Selecção e tradução de Júlio Marques Mota
A desilusão da política de austeridade
A política de austeridade como resposta à crise é uma grande mentira. Porque é que a Grã-Bretanha ainda acredita nisso?
Paul Krugman, The austerity delusion-The case for cuts was a lie. Why does Britain still believe it?
The Guardian, 29 de Abril de 2015
Em Maio de 2010, com a Grã-Bretanha a ir para eleições gerais, as elites de todas as partes do mundo ocidental estavam dominadas pela febre da austeridade, uma estranha doença que combinava extravagantemente o medo com um optimismo infantil. Com todos os países a praticar défices orçamentais significativos – porque quase todos estavam no rescaldo da crise financeira – foi considerado que assim se corria o risco iminente de se ter outra Grécia, a não ser que imediatamente se começasse a cortar nas despesas públicas e a aumentar os impostos. As preocupações de que ao impor-se uma tal austeridade nas economias já deprimidas iria aprofundar a sua depressão económica e se iria retardar depois a retoma, essas preocupações foram afastadas; probidade fiscal, estamos seguros, inspiraria confiança sapientemente para dinamizar a actividade económica e tudo estaria bem.
As pessoas que acreditam nestas crenças vieram depois a ser amplamente reconhecidas nos círculos económicos como os “austerianos” – um termo cunhado pelo economista Rob Parenteau – e por algum tempo a ideologia austeriana varreu todas as outras ideias que tinha pela frente.
Mas isto foi há cinco anos, e a febre terá já passado. A Grécia é agora vista como deveria ter sido vista desde o início – como um caso único, com algumas lições para os restantes países. É impossível para países como os EUA e o Reino Unido, que contraem empréstimos nas suas próprias moedas, terem crises do tipo da crise da Grécia porque eles nunca podem ficar sem dinheiro – poderão sempre imprimir mais. Mesmo dentro da zona euro, os custos dos empréstimos desceram a pique logo que o Banco Central Europeu começou a fazer o seu trabalho e a proteger os seus países membros contra a presença de expectativas auto-realizadoras de situações de pânico por estar pronto para comprar títulos do governo, se necessário. Enquanto escrevo isto, a Itália e Espanha não terão problemas em ir aos mercados levantar dinheiro – eles podem contrair empréstimos às taxas menores em toda a sua história, sem dúvida consideravelmente inferiores às da Grã-Bretanha – e mesmo as taxas de juros de Portugal estão bem mais baixas do que as que são pagas pelo Tesouro britânico.
Do outro lado do grande livro, os benefícios do aumento da confiança não se faziam aparecer, como o prometiam os austerianos. Desde a corrida global às políticas de austeridade em 2010, cada país que introduziu uma política de significativa austeridade viu sofrer a sua economia, com a profundidade do sofrimento, a queda do PIB e do emprego, a estar intimamente relacionada com a dureza da austeridade. No final de 2012, o economista-chefe do FMI, Olivier Blanchard, foi ao ponto de fazer mea culpa: embora a sua organização nunca tenha “comprado” a ideia de que a austeridade poderia actualmente impulsionar o crescimento económico, o FMI considera agora que subestimou fortemente os efeitos nefastos que os cortes na despesa pública infligem nas economias debilitadas..
Enquanto isso, todos os estudos económicos que alegadamente apoiavam a austeridade estão hoje desacreditados. Os resultados estatísticos que amplamente elogiavam estas políticas, descobriu-se, eram feitos com base em hipóteses e procedimentos altamente duvidosos– para lá de alguns erros evidentes – que se evaporaram sob uma análise mais rigorosa.
É raro, na história do pensamento económico, considerar que os debates encerrem definitivamente uma questão. A ideologia austeritária que dominou o discurso das elites há cinco anos atrás, entrou em colapso, até ao ponto em que dificilmente se encontrará alguém que ainda acredita nisso. Quase ninguém, excepto a coligação que governa ainda Grã-Bretanha – e a maioria dos meios de comunicação britânicos.
Não sei quantas pessoas na Grã-Bretanha terão percebido a extensão a que o seu debate económico divergiu com o que é feito no resto do mundo ocidental – na medida em que o Reino Unido parece preso em obsessões que têm sido ridicularizadas principalmente no estrangeiro. George Osborne e David Cameron vangloriam-se de que as suas políticas salvaram a Grã-Bretanha de uma crise de estilo grego com o disparar das taxas de juro, aparentemente alheios ao facto de que as taxas de juros estão em mínimos históricos, por todo o mundo ocidental. A imprensa agarrou-se ao caso do erro de Ed Miliband em ter falado do défice orçamental num seu discurso como sendo uma gafe enorme, uma suposta revelação de irresponsabilidade; enquanto isso, Hillary Clinton está a falar, a sério, não sobre os défices orçamentais, mas sobre o ” défice engraçado ” que a América enfrenta em termos de crianças americanas.
