A GRÉCIA DE AGORA E A MITOLOGIA GREGA, POR JÚLIO MARQUES MOTA – INTRODUÇÃO AOS TEXTOS DE EDWARD HUGH E PHILIPPE LEGRAIN – IV

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(conclusão)

 

3. O pecado, a punição, uma leitura dada pelo Bundesbank

Em Abril-Maio de 2012 escrevi um texto sobre a crise na Europa de que passo a transcrever excertos:

“Com a Grécia submetida, com a Irlanda vencida, com Portugal a ver a sua riqueza patrimonial vendida ou hipotecada, com Espanha a ser agora fortemente agredida e a Itália à espera de uma outra saída, neste cenário de desolação, diríamos que da Democracia muito pouco nos resta. Muitos pensarão que dela já sente a despedida.

Será que Bruxelas, o BCE, o FMI não se limitam a assistir à derrocada da Europa e nela participam activamente com políticas de austeridade e com severas determinações financeiras impostas cegamente pelos mercados a Estados ainda formalmente soberanos? Por absurdo que pareça, temos a sensação de que não é incorrecto pensarmos que estamos a voltar aos tempos da barbárie absoluta.

E lembramo-nos do que se diz de Nero: que “terá mandado” incendiar Roma, por sonhar com uma cidade arquitectonicamente diferente! Roma ardeu durante nove dias e nove noites, dela ficando apenas ruínas e cinzas. Nero, um assassino, nas palavras de Séneca, de Suetone, de Plínio, ou, antes pelo contrário, Nero, o poeta, o político, oposto à casta dos senadores e da nobreza? Nero, um letrado, um cantor, um músico, um político que pretendia as suas ligações directas com o povo, que acusou os cristãos de serem os responsáveis pelo incêndio?

O incêndio de Roma – forma radical de impor um novo plano de ocupação dos solos e de remodelar a capital do Império e edificar à sua desmedida a sua morada, o imponente Domus Aurea? Um cenário onde poderia colocar em prática a sua ligação com a plebe? Punição, Renovação, Redenção, é esta uma das leituras para o crime hediondo, se crime houve, de Roma a arder.

No mínimo, diríamos que é curiosa esta argumentação, sendo este paralelismo com a situação actual que nos leva a pensar nos Neros modernos, dada a ideia de punição, de expiação, de redenção agora presente nas políticas impostas aos Estados fragilizados. Os cristãos acusados por Nero são substituídos pelos trabalhadores que têm de pagar a crise e para a qual não contribuíram.

Forçada esta analogia? Que dizer então das declarações de Jens Weidmann, Presidente do Bundesbank, a propósito dos países periféricos europeus e da crise, de uma outra ordem, a dos mercados, a propósito também de uma outra Europa, a da austeridade, e de uma outra Roma também – a Europa que agora está a cair? Vejamos.

Fruto do modelo neoliberal, a Europa é um espaço económico assente numa montanha de dívidas : dividas dos Estados Centrais, das autarquias, das empresas, das famílias e até de numerosos bancos cheios de dívidas, situação a rectificar com urgência através do castigo imposto aos contribuintes dos Estados membros. Os contribuintes expiarão os pecados cometidos, a luxúria vivida. Esta é a leitura do Bundesbank. E o mecanismo é mais simples do que a lógica de Nero – a punição é garantida pelos mercados através da sua arma favorita – a taxa de juro. Diz Jens Weidmann: « Quando os Estados começam a ter que pagar cada vez mais cara a obtenção de um crédito para cumprir as datas de vencimento, então endividar-se torna-se tudo muito menos atraente”.

Nesta lógica, a primeira fase do castigo atinge os Estados através das agências de notação. Baixa a notação e a taxa de juro sobe, a taxa a que um Estado se deve refinanciar no mercado. E aqui temos um desenvolvimento em cascata: a notação desce, a taxa de juro sobe, os Estados podem ainda menos suportar o encargo da dívida, a notação continua a descer, a ida aos mercados torna-se ainda mais cara e o ciclo sucede-se, como aconteceu com a Grécia, Irlanda, Portugal e está agora a acontecer com a Espanha ou com a Itália. .

E a segunda fase da punição aparece: a dívida a subir, os encargos disparam e exigem-se receitas estatais. Como? Através das políticas de austeridade introduzidas para acalmar os mercados! E seria então como diz Jens Weidmann: a boa política orçamental deve ser recompensada por créditos públicos a taxas de juro baixas e a má política orçamental deve ser punida pelo mesmo meio, agora com taxas de juro altas. Ou seja, o Bem, as políticas de austeridade, é premiado por este mecanismo de relojoeiro e o Mal, as políticas de expansão, é, pelo mesmo mecanismo, castigado.

Tem sido assim na Europa para satisfazer as exigências dos mercados. O Banco Central Europeu tem a capacidade de monetarizar as dívidas dos Estados da mesma forma que o faz com os bancos privados. Assim, pode ser determinante na formação das taxas de juro. O BCE não o faz e diz-nos o Presidente do Bundesbank que esta prática pode ser inflacionista, mesmo em período de deflação e também porque desta forma se iria impedir o mecanismo de gratificação e de punição de funcionar na sua máxima eficácia.

Por conseguinte, Jens Weidmann ainda nos diz: “Não se poderá certamente superar a actual crise de confiança violando a lei. A Europa, não é só uma moeda única, é também um respeito comum para o estado de direito. (…) Devemos ser cuidadosos, na busca de uma solução para a crise da dívida, e nunca dar a ideia que se espezinham estes valores.”, o mesmo é dizer, nada há alterar no quadro institucional da União Europeia que não seja o de reforçar a lógica da gratificação, da punição. E essa é a resposta que as Instituições têm dado à crise, quadros legais que nos prendem até no futuro, se forem pelos parlamentos nacionais aprovados, garantindo, gravando na pedra, políticas de austeridade ainda mais severas do que as utilizadas até agora.

E assim é esta Europa com milhões de desempregados, de doentes sem direito ou sem possibilidades de acesso a cuidados de saúde, com jovens sem direito a futuro, de jovens casais sem direito à habitação, com milhões de trabalhadores sem direito ao direito do trabalho. Os únicos direitos que se mantêm são os direitos do capital e dos mercados. Assim é esta Europa que tem de se submeter à ditadura dos mercados, uma vez que são estes agora, e não os Estados, que determinam as altas taxas de juro para a dívida pública. O mesmo é dizer que são os mercados que determinam o valor actual do futuro.”

Vejamos então os resultados da punição exercida pelas Instituições internacionais sobre a Grécia, tomando como exemplo três ou quatro gráficos bem representativos do “castigo” a que os gregos têm estado sujeitos, desde que a crise da dívida soberana foi levantada.

    1. Produção e rendimento em queda acentuada na Grécia como fruto da punição

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    2. O esforço nas contas públicas feito ou imposto ao povo grego

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    3. Um esforço enorme, um país destruído, e a divida em crescimento. Repare-se, temos em Portugal a mesma sequência, mas tudo vai pelo melhor, assegura-nos Passos Coelho.

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Martin Wolf no Financial Times de 21 de Abril de 2015 desmistifica a ideia de que a Grécia “não tem feito nada” conforme se ilustra nos gráficos acima:

“A Grécia sofreu um enorme ajustamento quanto ao saldo do seu orçamento e das suas contas externas. Entre 2009 e 2014, o saldo primário do orçamento (o saldo orçamental sem incluir a carga dos juros da dívida) foi reduzido em 12 por cento do PIB, o défice orçamental estrutural sofreu uma redução de 20 por cento do PIB e o saldo da balança corrente uma redução de 12 por cento do PIB “. (…)

“Entre o primeiro trimestre de 2008 e o último de 2013, a despesa real na economia grega caiu em 35 por cento e o PIB caiu de 27 por cento, enquanto o desemprego atingiu 28 por cento da força de trabalho. Estes são ajustamentos enormes, de facto, e uma das tragédias do impasse sobre as condições de ajuda é que o ajuste já ocorreu. “

Os dados são estes. O Financial Times, expoente máximo do neoliberalismo à escala planetária vem-nos dizer que o ajustamento, pura e simplesmente está feito. Mas Schauble e os seus capangas do Parlamento Europeu querem mais, querem o governo no chão, prostrado, morto, mas morto politicamente.

A Europa está doente e segundo aqueles que a dirigem a doença não está no modelo seguido pelas Instituições Internacionais, a política de austeridade imposta a toda a União Europeia, nada disso, o mal está naqueles que violam as suas regras, que estão dispostos a mostrar, suprema difamação para as Instituições europeias, que estas estão erradas, que não estão dispostos a aceitar os resultados das suas políticas. Em síntese, o mal está na Grécia e deve, por isso mesmo, ser extirpado. E ironia amarga da História : uma figura da Grécia antiga e da sua mitologia, o pharmakos, pode ser a explicação para o que está a acontecer, mas então estamos a regressar ao mundo da barbárie!

E estas políticas de consolidação orçamental praticadas à escala da União Europeia deram por exemplo isto:

O desemprego nos Estados membros

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Desemprego jovem

Em Março de 2015, 4.804 milhões de jovens (abaixo dos 25) estavam desempregadas na Europa a 28, dos quais 3.215 milhões pertencem à zona euro. Comparado com Março de 2014, o desemprego jovem decresceu de 520 000 na União a 28 e de 276.000 na zona euro. Em Março de 2015, a taxa de desemprego jovem era de 20.9% na EU a 28 e de 22.7% na zona euro, e os valores correspondentes em Março de 2014 eram respectivamente 22.8% e 24.2%. Em Março de 2015, a mais baixa taxa de desemprego verificou-se na Alemanha (7.2%), Austria (10.5%), Dinamarca e Holanda (ambas 10.8%), e a taxa mais alta verificou-se na Grécia (50.1% em Janeiro de 2015), Espanha (50.1%), Croácia (45.5% no primeiro trimestre de 2015) e Itália (43.1%).

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Os dados acima são terríveis. E este quadro negro é uma realidade que dispensa todo e qualquer comentário e relembremos que já passaram 7 anos depois do rebentamento da crise dita de suprimes. E estamos assim, como nos mostram os gráficos do emprego, e depois de tantos esforços em termos de políticas de austeridade ou, de forma mais elegante, em termos de consolidação orçamental!

Ora a Grécia votou um governo cujo programa se situas nas antípodas do programa das políticas defendidas por Bruxelas, Berlim, Frankfurt e Washington. Com a subida de Syriza, pode-se vir a instalar um terrível contágio, pode-se vir a espalhar uma peste e, por aí, abalar todo o sistema, seja agora a partir de Espanha, da Irlanda, da França, da Itália ou até da Finlândia quando esta começar a provar o sabor amargo da consolidação. Com o contágio pode vir a abalar todo o edifício europeu tal como os alemães o configuraram. É preciso cortar o mal pela raiz, por onde estão os revoltosos, pela Grécia, Estes, ou se abatem ou se expulsam. São estas as ideias que passam pela cabeça de Schauble e dos falcões das Instituições Internacionais. Estas são também as jogadas possíveis que Schauble considera possíveis para responder à crise. Os dados estão claramente lançados, sobretudo a partir de Riga. De uma maneira ou de outra exige-se para a Grécia que cumpra o seu papel de pharmako neste processo, e a seguir o silêncio.

A lógica da austeridade falhou e a democracia, por via do Syriza começou o assalto à fortaleza do modelo social europeu transformado numa ferramenta de construção de um IV Reich, basicamente sob a batuta de Schauble, de um IV Reich sem os aspectos imediatamente hediondos do III Reich. Um IV Reich soft onde se consegue, não pela força das armas mas por força da dívida soberana, espezinhar todo um continente em nome dos supostos interesses alemães e é aqui que a dimensão do problema grego agora assume o papel do pharmako, o de bode expiatório de toda a Europa, ou seja de toda a crise. Veja-se a descrição feita à volta do apedrejamento do pharmako na Grécia antiga e veja-se o paralelo com a situação de agora. Ou a expulsão via apedrejamento ou a morte directa via estrangulamento total da Grécia, a ficar falida, sem liquidez, sem capacidade de nada, é a decisão de agora, partindo do BCE. Um garrote perfeito, em nome dos Tratados, ou da leitura que Schauble quer que deles seja feita. Em suma, a Grécia assume o papel que outrora os marginais assumiam nas cidades –Estado na Grécia : o de pharmako, pessoa indiferenciada, marginal, acusada e preparada para lhe ser imposto o sacrífico em nome da purificação da nova cidade-estado, a Europa, pessoa irrelevante acusada de corporificar todos os males de que padece a zona euro como um todo. Nós não somos a Grécia, grita a turba, que lhe atira pedras, e por turba entendemos Portugal, Espanha, França, Itália, