Selecção, tradução e notas de Júlio Marques Mota
Os novos motores da geopolítica na Europa
George Friedman, The New Drivers of Europe’s Geopolitics
Stratfor Global Intelligence, 27 de Janeiro de 2015.
Nas duas semanas anteriores, centrei-me sobre a fragmentação crescente na Europa. Duas semanas antes, os assassinatos em Paris alertaram-me para escrever sobre a linha de fractura entre a Europa e o mundo islâmico. Na semana passada, escrevi sobre o nacionalismo que está individualmente a crescer nos países europeus depois de o Banco Central Europeu ter sido levado a permitir que os Bancos Nacionais participem na quantitative easing de modo a que as outras nações europeias não sejam forçadas para carregar a dívida dos outros Estados membros. Estou agora a centrar-me sobre a fragmentação em parte porque esta está a acontecer à frente dos nossos olhos, em parte porque Stratfor tem-no previsto desde há muito tempo e em parte porque o meu novo livro sobre a fragmentação de Europa — Flashpoints: The Emerging Crisis in Europe— está a ser editado hoje.
Esta é a semana para falar da fragmentação política e social no interior das nações europeias e do seu impacto na Europa no seu conjunto. A aliança do partido de esquerda radical, conhecido como Syriza, marcou uma vitória principal na Grécia. Agora o partido está a formar uma aliança para funcionar e está a pressionar os partidos tradicionais. Está a influenciar e a atrair outros partidos de esquerda e de direita que só têm de comum a sua resistência à insistência da UE para quem a austeridade é a solução à crise económica em curso que começou em 2008.
Duas versões da mesma história
A história é bem conhecida. A crise financeira de 2008, que começou como um problema de incumprimento sobre hipotecas nos Estados Unidos, criou uma crise de dívida soberana na Europa. Alguns países europeus não foram capazes de fazer o pagamento dos seus títulos de dívida pública e isso ameaçava o sistema bancário europeu. Tinha que haver algum tipo de intervenção estatal, mas houve um desentendimento fundamental sobre o problema que tinha de ser resolvido. Em linhas gerais, havia duas narrativas.
A versão alemã e que se tornou a visão convencional na Europa, é a de que a crise da dívida soberana é o resultado das políticas sociais irresponsáveis na Grécia, o país com o maior problema da dívida. Estas políticas problemáticas incluem as reformas antecipadas para os trabalhadores da função pública, os subsídios de desemprego excessivos e assim por diante. Os políticos tinham comprado votos pelo esbanjamento de recursos em programas sociais que o país não podia suportar, pura e simplesmente não cobravam os impostos devidos e não conseguiram promoverem o emprego e a indústria. Portanto, a crise que ameaçava o sistema bancário estava enraizada na irresponsabilidade dos devedores.
Uma outra versão, difícil de ouvir nos primeiros dias depois da crise rebentar mas de longe mais digna de crédito hoje, é a de que a crise é o resultado da irresponsabilidade da Alemanha. A Alemanha, a quarta maior economia no mundo, exporta o equivalente de aproximadamente 50 por cento do seu produtos interno bruto porque os consumidores alemães não podem ser a base de escoamento da sua desproporcionada produção industrial. O resultado é que Alemanha sobrevive na base da dinamização das suas exportações. Para a Alemanha, a União Europeia — com a sua zona de comércio livre, o euro e as regulações emitidas por Bruxelas — é a via para manter as suas exportações. Os bancos alemães concedem empréstimos aos países que como Grécia depois de 2009 foram levados a manter a procura das suas exportações. Os alemães sabiam que as dívidas poderiam não ser reembolsados, mas quiseram saltar por cima desta dificuldade para evitarem ter de enfrentar o facto de que o seu apego às exportações não poderia ser mantido.
Se aceitarmos a narrativa alemã, então, as políticas que devem ser seguidas são as que forçariam a Grécia a pagar pelos seus erros e liquidar as suas dívidas. Isso significa continuar a impor-se a austeridade para com os gregos. Se a narrativa grega é a correcta, então o problema está fundamentalmente na Alemanha. Para acabar com a crise, a Alemanha teria que refrear o seu apetite pelas exportações e modificar as regras europeias quanto às trocas comerciais, a valorização do euro e a regulação feita por Bruxelas enquanto vivem dentro dos seus meios. Isto significaria reduzir as suas exportações para a zona de comércio livre que tem uma indústria incapaz de competir com a Alemanha.