Há alguma boa razão pela qual a obsessão do défice deva ainda ser determinante na Grâ-Bretanha, mesmo enquanto esta obsessão se está a desvanecer por todo o lado? Não. Este país não é diferente. A ciência económica da austeridade é a mesma em todo o lado e a situação de falência intelectual também se verifica na Grã- Bretanha como em toda a parte, aliás.
Capítulo1- Os estímulos orçamentais e os seus inimigos
Quando a crise económica atingiu as economias avançadas em 2008, quase todos os governos – mesmo a Alemanha – introduziram de uma forma ou de outra programas de estímulo, aumentando as despesas públicas ou cortando nos impostos. Não havia nenhum mistério porque: os estímulos eram vizinhos de zero.
Normalmente, as autoridades monetárias – o Federal Reserve, o Banco de Inglaterra – podem responder a uma crise económica temporária através de cortes nas taxas de juros; Isso incentiva o consumo privado, especialmente na compra de habitação e prepara as bases para a retoma. Mas há um limite de quanto eles possam fazer nesse sentido. Até muito recentemente, a ideia convencional era de que não se podia cortar nas taxas de juros abaixo de zero. Agora sabemos que isso não estava completamente certo, já que muitos detentores de títulos europeus agora recebem juros ligeiramente negativos. Ainda assim, não pode haver muito espaço para as taxas abaixo de zero. E se cortarmos nas taxas até zero não é suficiente para curar os males de que sofre a economia, o remédio usual para a recessão está então a faltar.
Então, estávamos em 2008-2009. Pelo final de 2008, era já claro em cada grande economia que a política monetária convencional, que envolve a descida na taxa de juro sobre a dívida pública de curto prazo, ia ser insuficiente para combater o crise financeira instalada. Agora, que fazer? A resposta dos livros foi e é a expansão orçamental: aumentar as despesas públicas tanto para criar directamente postos de trabalho como para colocar dinheiro nos bolsos dos consumidores; cortando nos impostos também para colocar mais dinheiro nos seus bolsos.
Mas isso não vai conduzir aos défices orçamentais? Sim, e isso é realmente uma coisa boa. Uma economia que está deprimida, mesmo com as taxas de juros em zero é, na verdade, uma economia em que o público está a tentar poupar mais do que as empresas estão dispostas a investir. Numa tal economia o governo faz tudo o que for possível para aumentar os défices e dando aos aforradores frustados a possibilidade de colocar o seu dinheiro a circular. Nem estes empréstimos competem contra o investimento privado. Uma economia onde as taxas de juros não podem já descer mais é uma economia banhada pelo desejo de poupar sem ter mais nada para se projectar e o défice que faz aumentar a actividade económica é, se for significativo, susceptível de conduzir a um maior investimento privado do que aquele que de outra maneira se poderia concretizar.
É verdade que não se podem ter grandes défices orçamentais e para sempre (embora se possam ter por um longo período de tempo), porque haverá sempre uma altura em que os pagamentos de juros começam a engolir uma parte muito grande do orçamento. Mas é tolo e destrutivo preocupar-se com défices, quando contrair empréstimos nos mercados de capitais sai muito barato e os fundos que se levantam então nesses mercados se assim não fosse ficariam por utilizar .
Nalgum momento do tempo quer-se inverter os estímulos. Mas isso não se deve fazer demasiado cedo – especificamente não se deve retirar o apoio orçamental tanto quanto os cortes nas taxas de juro feitos mesmo a fundo ainda são insuficientes para dinamizar a procura. Em vez disso, deve-se ainda ter de esperar até que possa haver uma espécie de transferência em que o banco central compensa os efeitos da diminuição da despesa pública, através dos cortes nas despesas e no aumento de impostos, mantendo as taxas de juro baixas. Como John Maynard Keynes escreveu em 1937: “o boom, não a queda, é o momento certo para a austeridade nas despesas públicas. .”
Tudo isso é a convencional macroeconomia. Muitas vezes deparo-me com pessoas tanto à esquerda como à direita, que imaginam que as políticas de austeridade são exactamente o que os textos académicos dizem que deve ser feito – e que aqueles economistas que protestaram contra a aplicação da austeridade reivindicam um certo tipo de posição heterodoxa e radical. Mas a verdade é que segundo esta corrente principal, a ciência económica dos manuais não só justifica a posição inicial de estímulo pós-crise, mas indica que este estímulo deve continuar até que as economias tenham recuperado.
O que nós obtivemos, em vez disso, foi um virar à direita, pura e dura, para a opinião das elites dominantes, com esta bem longe das preocupações sobre o desemprego e constantemente centrada de forma empenhada em reduzir os défices, principalmente em fazer cortes na despesa pública. Porquê?
