PARA ONDE VÃO OS GUARDA-CHUVAS DE AFONSO CRUZ por Clara Castilho

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Chego ao fim do livro e penso: no fundo a questão central é a se saber se será possível vermos todos num espaço em que nos aceitemos mutuamente. E esta é neste momento uma questão mais que actual. Fiquemos com esta frase: “A nossa dor não existe fora de nós, o mundo não suportaria esse peso, seria impossível, imagine-se a dor de todos os homens a existir no mundo exterior”.

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É um romance gráfico, bem gordo (600 páginas), composto por 3 partes. Segundo os editores, conta uma história civilizacional a partir das pequenas tragédias pessoais.

Quem é este homem que escreve, ilustra, faz parte de uma banda e faz filmes? Decerto, um nome forte na nossa literatura actual.

No seu blog, Afonso Cruz  apresenta-se: “Escreve e, além de ilustrador, realiza filmes de animação — às vezes de publicidade, às vezes de autor –, e é um dos elementos da banda The Soaked Lamb. Em Julho de 1971, na Figueira da Foz, era completamente recém-nascido e haveria, anos mais tarde, de frequentar lugares como a António Arroio, as Belas Artes de Lisboa, o Instituto Superior de Artes Plásticas da Madeira e mais de meia centena de países”.

 A 1ª parte do livro poderia ser uma só, isolada, dedicada a crianças e com ilustrações dele próprio. E chama-se “Historia de natal para crianças que já não acreditam no pai Natal”. Temos, depois, um romance propriamente dito e na 3ª parte, defrontamo-nos com um conjunto de aforismos compilados pelo já conhecido Théophile Morel, que o autor vai buscar às suas enciclopédias. Fica-se um bocado perplexo perante este conjunto.

Voltemos ao romance. O local da acção é o Oriente. A figura central é Fazal Elahi, que possui uma fábrica de tapetes, casado com Bibi, devoto de Alá. Viu o seu filho ser assassinado por soldados americanos e, inconsolável, decidiu oferecer a sua fortuna a quem o ajudar a acabar com esse sofrimento. A solução é apresentada por um hindu (Nachiketa Mudaliar): adoptar uma criança americana.

Para completar a trama, temos um monge casto, um primo mudo, um viciado em ópio, um general soviético convertido ao Islão…

O autor não coloca a acção a decorrer num país concreto, mas vemos as questões delicadas entre muçulmanos, hindus e cristão. Nele perpassa a violência, quer nos maus-tratos a crianças na exploração infantil, no terrorismo, na intolerância religiosa, na violência sobre a mulher.  No fundo, é um livro sobre perdas, mortes, dores, tormentos. Sobre respeito pelas diferenças, tolerância e perdão.

[…] “Fazal Elahi não erraria na sua premonição, o universo gosta de equilíbrios completamente desequilibrados, é feito de opostos de mãos dadas, um homem enorme a segurar a mão de uma menina pequenina.

[…] E que deprimentes são os números, sempre tão exactos, a dizerem-nos tudo com precisão, uma mais um igual a dois e por aí fora, sem qualquer originalidade. Com licença, se os números fossem uma coisa boa, existiriam  na natureza e andariam a pastar pelos campos, mas Alá sabe melhor, pois criou o mundo e a paisagem sem números nenhuns. Só existem na nossa cabeça e nas facturas e nos recibos, todos incisivos, muito abstractos, a olharem para nós de cima, parecem camelos, que Alá os corrija e lhes ensine a humildade. Se fossem alguma coisa de jeito, andariam a pastar como as cabras.

[…] Já reparaste, Elahi, que os corpos das mulheres não são admitidos, são como aqueles cartazes que dizem que os cães não podem entrar? As mulheres só têm corpo quando estão no hamã, a lavar-se, e quando estão deitadas debaixo dos maridos, ou quando são espancadas. Aí admite-se que a mulher tenha pernas, mamas e rabo.

[…] Quanto menor é a alma de um homem, mais espaço ela ocupa. Não há espaço para ninguém ao seu lado.

[…] Sem pão não se fazem maravilhas. Só quando o pão se torna um bem adquirido, o homem começa a pensar no que é belo. O estômago incha e a poesia nasce do umbigo.

[…] Um homem que, ao espelho, veja reflectido um homem em vez de um labirinto, não está a ver um homem. Está a ver um reflexo.

[…] Encheremos o mundo de coisas preciosas, serão tantas que os homens passarão por elas julgando-as banais.

[…] Isso, os tigres devoram homens, os tigres que nos habitam só pensam em devorar homens, são as feras mais perigosas desta selva, gostam de ter coisas, gostam de empilhar coisas. Os nossos tigres, os que vivem aqui, olha, na cabeça, e aqui, repara, no peito e na barriga, gostam de ser milionários e de comer tudo o que encontram pela frente, mas estes que vais ver hoje, Isa, são diferentes, têm riscas, têm dentes e pesam quatrocentos quilos. Estes tigres são de outro tipo, são boas pessoas.

[…] Andamos todos em órbita a nós mesmos à procura de uma porta que nos leve para dentro da nossa alma. Procuramos entrar dentro de nós, mas é um mundo que nos está vedado.

[…] E Elahi perguntava-se  como seria possível que a tradução daquilo que se passava dentro dele fossem apenas umas quantas lágrimas. Que coisa tão mal feita, pensava. Com tanto sofrimento, com licença, deveríamos chorar estrelas, para mostrar como tudo o resto é pequenino comparado com tudo o que nos dói.”

“Somos mais pesados quando fechamos os olhos. Isso acontece porque o nosso mundo interior é maior do que exterior, pensava Fazal Elahi. A nossa dor não existe fora de nós, o mundo não suportaria esse peso, seria impossível, imagine-se a dor de todos os homens a existir no mundo exterior. Seria uma calamidade e não haveria gravidade capaz de fazer os planetas andar à volta das estrelas. Nós somos  muito mais pesados do que o universo que nos rodeia. Temos a dor.”

 

 

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