A narrativa alemã foi esmagadoramente aceite, e a versão grega não tem sido ouvida. Eu descrevo o que acontece quando a austeridade foi imposta em Flashpoints:
Mas na Grécia os impactos dos cortes na despesa pública foram muito maiores do que o esperado. Tal como muitos países europeus, os gregos tinha muitas actividades económicas, incluindo medicina e outros serviços essenciais em que a produção e fornecimento público estava sob a responsabilidade e controlo do Estado , fazendo com que os médicos e outros profissionais de saúde sejam funcionários públicos. Quando os cortes foram feitos no sector público sobre cortes nos salários e no emprego, estes afectaram profundamente os serviços públicos e as classes médias.
Ao longo de vários anos, o desemprego na Grécia subiu para mais de 25 por cento. Esta é i uma taxa de desemprego mais elevada do que a que se verificou nos Estados Unidos durante a Grande Depressão. Alguns dizem que a economia paralela da Grécia é que faz a diferença e que as coisas não são assim tão más. Isso foi verdade até um certo ponto mas nunca tanto como as pessoas podem ser levadas a pensar, uma vez que a economia paralela é simplesmente uma extensão do resto da economia e esta vai mal em todos os lugares. Na verdade, a situação era pior do que parecia ser, uma vez que havia muitos funcionários públicos que ainda ficaram empregados, mas viram os seus salários cortados drasticamente, muitos em mais de dois terços.
A história grega repete-se em Espanha e, num grau um pouco menor, em Portugal, no sul da França e no sul da Itália. A Europa Mediterrânea entrou para a União Europeia com a expectativa de que a adesão lhes iria permitir elevar os seus padrões de vida ao nível da Europa do Norte. A crise da dívida soberana atinge-os de uma forma particularmente forte porque já no quadro da zona de comércio livre, [A União Europeia) ]esta região teve muitas dificuldades em desenvolver as suas economias, como o deveria ser normalmente. Portanto, a primeira crise económica arrasou-os..
Independentemente de qual a versão em que acreditemos como sendo a verdadeira, uma coisa é certa: a Grécia foi posto numa posição impossível quando aceitou um plano de reembolso da sua dívida que a sua economia não poderia suportar. Estes planos mergulharam-na numa depressão que não ainda não recuperou — e os problemas espalharam-se a outras partes de Europa.
As origens do descontentamento
Havia um sentimento geral de que o disfuncionamento económico passasse. Mas estamos agora em 2015, a situação não está nada melhor e estão a crescer movimentos em muitos países que se opõem fortemente à continuação da austeridade.
Há uma profunda crença na União Europeia e não só na EU que as nações que aderem às regras de Europa, na devida altura recuperariam. Os partidos políticos representantes da maioria da população da Europa apoiaram a União Europeia e as suas políticas, e foram eleitos e re-eleitos. Havia um sentimento geral de que o disfuncionamento económico passaria. Mas estamos agora em 2015, a situação não melhorou mesmo nada e estão a crescer movimentos em muitos países que são opostos à continuação da austeridade. O sentimento de que a Europa se está a deslocar era já visível na decisão do Banco Central Europeu na semana passada ao tornar a austeridade mais fácil aumentando a liquidez no sistema. Na minha opinião, como isto é feito, pode ser dito que se trata de um montante demasiado pequeno e vindo demasiado tarde; embora a facilidade quantitativa [a QE] possa funcionar numa situação de recessão, a Europa do Sul está já numa depressão, o que é completamente diferente. Isto não é meramente um jogo de palavras. Significa que as infra-estruturas das actividades económicas que podem utilizar o dinheiro já estão despedaçadas e, consequentemente, o impacto da facilidade quantitativa sobre o desemprego será limitado. Será necessário uma geração para recuperar de uma depressão. Interessantemente, com a Grécia excluída do programa de facilidade quantitativa do Banco Central Europeu, é o mesmo que estar a colocar o país demasiado exposto à dívida para permitir o risco de empréstimos do seu banco central.