Parte da resposta é que os políticos “cozinharam” para vender ao público, que não entende a lógica de défice, a ideia de que se deve tratar as questões do orçamento do governo da mesma forma com que se trata com o orçamento familiar. Quando John Boehner, líder republicano, se opôs aos planos de estímulo alegando que “as famílias americanas estão a apertar o cinto, mas não vêem o governo apertar o cinto,” os economistas estupidamente encolheram-se. Mas no espaço de alguns meses a mesma linha começou a aparecer nos discursos de Barack Obama, porque os autores dos seus discursos consideraram que isso era bem aceite pelas audiências. Da mesma forma, o Partido Trabalhista sentiu a necessidade de ocupar a primeira página do seu manifesto eleitoral para as eleições gerais de 2015 a falar de “um orçamento responsável para o futuro”, prometendo “reduzir, ano após ano, o défice público “.
Deixem-me, no entanto, não ser muito duro para com o público. Muitos dos responsáveis pela formação da opinião pública, incluindo as pessoas que se imaginam elas próprias de elevado nível de formação em matéria económica, demonstraram na melhor das hipóteses um enorme nível de incompreensão, não abarcando toda a lógica do que é a importância do défice em face de excesso de poupança desejada. Por exemplo, na primavera de 2009 o historiador de Harvard e comentador económico Niall Ferguson, falando sobre os Estados Unidos, estava completamente seguro sobre o que iria acontecer: “vai haver, prevejo, nas próximas semanas e meses, um conflito muito doloroso entre a nossa política monetária e a política orçamental enquanto que os mercados consideram apenas que uma vasta quantidade de obrigações vai ter que ser absorvida pelo sistema financeiro deste ano. Isso irá fazer com que estes títulos tendam a descer de preço enquanto que as taxas de juro terão uma tendência inversa, tenderão a aumentar .” As próximas semanas e meses a que se referia Niall Ferguson transformaram-se em anos – seis anos, neste caso – e as taxas de juros permanecem nos seus mínimos históricos.
Para além destas erradas concepções da economia, havia razões políticas pelas quais muitos jogadores influentes se opuseram aos estímulos orçamentais em face de uma economia profundamente deprimida. Os conservadores gostam muito de utilizar os alegados perigos da dívida e do défice como elementos de pressão com os quais querem vencer o Estado-Providência e justificar os cortes nas prestações sociais do Estado Providência; sugerem pois que a ideia de que uma despesa pública mais elevada pode ser benéfica, é de uma vez todas uma ideia completamente errada. Enquanto isso, políticos e especialistas centristas tentam muitas vezes demonstrar quão sérios e homens de Estado eles são ao apelarem para as escolhas difíceis e para o sacrifício (mas de outras pessoas). Mesmo Barack Obama no seu discurso inaugural, proferido face a uma economia mergulhada em profunda recessão, consistiu em grande parte de banalidades à volta das escolhas difíceis. Como resultado, os centristas estavam quase tão desconfortáveis com a noção de estímulo fiscal como a direita pura e dura.
De certa forma, a coisa notável sobre a política económica em 2008-2009 a assinalar foi o facto de se ter avançado com os estímulo orçamentais, o que é um progresso, contra as forças de incompreensão e contra os interesses instalados que exigiam uma austeridade mais dura e mais dura. A melhor explicação desse sucesso temporário e limitado que li foi escrita pelo politólogo Henry Farrell, em conjunto com o economista John Quiggin. Farrell e Quiggin mostram que os economistas keynesianos estavam intelectualmente preparados para a possibilidade de crise, e de uma forma que os fundamentalistas do livre-mercado não estavam, e que eles também eram relativamente experientes em termos dos media. Assim, os economistas keynesianos conseguiram defender de forma coerente os seus pontos de vista quanto à resposta política apropriada e fizeram-no de forma muito mais rápida do que o campo oposto, criando “o aparecimento de um novo e aparente consenso entre os peritos económicos” a favor do estímulo fiscal.
Se isto estiver certo, haverá inevitavelmente uma reacção crescente – uma viragem contra os estímulos orçamentais e a favor da austeridade – uma vez que o choque da crise se dissipe. Na verdade, havia sinais de uma tal reacção brutal desde o princípio do outono de 2009. Mas o verdadeiro ponto de viragem deu-se no final daquele ano, quando a Grécia foi mesmo encostada à parede. Como resultado, o ano das últimas eleições gerais da Grã-Bretanha foi também o ano da austeridade.
(continua)
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Paul Krugman, The austerity delusion-The case for cuts was a lie. Why does Britain still believe it?.
Texto publicado em The Guardian e disponível em:
http://www.theguardian.com/business/ng-interactive/2015/apr/29/the-austerity-delusion
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A FÁBULA DA AUSTERIDADE – PARTE I