FRANCISCO MARCELO CABRAL (1930 – 2014) – POETA CATAGUASENSE – IN MEMORIAM

 

Chico Cabral - foto de Victor Giudice
Chico Cabral (1930 – 2014) – Foto de Victor Giudice

Faleceu Francisco Marcelo Cabral, natural de Cataguases, Minas Gerais, foi poeta, escritor, publicitário, e também editor e promotor de projectos económico-financeiros. Foi autor de O Centauro (1949), Inexílio (1979), Baile de Câmara (1992), Poema em 3 Cantos e Pedra de Sal (2000), Livro de Poemas (2003), Cidade Interior (2007) e Campo Marcado (2010). Participou na revista Meia Pataca, editada por Lina Tâmega Peixoto Era membro do Pen Clube e da União dos Escritores Brasileiros. Sobre ele próprio deixou-nos o texto seguinte:

FRANCISCO MARCELO CABRAL POR ELE MESMO

Sou cataguasense, safra 1930, aprendi a ler sozinho, me ensinaram a escrever. Primeiro minhas professoras primárias, depois o professor Gradim… e muitos outros professores, cada qual interessado em me afastar das “trevas” da ignorância, porque certamente eu era mais ignorante do que eles. E isso parece que os incomodava, porque todos estiveram muito envolvidos nesse processo de treinamento, pelo qual, talvez sem o perceber, tentaram me passar uma concepção de mundo, sacralizada por sua expressão em palavras escritas, que eu deveria reverenciar como definitivas marcas concretas de realidade.

Acho que eu não aprendi bem essas sábias lições e a primeira questão fundamental com que me deparei (e quase parei) foi descobrir que as palavras são portas de saída mas não de entrada, e que a emoção ou conceito, presentes num texto, são de quem o lê e não mais apenas de quem o escreveu.

O poeta brasileiro Francisco Marcelo Cabral (Cataguases, MG, 1930 – Rio de Janeiro, RJ, 2014) residiu no Rio de Janeiro desde os anos 1950. Bacharel em Direito, não chegou a atuar como advogado. Trabalhou a maior de sua vida como redator publicitário e redator de projetos econômicos financeiros, no escritório Leone e Associados, onde era um dos sócios. Em 1949, editou em Cataguases a Revista Meia Pataca, junto com a poeta Lina Tâmega Peixoto. Livros publicados: O Centauro (1949); Inexílio (1979); Livro dos Poemas (2003) englobando, além dos dois livros anteriores, Baile de Câmara, Poema em 3 Cantos e Pedra de Sal. Em 2007, publica Cidade Interior e, em 2010, seu último livro, Campo Marcado.

***

Chico Cabral - foto Adriana Montheiro
Chico Cabral – foto de Adriana Montheiro

Entre muitos outros, escreveu este poema:

AI DE NÓS

 

Oh, um carvalho crescendo é tão sério

(e vem um lenhador com seu machado e fere-o)

 

A carne é mesmo triste? Um barco é triste?

Que nos cabe de tudo quanto existe

 

Eu em trânsito estou, vida é viagem

e não deflagrei auroras nem miragens.

 

Aquele que chegou, a terra quere-o

(ai de nós se não fosse o mistério).

***

 

Seu grande amigo, conterrâneo e escritor Ronaldo Werneck escreveu o texto de homenagem que a seguir publicamos:

 

chico cabral - ronaldo werneck - II

RW, Lina Tâmega Peixoto e Francisco Marcelo Cabral.  Livraria da Travessa-Ipanema. Rio, 2011  - Foto de Patrícia Barbosa
Ronaldo Werneck, Lina Tâmega Peixoto e Francisco Marcelo Cabral. Livraria da Travessa-Ipanema. Rio, 2011
– Foto de Patrícia Barbosa

 

“Perdemos nosso amigo. Cabruxa partiu há meia hora”. Vindo do Rio, o telefonema da última quarta-feira, 20 de agosto, era da poeta Lina Tâmega Peixoto, e a notícia – embora esperada, mas não tão cedo – me deixou a nocaute. Cabruxa era como Lina denominava o seu, o nosso grande amigo, o poeta Francisco Marcelo Cabral, que eu aprendi desde a juventude a chamar de Chico-Chiquinho Cabral. Eu estivera no Rio até a véspera, gravando uma entrevista para TV e, naquele momento, já me encontrava em Cataguases, envolvido com um projeto que precisava enviar para Belo Horizonte até sexta-feira. Parei tudo. Minha mulher, a Patrícia, encontrava-se em uma audiência no Fórum. Esperei que ela voltasse, ainda meio sem saber o que fazer. Já era final de tarde, eu ainda meio a nocaute. Patrícia sugeriu que seguíssemos logo para o Rio.

Noite alta – e, por ironia, “céu risonho”–, fomos estrada afora, eu me lembrando de meu amigo maior. E veio o fragmento de um de seus primeiros poemas: É hora de sol/ lá fora/ e noite, no coração./ Milhares de estrelas,/ borrões/ que as nuvens carregarão. E outro, de seu mais que admirável livro “Inexílio”: Amar menos/ é morrer/ como o rio sendo freado pela areia/ como tirar os óculos, desligar o telefone,/ guardar a máquina de escrever e sair de casa/ para nada. E logo outro, vindo lá de 1949, de seu primeiro livro, O Centauro, editado em Cataguases: Me matei de sombra/ Me pintei de roxo/ Fiz um metro, um canto// Para o meu amor./  Que lucrei?/ Um verso./ Que fazer? cantar./ Mas se há dor? que importa!/ A dor é só instrumento.

Cidade Interior

O carro corria na noite e me lembrei de um bilhete que mandei pro Chiquinho, quando ele lançou Cidade Interior (Rio, 2007):O seu despojamento, essa sua dicção absolutamente particular – que não consigo identificar em nenhum dos poetas que conheço – esses seus “poemeus” de antitergi/versar que me comovem, que me locomovem a cada vez que os releio, meu caro Chico Marcelo, e que pro seu universo (re)torno – mesmo “que” com todos esses “quês” –, para essa sua Cidade Interior. E confesso ser cada vez mais tomado pela alta tensão de sua “escritura” (merci bien et voilà, M´sieu Derrida), esses poemas que tanto me tocavam a cada releitura, e que hoje guardo e guardarei sempre: é onde às noites os medos / …/ cortam as luzes das ruas / …/ as pisadas no tambor dos pesadelos / …/ (e onde os mortos rumorejam pelas grotas) / …/ uma cidade para sempre estacionada/ no poema/ – falsa e inesquecivel”.

Esses poemas – escrevia eu naquela ocasião – sobre os quais não sei ainda o que dizer agora, numa primeira e rápida e mais que prazerosa leitura. A não ser o óbvio, aquilo que sempre digo: além de tudo, do grande poeta, você é também “il miglior fabbro da Dr. Sobral” (a rua de Cataguases onde nascemos). E aquele poema então, aquele insight, coisa de poeta maior:

 

Todo poema é celebração

mesmo não lido.

Todo poema é de amor

mesmo perdido.

Todo poema fica por aí

mesmo esquecido.

 

Não, não ficam. Não os desta Cidade Interior, não se poemas como aqui, nesta em si clari/cidade: antes que o sol mergulhe e se apague no mar”. Daqui, poema nenhum, nenhum sol será apagado.

Campo Marcado

Em abril de 2008, abri a apresentação que escrevi para seu livro Campo Marcado (Rio, 2010) com um pequeno poema que Manuel Bandeira lhe dedicou.

 

Ao poeta de Cataguases,

Autor do belo Centauro,

O Poeta Manuel Bandeira

Envia um ramo de lauro,

Saudando-o desta maneira

Ás futuro entre outros ases!

 

“O poemeto de Bandeira é de 1949, ano da publicação de O Centauro, o livro de estreia do jovem poeta Francisco Marcelo Cabral, então com 19 anos. São na verdade “antenados” os poetas, mesmo aqueles que se dizem “menores”, enquanto grafam na maior, e com maiúscula, o seu epíteto.

Ás futuro entre outros ases! – saúda um muito do exclamante Bandeira, antecipando a rica trajetória de FMC nas próximas seis décadas.  Poucos livros publicou o poeta desde então, mas todos definitivos. E eles o colocaram ombro a ombro com os melhores poetas desta e de outras praças e, claro, no pódio dos ases de Cataguases, aqueles rapazes que fizeram a Revista Verde e marcaram a história da cidade.

O “ramo de lauro” de Bandeira foi devidamente assentado na cabeça de Francisco Marcelo Cabral, que o ostenta com toda a dignidade do poeta singular, poeta maior que é.  Poucas vezes – nenhuma! – vi gente tão culta, de tão grande sensibilidade e inteligência como Francisco Marcelo Cabral. Brinco de chamar o poeta de brilhante, mas brilhante é pouco quando se trata dele.

Brinco também chamá-lo de “meu guru” (e não é?) desde que – lá se vão quantos anos? – ele me levou, no Rio, à casa de Alexandre Eulálio, então leitor oficial da Biblioteca de Veneza, para que eu conhecesse “uma das pessoas mais cultas do Brasil”. Pois é, Alexandre e eu ficamos arrebatados por aquela noite inteira a ouvir o poeta que sabia de tudo um muito mais que tudo.

Francisco Marcelo Cabral é um poeta-perguntador e por isso mesmo capaz de articular respostas essenciais, de nos propor descobertas: as palavras são portas de saída mas não de entrada. A emoção ou conceito, presentes num texto, são de quem o lê e não mais apenas de quem o escreveu.

