Carta de Évora – 3 – por Joaquim Palminha Silva

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 Imagem1           Visitar as Freguesias do Concelho de Évora é sempre um grande prazer cívico, pois, desta forma, podemos admirar os seus notáveis melhoramentos, particularmente o seu “mobiliário urbano” e “estatuária pública”, as suas rotundas e canteiros. Por isso recomendo, a quem visitar Évora, que tenha a paciência de também se deslocar ao lugar de Valverde, no perímetro da Freguesia rural de Nossa Senhora da Tourega, onde encontrará uma provocante, surpreendente estátua!

            Evitando o maçador escolho de insuflar a alma do leitor com o horror estival, lembrando-lhe a “modernidade” do alcatrão, sobre o antigo empedrado das ruas, amolecendo nos dias quentes (mais de 40º à sombra), fugindo de lhe despertar entusiasmos estéticos com a multiplicação de vivendas térreas, cada uma mais catita que outra ou, na alternativa, outra mais catita que nenhuma, o visitante terá ocasião de dar de caras com uma estátua singular, em local ajardinado junto a escola primária pública (*).

             O forasteiro há-de ver com olhos de ver a estátua desse maltrapilho odioso, antipático e reles, que se chamou em vida (dizem) «Giraldo Giraldes» (dito o «sem pavor», melhor seria dizer o “sem pudor”), durante décadas retirada do convívio dos cidadãos eborenses por justificado e civilizado decoro autárquico e, assim, guardada em esquecidos depósitos municipais.

            Estátua terrífica, barbaresca mesmo, simbolizando a cobarde sanha sanguinária de alguém que, sem olhar a meios, se pretendeu reabilitar aos olhos do 1º rei de Portugal, embora o tenha feito às avessas do cristianismo e códigos de honra dos cavaleiros da época.

            Eu não quero mal aos avós dos nossos avós, pelo estado de confusão em que nos deixaram, e muito menos aos autarcas da Junta de Freguesia pela sua palpitação “patriótica”, visto que na corrente caudalosa da História contemporânea ainda se sabem comover com ardor e, consequentemente, concluir a sua apoteose memorialística com a recuperação urbana de uma estátua de guerreiro, representação esfíngica de antigo bárbaro, ostentando com descaro, perdão, deslumbramento, as cabeças decepadas de um homem e uma mulher “mouros” (e islâmicos?) que, estando a dormir tranquilamente, lhes foram cortadas com empunhada adaga.

            Na verdade, o estreito positivismo histórico, a glacial indiferença ou a zombaria irrespeitosa, além da estátua-mamarracho, bem como o local público escolhido para sua exibição, sobre pedestal mal-amanhado com paralelepípedos graníticos de calçada, tudo nos conta como a “alma lusitana” vive a sua vidinha e se representa para a posteridade…nos meios rurais circunvizinhos de Évora!

            A pitoresca estátua tem a sua origem no brasão de armas da cidade de Évora, que é dos mais antigos do País, com uma carga muito mais lendária do que histórica. Na temática sobre a heráldica eborense discute-se ainda hoje se a figura do cavaleiro é a do suposto conquistador da cidade, o dito Giraldo, ou a personificação do apóstolo Sant’Iago, dado ser este santo o patrono da reconquista cristã dos territórios que haviam sido dos reis godos, entretanto submetidos e ocupados pelo Islão, manu militari!

            Alexandre Herculano, ao referir-se à reconquista de Évora, apesar de não se bater pela versão que fez do chefe de bando de salteadores (Giraldo) o autor da manhosa empresa da retoma da cidade em 1165, não rejeita de todo a lenda, aludindo à Chronica Gothorum. Todavia, o mesmo historiador sempre nos afirma que a Crónica Conimbricense e a Lamecense, se por um lado estão conformes com a data da retoma da cidade, por outro, nenhuma delas alude à “habilidade” do Giraldo.

O facto é que a lenda, fabricada posteriormente, não parece ter sido objecto de representação heráldica no brasão de armas mais antigo da cidade (séc. XIV) … De resto, com dificuldade podemos acreditar (mesmo considerando a época) que um chefe de salteadores, que tanto atacava cristãos como islâmicos em busca de saque, fosse tido em grande consideração, tanto pelos soberanos como pelas Ordens Militares que os seguiam na reconquista.

Não se julgue que sou faccioso, desejando que o “prémio” da retomada da cidade pelo salteador Giraldo lhe seja retirado, sem consideração alguma… Mas sucede que a História dos historiadores tem dúvidas sobre o valor real do feito… Por isso, parece-me que os preclaros membros da Junta de Freguesia de Nossa Senhora da Tourega, muito apressados no seu “patriotismo histórico”, sem escutarem outros cidadãos mais avisados, foram infelizes na colocação em local público da nefanda estátua… Talvez estes autarcas não se apercebam do pitoresco fenómeno que criaram, fazendo com que ao visitante, súbito, vendo a terrifica estátua, entre perplexo e assustado, a única coisa que lhe venha à ideia seja fugir de Valverde!

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*Em 1940 a estátua figurou na «Exposição do Mundo Português» (Belém, Lisboa), tendo sido seu autor um escultor (eborense?) de nome Armando Mesquita. A estátua, de dimensões naturais, representa um guerreiro de expressão feroz, empunhando numa das mãos uma adaga e na outra, elevando-a sobre si e presa pelos cabelos, a cabeça decepada de um árabe. A peça, de aspecto sanguinário (mais se pode dizer de um bárbaro do que guerreiro cristianizado), supõe-se que foi produzida em gesso. Em 1945, a Câmara Municipal de Évora aprovou uma proposta do escultor para executar a estátua, segundo o modelo original, em material mais resistente (em cimento!), de forma a figurar em lugar público. Das opções então ventiladas foi escolhida a que pretendia erigir o monumento no jardim face ao Templo Romano, no mesmo lugar onde figura o monumento de homenagem ao Dr. Francisco Barahona. Tal opção não se concretizou. Entretanto, a estátua entrou em hibernação, para aparecer em 1964 a decorar um pavilhão na tradicional «Freira de S. João». Segundo se consegue apurar, o executivo municipal parece que não terá gostado do efeito produzido pela estátua na «Feira de S. João», enquanto a população da cidade, muito mais positiva nestas matérias de “grande erudição”, passou a alcunhá-la com desdém, intitulando-a de estátua «do corta cabeças»! Esquecida durante largos anos num armazém, veio a ser reencontrada em 1986, não tendo obtido qualquer opinião favorável do Município para a sua colocação em espaço público. Finalmente, com o novo milénio, os autarcas de uma Freguesia rural, resolveram libertar da sua “maldição” a estátua fabricada em pleno salazarismo, “soltando-a” num espaço público!

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