alguns outros mais. As suas virtudes situam-se no facto de se permitir assim uma visão de longo prazo e em prestar uma atenção detalhada ao rendimento dos grupos de elite, que noutras abordagens da repartição faltam frequentemente.

Piketty mostra que nos meados do século XX a proporção do rendimento que tinha estado a aumentar para os grupos da parte superior na escala da repartição nos seus países, para os mais ricos, desceu e esta proporção cai, principalmente devido aos efeitos da segunda guerra mundial e das consequências posteriores. Estes efeitos incluíram aumento do peso sindical e aumentos salariais, taxas do imposto sobre o rendimento progressivas, e as nacionalizações e expropriações no pós-guerra na Grã-Bretanha e em França. As proporções dos rendimentos mais altos no rendimento total permaneceram baixas durante três décadas. Aumentaram então a partir dos anos 80, fortemente nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha e em menor dimensão na Europa e no Japão.

As concentrações da riqueza parecem ter atingido valores de pico por volta de 1910, passaram  depois a cair até 1970  e terão começado depois a aumentar,  uma vez mais. Se as avaliações de Piketty estão correctas, as proporções da riqueza dos mais ricos relativamente à riqueza global em França e nos Estados Unidos permanecem hoje abaixo dos seus valores da Belle Époque, enquanto as proporções dos rendimentos mais elevados relativamente ao rendimento global nos Estados Unidos já voltaram a assumir os valores da Idade de Ouro. Piketty acredita igualmente que o Estados Unidos são um caso extremo – que a desigualdade do rendimento aqui excede hoje a que se verifica nalguns dos principais países em vias de desenvolvimento, incluindo nestes a Índia, a China e a Indonésia.

Será que estas medidas se podem considerar originais e fiáveis? Desde o princípio somos levados a considerar que Piketty pretende ser considerado o único herdeiro vivo de Simon Kuznets, o erudito académico de meados do século XX e grande especialista sobre as desigualdades. Escreve Piketty:

“Estranhamente, ninguém levou a cabo e de modo tão sistemático o desenvolvimento do trabalho feito por Kuznets, que não haja nenhuma dúvida quanto a isto,  porque o estudo histórico e estatístico de registos dos impostos situa-se, academicamente falando, numa terra de ninguém, demasiado de história para os economistas, demasiado de economia para os historiadores. É pena ser visto assim, porque a dinâmica da desigualdade do rendimento só pode ser estudada numa perspectiva de longo prazo, o que é possível somente se utilizarmos os registos dos impostos.”

Esta afirmação é incorrecta. Os registos dos impostos não são a única fonte disponível de bons dados sobre a desigualdade. Na minha investigação ao longo de vinte anos, eu próprio usei registos das folhas de pagamentos para medir a evolução a longo prazo das desigualdades; num texto publicado por volta de 1999, Thomas Ferguson e eu registámos tais medidas sobre os Estados Unidos até 1920 e nós encontramos aproximadamente o mesmo tipo de comportamento que Piketty encontra agora.

É sempre bom ver os nossos resultados confirmados, o que aqui é um ponto da grande importância. A evolução da desigualdade não é um processo natural. A forte igualização nos Estados Unidos entre 1941 e 1945 foi devida à mobilização conduzida sob fortes controlos de preços ao lado das taxas superiores de imposto a serem  verdadeiramente confiscatórias. A finalidade era de aumentar fortemente o PIB sem estar a criar milionários em tempo de guerra. Inversamente, a finalidade da economia do lado da oferta, the supply-side, depois de 1980 pretendia (principalmente) era a de querer enriquecer os ricos. Em ambos os casos, a política conseguiu largamente o efeito pretendido.

Sob o presidente Reagan, as mudanças na lei fiscal dos Estados Unidos  incentivaram os  pagamentos mais altos aos executivos empresariais, a utilização das opções de subscrição de acções ( as chamadas stock-options), e incentivaram (indirectamente) a separação de empresas de novas tecnologias em empresas capitalizadas, que incluiriam eventualmente Intel, Apple, Oracle, Microsoft, e as restantes. Agora, os rendimentos de topo já não são os salários fixados mas pelo contrário os seus rendimentos auferidos seguem aproximadamente o mercado de valores das acções. Este é o simples resultado da concentração de propriedades, do fluxo dos preços dos activos e da utilização de fundos de capitais para os pagamentos dos executivos. Durante o boom das tecnologias, a correspondência entre a mudança nas desigualdades do rendimento e o NASDAQ era exacta, como Travis Hale e eu próprio mostramos num texto publicado em World Economic Review.

