Flipe Marlove, detective privado (investigações discretas e eficazes) tropeçava em tapetes ou capachos e em palavras e conceitos. Enquanto dormitava, embalado pelo ruído monótono dos motores (parece que é assim que se costuma dizer nos romances). Ocorriam-lhe factos da sua vida passada. A “vida é um palimpsesto”, ensinara-lhe o Dr. Parreira, professor de Filosofia. «O soldado comando olha sempre em frente», berra-lhe a besta do sargento Sampaio na recruta. E por aquilo que ele considerava um fenómeno de imprinting , a teoria que valera ao cientista austríaco, Konrad Lorenz um prémio Nobel, ele acostumara-se a nunca acreditar nas aparências e a tropeçar em capachos, passadeiras e tapetes.
Marília, a borbulhenta secretária erradicara todos os tapetes e capachos do andar da Rua dos Correeiros onde funcionava o escritório. As palavras, morfemas, fonemas e sintagmas, não podia ela afastá-las do caminho do patrão. Muito menos os conceitos filosóficos e científicos – o palimpsesto e o imprinting…
O seu primeiro caso importante, ocorrera no parque de estacionamento do Restauradores. Numa noite em que ali fora buscar o carro tropeçara no que pensou ser um tapete. Não era. Estava caído entre um Smart e um Renault. Levara um tiro no peito e na mão esquerda tinha uma carteira de fósforos onde com letra trémula alguém escrevera – “marquesa oliveira do hospital”. Junto da mão direita uma esferográfica. Filipe ligou pelo telemóvel ao inspector Pais, da Polícia Judiciária que gostava de se aconselhar com o Filipe. Protegia-o nas incursões fora do estatuto de investigador privado e Marlove ajudava-o a redigir relatórios e dava-lhe ideias que o faziam brilhar nas reuniões com o senhor director-geral. Era aquilo a que chamava «o imposto de palhota».
Encontravam-se num café da Duque de Loulé, já perto do Conde Redondo. O Pais descrevia-lhe uma dada situação. Filipe pensava e dava a sua opinião. O Pais, tomava apontamento e agradecia: Não tropeçava em conceitos pois era homem de poucas palavras Numa das poucas vezes em que falou sem a habitual concisão, a erudição de Marlove meteu-o em assados. Deixara colegas e director boquiabertos ao afirmar:
– A realidade é um palimpsesto.
– Um Palim quê? – perguntou o senhor director. Mas Pais era um homem prático:
– Filosofia indiana, senhor director. Coisas que aprendi em África com os monhés. Vem tudo no camasutra. Se o senhor quiser, explico num relatório…
E a propósito do imuno-alergologista, Filipe opinara – duas uma ou se trata de uma marquesa qualquer que vive em Oliveira do Hospital ou…
– Ou… – o Pais estava em suspenso.
– Ou de um Oliveira que está numa marquesa do hospital onde o médico trabalhava. Ou…
– Ou?
– Ou … Repare, inspector, que o último a de marquesa está levemente separado, então teríamos: « marques a oliveira do hospital». Ou seja, é o aviso para um tal Marques procurar alguma coisa junto de uma oliveira plantada no jardim do hospital. Ou…
– Ou – o Pais ficou em suspenso.
– Ou, é uma recomendação para a polícia – «marque sa oliveira do hospital» – é só procurar um Sá Oliveira que trabalhe no hospital…
O Pais tomava nota de tudo. E comentou:
– Estrordinário!
Descobriu-se depois que o imuno alergologista fora morto por um ladrãozeco que o assaltara e a quem resistira. O apontamento fora escrito no bar onde o médico bebera uns uísques (daí a letra trémula). Um empregado de mesa recomendara-lhe o restaurante «Marquesa» na estrada de Coimbra para Oliveira do Hospital… «Um cozido à portuguesa que é uma categoria», dizia o homem para o Pais.
Mas o inspector sabia avaliar a ginástica mental. O Marlove era um crânio. Durante um briefing, disse para os agentes:
. – As coisas nunca são o que parecem! É preciso procurar a verdade debaixo das aparências. Foi um filósofo, um tal Palim Sexto Emprinting que o disse. Um sábio australiano. Ganhou o Nobel e tudo.
Os agentes acenavam com a cabeça: – Sim, senhor inspector!
– A cultura nunca fez mal a ninguém – sentenciou, cofiando os bigodes.