OS MEUS DOMINGOS – A VIDA DUM RAPAZ MAGRO – por ANDRÉ BRUN

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1881 - 1926
1881 – 1926

 

I

Encontrava a miúdo esse rapaz na rua, nalguns cafés que frequento por indicação dos clínicos e em certos clubes onde à noite vou cear após o teatro para não acordar a cozinheira após a uma da madrugada.

Era um moço simpático, vestindo com certa elegância despreocupada, e quem o visse numa multidão talvez não o reconhecesse no dia seguinte: mas, se o tivesse tido diante dos olhos trinta vezes ou quarenta, não deixaria de reparar num pormenor da sua anatomia: o rapazinho em questão era magro como um espeto.

Há que distinguir em matéria de magros, como de respeito há que fazer distinção entre gordos. Há magros que nasceram para o ser toda a vida e nem que a sorte os faça Comissários dos Abastecimentos ou lhes facilite dezoito refeições diárias são capazes de engordar.

Mas a pessoa de quem se trata dava a impressão que era magro porque qualquer coisa o impedia de se fornir de carnes, como se diz dos touros e doutros gados mais ou menos vacuns. Percebia-se nele uma criatura que seria rechonchuda se o deixassem à vontade, com o bridão sobre o pescoço.

Sentia-se que a vida, a porca da vida, – esse retorcidíssimo chavelho, como dizia Camilo Castelo Branco, – não lhe deixava saborear o prazer que certos amigos nossos têm de assombrar as balanças automáticas.

Um dia fomos apresentados um ao outro e, depois de falarmos de várias coisas, da guerra do Oriente, da carestia das botas de elástico, da eficácia das pílulas Pink e da existência de Deus, como já nos fosse faltando o assunto, eu, para não ficar calado, permiti-me uma indiscrição:

– O meu amigo tem andado doente? Parece-me que houve tempo em que o vi mais gordo…

– Houve. Era quando andava na ama, – me respondeu ele. – Bons tempos esses! A existência era então para mim uma simples chuchadeira. Desde que mudei de ocupação, é isto que o senhor está vendo: a pele em cima do osso…

– E, sem querer indagar da sua vida, poderá saber-se que género de trabalho é o seu, que o põe assim na espinha?

– Ah! Meu amigo, – me segredou ele, – o pior de quantos um homem de bem pode escolher neste mundo.

– ???

– Sou autor dramático.

– Ah sim? Coitado! E em que género? Cultiva o “lever de rideau” licoroso, o entremez galante, o apropósito comemorativo, a revista por sessões ou o drama histórico em verso?

– A comédia, meu caro senhor. Tenho feito rir, segundo os meus cálculos e dado o número de representações das minhas peças, talvez uns seis a sete milhões de pessoas. Não calcula os desgostos que isso me tem dado.

E contou-me a sua triste vida.

19 de Março de 1923

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