A FRONTEIRA ONDE BORGES ENCONTRA O BRASIL – 3 – por Carmen Maria Serralta

PARTE I

 

Na ordem da literatura, como nas outras, não há ato que não seja coroação de uma infinita série de causas e fonte de uma infinita série de efeitos.

Jorge Luis Borges

 

1Motivos da visita

 

 

            Uma primeira pergunta que se impõe: que motivo teria tido um dos maiores escritores do século XX para vir até cá, cidade de fronteira, pequena, provinciana, situada no extremo sul do Rio Grande, nos confins do Brasil, e enfrentar uma viagem pelas estradas penosas, lamacentas e poeirentas, quase desertas das paragens campestres naquele longínquo verão de janeiro de 1934?

            Em um sentido bem amplo, a causa remota dessa visita pode ser encontrada nos fortes laços afetivos que o uniram ao Uruguai, decorrência do vínculo de parentesco, sobretudo pelo lado materno – a avó era uruguaia[1] – como também no estreito convívio com esses familiares residentes no país vizinho.  Ligação muito intensa na infância, que se prolongou regularmente por mais de oitenta anos[2], tanto quanto no seu imaginário pessoal, como se verá. E a causa próxima, por assim dizer, deve-se a que Borges era hóspede, como de hábito naqueles tempos, no Chalet Las Nubes, propriedade do casal anfitrião – os já nomeados Esther Haedo e Enrique Amorim. Aconteceu que seu anfitrião teve então alguns assuntos a tratar na cidade de Rivera e Borges o acompanhou numa viagem que, talvez, prometesse não mais do que os ingredientes do trivial e do cotidiano.

 

Las Nubes

              “A casa chamava-se Las Nubes porque se erguia sobre uma colina que dominava a cidade; era branca, confortável e moderna, e os anfitriões amáveis, carinhosos e inteligentes”.

 

Borges - I

 

Borges - II

Fotos: Luizelli

Borges - III

        O ano de 1934 registra mais uma estada de Borges na casa dos mesmos hospedeiros de onde remeteu ao pai correspondências datadas de 13 e 22 de novembro. Na primeira mensagem, enviou uma foto da casa dos Amorim, assinalando a efígie de uma mulher no parque da casa: “Esse fantasma de mulher que observarás é uma figura de proa num pedestal”; e, na segunda, informa estar trabalhando num ensaio sobre Nietzsche – seu tema era o tempo infinito e o eterno retorno -, o qual avançava “sem inspiração, mas sem demora” e ainda comenta que somente a piscina “mitiga e domestica o verão.”[3] Alguns amigos íntimos de Borges e alguns biógrafos não hesitam em marcar os anos de 33, 34 e seguintes como bem dolorosos para ele em razão, entre outras, de intensas desilusões amorosas. Ademais, apontam para um amor frustrado, jamais identificado claramente, relacionado com uma mulher possivelmente inglesa, a quem ele dedicou, em inglês, não só a Historia Universal de la Infamia[4] como também dois poemas intitulados Prose Poems for I. J. [5] Naqueles anos Borges aceitou reiterados convites de Esther e Enrique, que tratavam justamente de amenizar as decepções sofridas pelo parente e amigo, mesmo sabendo da índole reservada do escritor que não lhe permitia exteriorizações de sentimentos íntimos. Nessa década, mais precisamente a partir de 1931, muda sua aparência física: engorda e passa a usar um bigode e barba que aparecem e reaparecem até lá por 1939.

            Julguei oportuno fazer essas pequenas indicações, embora sem aprofundar o assunto, para melhor situar o escritor em relação ao que o preocupava e ocupava à época em que esteve aqui.

Borges - IV

Borges - V

(continua)

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[1] Leonor Suárez Haedo nasceu em Mercedes, Uruguai, em 1837. Faleceu na cidade de Genebra, Suíça, em 1918; após a viuvez (1905), passou a morar com sua única filha Leonor, a mãe de Borges.

[2] “Toda minha vida modifica o livro que eu estou lendo”, dizia Borges em uma de suas últimas conferências de Montevidéu, realizada na Sala Verdi em 14 de novembro de 1981. Citado por Lisa Block de Behar no jornal Jaque em 9 de novembro de 1984.

[3] Williamson, 2006, p. 239/240 apud  M. de Torre.

[4] Borges, 1967, p. 13.

[5] Vázquez, 1996, p.142 e ss.

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