O leitor leigo não ficará surpreendido. Os académicos, no entanto, têm de enfrentar o trabalho convencionalmente dominante (entre outros) de Claudia Goldin e de Lawrence Katz, que discutem, que defendem que as mudanças nas desigualdades do rendimento na América são o resultado de uma “concorrência entre a educação e a tecnologia” quando se trata dos salários, com a educação em primeiro lugar e depois a tecnologia. (Quando é a educação a ser determinante, a desigualdade supostamente cai e vice-versa.) Piketty expressa o seu respeito por esta posição mas não adiciona nenhuma evidência a seu favor e os seus factos contradizem-no. A realidade é que as estruturas de salários mudam de longe bem menos do que os rendimentos baseados nos lucros e muita da crescente desigualdade vem de um fluxo crescente do rendimento sob a forma de lucros para os muito ricos.

Numa comparação global, há bastantes provas e (tanto quanto eu sei) nenhuma delas apoia o ponto de vista de Piketty de que o rendimento dos Estados Unidos  é hoje mais desigual do que nos principais países em vias de desenvolvimento. Branko Milanovic identifica a África do Sul e o Brasil como tendo as desigualdades mais elevadas. O novo trabalho do Luxembourg Income Study (LIS) coloca a desigualdade do rendimento na Índia bem acima da desigualdade que se verifica nos Estados Unidos. As nossas próprias estimativas para desigualdade nos Estados Unidos colocam este país abaixo da média não-OECD, e as minhas estimativas concordam com as aquelas de LIS relativamente à Índia.

Uma explicação provável para as discrepâncias é que os dados dos impostos sobre rendimentos são somente tão comparáveis quanto as definições legais do rendimento tributável o permitem, e somente são fiáveis quando os sistemas fiscais são eficazes. Ambos os factores se tornam problemáticos nos países em vias de desenvolvimento, de modo que os dados dos impostos sobre rendimentos não capturam o grau de desigualdades que outras medidas revelam. (E dos petróleo dos sheiks em que o rendimento não é taxado nada pode ser aprendido.) Inversamente, os bons sistemas fiscais revelam a desigualdade. No Estados Unidos, o IRS permanece temido e respeitado, uma agência a que mesmo os muitos ricos, geralmente, declaram a maioria do seu rendimento. Os registos dos impostos são úteis mas é um erro tratá-los como se sejam as escrituras sagradas.

Sintetizando o que até agora foi dito, o livro de Thomas Piketty sobre o capital não é  nem sobre o capital no sentido utilizado por Marx nem sobre o capital físico que serve como um factor de produção no modelo neoclássico do crescimento económico. É um livro principalmente sobre a valorização posta em activos reais e financeiros, sobre a distribuição daqueles activos ao longo do tempo e sobre a transmissão de riqueza de uma geração para a seguinte.

Porque é que isto é interessante? Adam Smith escreveu a resposta, de uma vez por todas: A “riqueza, como Hobbes diz, é poder.” A valorização financeira privada mede o poder, incluindo o poder político, mesmo se o seu detentor não desempenha nenhum papel económico. Os grandes proprietários ausentes e os irmãos Koch[1] têm um poder deste tipo. Piketty chama-o de “capitalismo patrimonial” — por outras palavras, não é nada de fisicamente real.

O velho sistema de altas taxas de tributação marginal eram efectivas naquele tempo. Mas será que aquele velho sistema funcionaria agora? Possivelmente, não.

(continua)

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[1] Nota de Tradução: Milionários americanos

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http://www.dissentmagazine.org/article/kapital-for-the-twenty-first-century

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Para ler a Parte I deste trabalho de James K. Galbraith, publicada ontem em A Viagem dos Argonautas, vá a:

KAPITAL PARA O SÉCULO XXI? por JAMES K. GALBRAITH

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