CARTA DO RIO – 25 – por Rachel Gutiérrez

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Na mesma semana tivemos uma passeata do “orgulho hétero”, em São Paulo, a ameaça da visita intempestiva de um suposto “conferencista” norte-americano, que prega a violência para conquistar as mulheres, e a notícia da abertura da exposição sobre o Marquês de Sade, no Museu d’Orsay, em Paris. O orgulho hétero faz um desnecessário contraponto ao orgulho gay; o provocador norte-americano pode ter seu visto negado pelo Itamaraty; e a exaltação do Marquês de Sade, na monumental homenagem da França, essa merece alguma reflexão. Uma das fotos da exposição, que o caderno Prosa e Verso do jornal O Globo reproduziu, é de um fotógrafo do final do século XIX e exibe “mulher nua ajoelhada de perfil, com o corpo inclinado para a frente e a cabeça tocando a cama” – submissão ou humilhação total, bem ao gosto do “divino” Marquês que, no título da reportagem é “o filósofo do corpo”. Filósofo? Talvez.

O autor de “Julieta, ou a prosperidade do vício” e de “Justine, ou as vicissitudes da virtude”, segundo a curadora da exposição, Annie Le Brun, “nos faz refletir sobre a violência que nos habita e, nesse sentido, está no coração da modernidade.” Já o filósofo Michel Onfray, também citado no jornal, considera a lógica de Sade um subproduto do regime feudal e do capitalismo, “no qual os senhores sangram o proletariado mundial para seu único gozo” e pergunta, não sem razão, irritado: “Que idiota pode ainda acreditar em sua dimensão iconoclasta?” De fato, que se festeje com tanta pompa o bicentenário de Sade e que ainda se teime em considerá-lo libertário é, no mínimo, intrigante.

Sabe-se que para Sade, a mulher livre era a prostituta. Livre de que? E livre para quê, ou para quem? – Livre apenas dos laços matrimoniais para submeter-se totalmente à dominação masculina, a seus caprichos e desejos, à sombra de uma Igreja Católica repressora, quando sexo e pecado eram sinônimos. E para um dos grandes admiradores de Sade, o nietzscheano Georges Bataille, o sexo também se identifica com a violência e com o mal. Para ele, o prazer sexual não pode prescindir das proibições morais porque é vivido como queda, perdição. E o sujeito soberano dessa experiência que pressupõe um acordo voluntário com o pecado é o homem, é claro. A mulher é mero instrumento, ou, como diriam alguns pensadores da Igreja, a “ocasião do pecado”. O próprio Nietzsche, um triste mal amado, em um de seus textos misóginos chega a dizer: “Se vais encontrar uma mulher, não esqueças o chicote!”

Quem, realmente, é libertário?

Acredito que libertária foi Christine de Pisan, (1363 – 1430) contemporânea de Joana D’Arc, poeta e filósofa italiana que viveu na França e foi a primeira mulher que, tendo ficado viúva muito nova, não mais se casou e sustentou três filhos e o velho pai com seu trabalho de escritora. Libertárias foram as beguinas, que a partir do século XIII começaram a viver em comunidades leigas, e foram as mulheres mais independentes do período medieval porque se recusavam a fazer tanto os votos do casamento, quanto os da vida monástica, ou o de pobreza. Viviam de seu trabalho, principalmente bordados e costuras, e praticavam a caridade cuidando de pobres e de doentes. E podiam se casar se mais tarde o desejassem. Eram perigosamente livres, donas de seus próprios destinos. Com o tempo, a Igreja passou a persegui-las e acabou por condená-las como heréticas. Ainda se pode visitar alguns dos “beguinatos”, na Bélgica, e em outros países da Europa.

Libertário foi o francês Charles Fourier, do início do século XIX, o famoso criador dos falanstérios, organizações corporativas autossustentáveis, onde todos eram igualmente livres para viver as experiências que desejassem, sem convenções nem preconceitos, mas sempre com mútuo consentimento e mútuo respeito. Libertário foi Wilhelm Reich, que acreditava na sociabilidade e na sexualidade naturais e na nossa tendência saudável para o prazer e para o amor. Segundo ele, os casais deveriam se unir apenas por amor e somente enquanto esse afeto durasse. Antes dele, Friedrich Engels, em seu famoso livro A origem da família, da propriedade privada e do Estado, previu uma sociedade onde a mulher, graças ao trabalho fora da casa, iria adquirir os mesmos direitos do homem ao amor sexual. Acreditava que o casamento, unidade econômica, seria substituído por uniões baseadas no afeto e na atração mútua e livre, uma espécie de monogamia em série. Libertária foi Alexandra Kollontai, (1873-1952) a jornalista e escritora russa que em 1918 , em seu livro A nova mulher e a classe operária, escreveu:

Tal é a nova mulher. (…) a valorização da liberdade e da independência ao invés da submissão e da impersonalidade; a afirmação de sua individualidade ao invés de esforços ingênuos para se deixar moldar pelo bem-amado e refleti-lo; a afirmação de seus direitos aos prazeres “terrenos” ao invés da máscara hipócrita da “pureza”; (…) temos diante de nós não a fêmea e a sombra do homem, mas a nova mulher…

Libertário é outro escritor russo, hoje esquecido, Nicolai Berdiaeff, (1874-1948), um precursor do existencialismo que considerava o casamento por convenção ou conveniência simplesmente imoral. Para ele, o verdadeiro sacramento era o amor, momento privilegiado da experiência de homens e mulheres. Para Berdiaeff, o casamento e a família tem sido e ainda são, em larga medida, um sistema escravocrata, uma forma de hierarquia baseada na dominação e na submissão. O amor é livre por excelência e, por sua própria natureza, desafia as leis. Ninguém deveria, portanto, renunciar ao direito de amar e ser amado em nome do dever ou da lei, ou da opinião pública ou das convenções sociais.

Embora não tenham sido propriamente feministas, George Sand e Lou Andreas-Salomé também foram libertárias no exemplo da independência de suas vidas.

O que precisamos criticar é o androcentrismo e a visão masculina da sexualidade. A força do desejo que o Marquês de Sade identificava com a violência não terá mais lugar no século XXI. A nova “relação de ser humano para ser humano, não mais de macho para fêmea”, poderá finalmente consistir na “mútua proteção, limitação e saudação de duas solidões,” como disse o poeta Rilke, em 1904. Só depende de nós.

2 Comments

  1. Fiquei sem fôlego! Bravo, bravo, bravo!!!!! Boas associações de acontecimentos, bela revisitação de todas de posição, de mulheres e não só. Fora quem precisa de subjugar para se poder realizar. E força para quem precisa para reagir.

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