AS PRIMEIRAS COMEMORAÇÕES DO 1.° DE MAIO EM PORTUGAL
Desde tempos imemoriais que em Maio se organizavam pelo mundo fora – e Portugal não fugia à regra – festividades de índole pagã e campesina como manifestação do contentamento popular pela renovação periódica das culturas. Mas desta vez a festa era outra.
Os ecos da tragédia de Chicago, em Maio de 1886, tinham soado forte no pensamento proletário. Os Congressos de Paris culminavam a consagração de um propósito universal: a conquista das 8 horas de trabalho. Em Portugal, logo em 1886, os jornais operários, especialmente os anarquistas, fazem chegar o clamor dos acontecimentos iniciados na Praça Haymarket, em Chicago.
Em vésperas do 1.° de Maio de 1890, o movimento operário português organizava-se em torno das 392 associações que, em conjunto, integravam pouco menos de 140 000 trabalhadores.
Por altura das primeiras comemorações do 1.°de Maio em Portugal, as mulheres representavam cerca de 30% da população operária portuguesa.
A duração do horário de trabalho rondava as catorze horas, sendo vulgares os casos de sol a sol e poucos os de dez horas diárias.
Orientados pelas marcações impiedosas do astro-rei, trabalhavam, entre outros, os operários das fábricas do Campo Grande, e J. Dias da Silva, de Oeiras, que, apesar de tudo, estavam um pouco melhor que os tecelões de Gouveia, onde o dia normal de trabalho se estendia das 04.00 às 20.00.
Em As Farpas, o grande homem de letras Ramalho Ortigão exprimia pela escrita os horrores desta situação:
«A fábrica é para as mulheres e é para as crianças o sepulcro do pudor, da honestidade e da saúde. Enquanto as instituições sociais não assegurarem à mulher o seu legítimo lugar na família, é absolutamente preciso que, pelo menos, a protejam na miséria fatal da fábrica. Porque nas fábricas portuguesas o que sucede com a mulher é que, pela sua fraqueza e pela sua ignorância, ela é, no trabalho, o escravo do homem. Ninguém entre nós tem lançado os olhos a esses desgraçados destinos obscuros.
A costura que ainda há pouco era o grande refúgio das raparigas pobres desapareceu com a máquina de coser. A mulher não pode sustentar essa concorrência, porque ela não pode, por maior que sejam os esforços, dar por suas mãos mais de 30 pontos por minuto: a máquina dá 643 pontos no mesmo espaço de tempo. Para se empregar noutros serviços precisaria de uma educação preparatória prática, para a qual são indispensáveis as escolas profissionais que não existem em Portugal.»
A maior mobilização dos trabalhadores faz-se à volta das lutas pela redução dos horários de trabalho. Aos ferreiros, serralheiros, latoeiros e fundidores, revoltados com jornas de longas horas, junta-se um caixeirato, indignado com o trabalho aos domingos, que não hesita em acompanhar de perto a luta dos operários em 1890.
A intensão de desencadear ações no dia 1 de Maio em prol das oito horas de trabalho tinha sido já objeto de apreciação no I Congresso das Associações de Classe de Portugal, reunido em 1885 no edifício da Câmara Municipal de Lisboa. Naturalmente que a esta posição não eram estranhas as decisões idênticas da IV Conferência da Federação dos Trabalhadores dos Estados Unidos e Canadá, que reuniu um ano antes.
Caberia à Associação dos Trabalhadores da Região Portuguesa – ATRP, a iniciativa de promover as comemorações do 1.° de Maio no nosso país. A velha filial da AIT – Associação fundada por Karl Marx era, então, a mais reconhecida mentora do movimento socialista e operário em Portugal. Para os socialistas portugueses, a organização do 1.° de Maio era tarefa que merecia todo o seu empenho e dedicação. As divergências com que se digladiavam mutuamente não impediam a unidade na comemoração, embora já fosse diferente quanto à forma de o fazer.
No dia 1 de Abril de 1890, o Conselho Federal do Sul da ATRP propõe-se, ao cabo de duas horas de discussão, «empregar todos os esforços a fim de promover a manifestação para o dia normal de oito horas de trabalho, acompanhando assim o movimento que em todos os países se está preparando para o 1.° de Maio.