Praticamente todos os países europeus desenvolveram movimentos que têm estado a crescer na sua oposição à União Europeia e às suas políticas de austeridade. A maioria destes países está claramente situada à direita no espectro político. Isto significa que, além das suas dificuldades económicas, querem recuperar o controle das suas fronteiras para limitar a imigração. Os movimentos de oposição também surgiram a partir da esquerda — Nós Podemos em Espanha, por exemplo e claro, Syriza na Grécia. A esquerda tem as mesmas dificuldades que a direita, excepto no que se refere às questões raciais. Mas o importante é isto: a Grécia tem sido vista como o anómalo, como o desajustado, como a ovelha ranhosa para utilizar uma expressão bem portuguesa, mas na verdade é a vanguarda da crise europeia. Foi o primeiro a entrar em incumprimento, o primeiro a impor a austeridade, o primeiro a experimentar o peso brutal que resultou de tudo isto e agora é o primeiro a eleger um governo que se compromete a acabar com a austeridade. De esquerda ou de direita, estes partidos estão a ameaçar os partidos tradicionais da Europa, em que as classes média e baixa vêem estes últimos partidos como sendo os cúmplices da Alemanha na criação do regime de austeridade.
SYRIZA moderou a sua posição na União Europeia, assim como todos os partidos estão habituados a moderar o seu discurso após eleições. Mas a sua posição é que irá negociar um novo programa de reembolsos de dívida grega com os seus credores europeus, o que irá aliviar a carga da dívida para os gregos. Há aqui razão para acreditar que podem ter êxito. Os alemães não se importam se a Grécia salta ou não do euro. A Alemanha tem, no entanto, um enorme medo que os movimentos políticos que estão em andamento vão acabar com a zona euro ou a inibam de funcionar como zona de livre comércio da Europa. O objectivo dos partidos de direita, que é o de limitar a circulação transfronteiriça de trabalhadores, já representa uma exigência em aberto para acabar com o fim de uma zona de livre troca para o trabalho . Mas a Alemanha, o viciado em exportações, necessita doentiamente da zona de livre comércio.
Este é um dos pontos que as pessoas geralmente não têm em conta. Estão preocupadas com a hipótese de os países abandonarem a zona euro. Como a Hungria mostra quando o forint[1] se depreciou isso colocou os seus cidadãos em perigo de incumprimento sobre as hipotecas, um Estado-nação tem o poder de proteger os seus cidadãos da dívida se assim o deseja fazer. Os gregos, dentro ou fora da zona euro, podem igualmente exercer este poder. Além de que como estão incapacitados de reembolsar estruturalmente as suas dívidas , não podem ter recursos para reembolsá-los politicamente. Os partidos que apoiaram a austeridade em Grécia foram esmagados. Os partidos da maioria da população nos outros países europeus viram o que aconteceu na Grécia e estão conscientes da força em crescendo do eurocepticismo nos seus próprios países. A capacidade destes partidos para cumprir com estas cargas está dependente dos eleitores, e a sua base política está claramente a dissolver-se. Os políticos conscientes não ignoram Syriza como lider.
Então a questão não é o euro. Em vez disso, a primeira verdadeira questão é a de se saber qual o efeito dos incumprimentos estruturados ou não no sistema bancário europeu e como o Banco Central Europeu se comprometeu a não tomar a Alemanha responsável pelas dívidas de outros países, como é que então irá ele lidar com isso. A segunda e mais importante questão é agora a de se saber qual será o futuro da zona de comércio livre. A abertura das fronteiras terá parecido uma boa ideia durante os tempos prósperos, mas o medo do terrorismo islâmico e o medo dos italianos, em concorrência com os búlgaros por escassos empregos, fazem com que essas fronteiras abertas sejam cada vez menos possíveis de se suportarem. E se as Nações podem erguer paredes para as pessoas, então porque não erguer paredes para proteger as suas próprias indústrias e os seus empregos? A longo prazo, o proteccionismo afecta a economia, mas a Europa está a lidar com muitas pessoas que já não terão direito a longo prazo, [perderam empregos, perderam saberes com o seu desemprego de longa duração] e cuja preocupação é agora apenas a de quererem saber como vão alimentar as suas famílias.
Para a Alemanha, que depende do acesso aos mercados da Europa para ajudar a sustentar a sua economia dependente das exportações, a perda do euro seria a perda de uma ferramenta fundamental para que ela possa gerir o seu comércio dentro e fora da zona euro. Mas a ascensão do proteccionismo na Europa seria uma calamidade. A economia alemã irá então cambalear sem essas exportações.
Do meu ponto de vista, acabou-se o argumento da austeridade. O Banco Central Europeu acabou com o regime de austeridade sem entusiasmo na semana passada, e a vitória de Syriza criou um terramoto sobre todo o sistema político da Europa, embora a elite eurocrática o vá rejeitar como uma aberração. Se os incumprimentos da Europa — estruturados ou não — surgem como resultado, a questão do euro torna-se uma questão interessante mas não crítica. O que se tornará o verdadeiro problema e que já o começou a ser é o problema do livre comércio. Esse é o núcleo central do conceito europeu, e que é já o próximo problema a estar na ordem do dia, tanto quanto a narrativa alemã perde credibilidade e a narrativa grega a substitui em credibilidade como fazendo parte da sabedoria popular.
Não é difícil imaginar o desastre que se poderia desencadear se os Estados Unidos estivessem a exportar 50% do seu PIB, com metade dessas exportações a serem feitas para o Canadá e o México. Uma zona de comércio livre, em que o gigante central não é um importador líquido não pode pura e simplesmente funcionar. E essa é exactamente a situação na Europa. O seu elemento central, o mais forte, é a Alemanha, mas ao invés de servir como motor do crescimento como será o caso dos Estados Unidos, por ser um importador líquido, esta tornou-se a quarta maior economia nacional do mundo, a exportar metade do seu PIB. Isso não pode ser sustentável.
Possíveis mudanças sísmicas, a seguir
Então existem três elementos a forçaram mudanças na Europa, agora. Um deles é o desejo de controlar as fronteiras — nominalmente para controlar os terroristas islâmicos mas verdadeiramente para limitar o movimento de migrantes à procura de trabalho, incluindo os muçulmanos. Em segundo lugar, há o fortalecimento dos Estados nacionais na Europa pelo Banco Central Europeu, com o seu programa de facilidade quantitativa executado através dos bancos centrais nacionais, que só podem comprar a dívida do seu próprio país. Em terceiro lugar, há a base política, que se está a dissolver debaixo dos pés da Europa.
A questão sobre a Europa agora não é a questão de saber se esta se pode manter na sua forma actual, mas sim a de saber como é que esta mesma forma irá mudar de maneira radical. E a questão mais difícil então é se a Europa, incapaz que ela é de manter a sua União, fará ela um retorno ao nacionalismo e com todas as suas possíveis consequências. Como o disse em Flaspoints:
A questão mais importante do mundo é se os conflitos e as guerra na verdade foram banidos ou se são simplesmente um interlúdio, uma ilusão sedutora. A Europa é a região mais próspera do mundo. O seu PIB colectivo é maior do que a dos Estados Unidos. A Europa confina com a Ásia, o Médio-Oriente e a África. Mais uma série de guerras mudaria não só a Europa, mas também o mundo inteiro.
Falar propriamente de guerra na Europa seria um absurdo há alguns anos atrás, e para muitos, é um absurdo ainda hoje. Mas a Ucrânia é verdadeiramente uma parte de Europa, como o era a Jugoslávia. A confiança dos europeus é que tudo isto está para detrás deles, o sentido do excepcionalismo europeu, pode muito bem estar correcta. Mas como as instituições de Europa se estão a desintegrar, não será estar a antecipar muito se nos questionarmos sobre o que é que vem a seguir. A história raramente nos dá a resposta que cada um de nós espera — e seguramente não nos dá a resposta que cada um de nós deseja.
George Friedman, The New Drivers of Europe’s Geopolitics, publicado no sitio Stratfor, Global Intelligence. Texto disponível em:
https://www.stratfor.com/weekly/new-drivers-europes-geopolitics
27 de Janeiro de 2015.
Editor’s Note: The newest book by Stratfor chairman and founder George Friedman, Flashpoints: The Emerging Crisis in Europe, is being released today. It is now available.
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