Que o diga agora este Campo Marcado. Melhor, que nele possamos (re)ler e (re)assumir a emoção que ressurge a cada poema:

 

A luz e o silêncio em mim sabem a vida

e quando respiro

tudo o que não entendo faz sentido.

 

Com seus metapoemas mais que luminosos, com sua grande intensidade, Chico Cabral faz de Campo Marcado pedra de grande quilate, que há de rolar sempre entre seus (muitos) fiéis leitores. Escrevo a língua do meu avô/ sem permissão. Ora, por quem sois, meu poeta! Vosmicê tem mais que toda permissão!”.

No Rio de meados da década de 1960, Chiquinho Cabral e eu erámos redatores de um escritório de planejamento econômico, Leone e Associados (um dos associados era o próprio poeta, sem controvérsias o “cérebro” do escritório). Um dia, chegou um projeto de cemitério vertical e ele, como numa premonição, foi seu maior defensor. No Rio, na manhã da última quarta-feira, o corpo do poeta foi colocado – ao lado de seus irmãos, Edvar e Pedrinho – numa das gavetas do Memorial do Carmo, aquele mesmo cemitério cuja verticalidade tanto defendia o redator Francisco Marcelo Cabral. Estava lá Chiquinho Cabral, com a fisionomia tranquila, como se voasse após meses de sofrimento.

Alguém leu um poema de seu Livro dos Poemas (Rio, 2003), um de seu cantos para o Maharaji: Meu mestre dança como os pássaros./ E canta com os claros tímpanos da aurora./ Ele caminha como a brisa sobre as rosas./ E eu sou a almofada sob seus pés quando repousa. A seguir, o ritual fúnebre, mesmo não sendo católico o poeta. Foi quando mais uma vez, como em todos os muitos velórios a que já fui, voltei a assustar-me – talvez por “ler” errado – com aquele trecho da Ave Maria: “E agora e na hora de nossa morte, amém”. A poesia vem do susto, do espanto:

 

O leitor se assenta.

O poeta puxa a cadeira

a poesia é o tombo.

O leitor se enleva

o poeta o empurra no abismo

a poesia é o voo.

 

Voando, me vou

Logo depois da cerimônia, eu e Patrícia voltamos para Cataguases. Um dia belíssimo, de sol e céu azul, que me fez lembrar um mês de maio de não sei quando em que eu e Chiquinho Cabral viajávamos por essa mesma estrada. Estava contente e alegre como sempre o meu poeta, que dizia preferir, entre todas, as manhãs de maio e céu azul. Tinha razão: mesmo de sol e céu azul, costumam ser traiçoeiras as manhãs de agosto.

Quando essa respiração vem

com renovada força de vida

não perguntes nada

simplesmente a recebe e aceita

e gratidão seja a música de tua alegria.

 

Já em Cataguases, debrucei-me sobre o famigerado projeto, que consegui enviar a tempo para Belo Horizonte. Mas por todo o tempo em que escrevia, a presença de Chiquinho Cabral permanecia em mim – e os poemas de Francisco Marcelo Cabral assomavam, saltavam de meu ser, como se voassem:

 

Temo jamais ter merecido

as asas dos meus versos.

Às vezes eu as desprendo – é noite, é Minas –

 

E como quem espreguiça

num largo espasmo

alço-as e me vou, ou sou levado

voando, me vou.

 

Ronaldo Werneck

domingo, 24 de agosto de 2014

1 Comment

  1. Tive o imenso PRAZER, de ter Marcelo como amigo pessoal, com certeza parte de mim morre com ele, estive com ele algumas vezes no hospital tentando trazer um pouco de alegria e conforto fraterno.
    Uma perda irreparável, sou seu leitor, admirador, apaixonado por este ser ímpar.
    Realmente meu coração está em pedaços palavras aqui não conseguiriam descrever o que sinto neste pesado momento de minha vida.
    o que posso dizer é que o sorriso de Marcelo nunca mais sairá de meus melhores sonhos e momentos que pude compartilhar com ele.
    aprendi muito com ele, foi um mestre para mim.
    Deixo aqui nestas letras sem vida que tento digitar, um pouco, do meu sentimento por ele que mesmo pós morte, não deixarei de ter.
    Com o coração despedaçado me despeço desse Amigo, irmão, companheiro que foi Meu Marcelo.
    Marcelo deixo aqui um beijo carinhoso de seu eterno e para sempre amigo, como você me chamava carinhosamente de bobão……você sabe!
    te amo muito meu amor, meu Amigo.
    OBS: tive a honra de ter o poema A CARNE DA PALAVRA, dedicado a mim, foi um presente que nunca mais esquecerei.
    Até logo meu Marcelo, espero rencontrar você em breve em um outro plano. beijos saudosos,

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