Se tudo parecia unido no conteúdo, o mesmo não se verificava na forma.
Logo nas primeiras sessões preparativas ficou bem claro que enquanto uns optavam pela manifestação reivindicativa e eminentemente politica, outros preferiam a tranquilidade de um pacífico passeio ao campo ou um piquenique nas hortas nos arredores de Lisboa.
O 1.° de Maio em Portugal acabará por fazer-se um pouco das duas maneiras. Para alguns jornais da época, a manifestação não teria passado «de um passeio às hortas com cânticos ao fado».
Porém, nem tudo se passou em toada tão aprazível e bonacheirona.
Desde há alguns dias que um manifesto distribuído na capital dava conta de um programa comemorativo que incluía, para o referido dia 1 de Maio, a colocação de uma coroa de flores no túmulo de José Fontana, nos Prazeres, para o dia 3, a publicação de um manifesto ao povo operário e, finalmente, para dia 4, domingo, realização de um comício com o fim de apresentar aos «poderes constituídos as reclamações universais dos produtores».
No dia 1 de Maio de 1890, o tempo apresentava-se borrascoso em toda a cidade de Lisboa.
No cemitério dos Prazeres, o socialista Luís de Figueiredo foi o primeiro a falar. Em poucas palavrais, referiu José Fontana e os seus serviços à causa do proletariado:
«Hoje, disse o orador, que em todo o mundo o operariado se levanta, dever nosso é aqui curvarmo-nos junto ao túmulo daquele que tanto lutou para que o operário fosse livre e feliz, fora das acanhadas especulações políticas.»
Os presentes correspondem com fortes aplausos.
Entretanto, um dos chefes de esquadra postos de guarda ao túmulo considerando ter havido ofensa à autoridade na intervenção, intimou o orador a calar-se por ter falado em política.
O povo volta a saudar Luís de Figueiredo. De imediato, o outro chefe de esquadra intima para que cessem os aplausos: «Não quero manifestações aqui», dizia um deles, quando outro orador pedia para falar apenas para dizer duas palavras.
Um dos chefes bradou: «Restrinja-se.»
«Eu restrinjo-me, senhor. Vou só falar da vida de Fontana.»
«A vida de Fontana é muito longa, faz favor de acabar.» Isto foi logo seguido de ordem de dispersar dada pelo comissário Teixeira, que, à frente de importante piquete de guardas, apareceu na ocasião.
O povo dispersa em ordem. Por volta das 17h, um grupo de cerca de uma centena de manifestantes regressa ao local. A Polícia corre prontamente, mas os desobedientes fogem antes da sua chegada.
Entretanto, tinha já sido requisitado novo piquete de cavalaria que, sob o comando de um oficial, toma posição em linha, do lado da Fonte Santa, pois que no caminho da Avenida dos Prazeres estava pronta no quartel a 4.a Companhia de Infantaria Municipal.
Em muitos pontos da cidade, o trabalho tinha sido interrompido e os operários concentravam-se nas ruas.
Em Lisboa parecia dia feriado.
No dia seguinte, praticamente toda a Imprensa faz referência aos acontecimentos das primeiras comemorações do 1.°de Maio em Portugal.
No Comércio de Portugal podia ler-se:
«Entendemos que a Imprensa cumpre um dever aplaudindo a forma correta e digna com que a classe operária realizou a sua manifestação de ontem. Fez-lhe injustiça quem entendeu dever cercar de polícia o cemitério ocidental. Ela respondeu nobre e honradamente a essa injustiçai, provando com a sua nobre atitude que, compreendendo os seus direitos, sabia por igual conhecer os deveres.»
O Dia opinava nos seguintes termos:
«A manifestação operária em Lisboa não foi imponente nem extremamente simpática. A maior parte dos grevistas fizeram de conta que o papa do socialismo tinha metido dia santo no calendário católico, e foram-no gozar aos Prazeres como se fossem buscar as sestas. – Não mostraram lá grande empenho nas suas reclamações nem mesmo um profundo estudo das suas verdadeiras necessidades.»
E foi assim que surgiu o 1.º de maio em Portugal.
Subestimado por uns, empolado por outros, o 1.°de Maio de 1890 vem a ser uma data com direito à História.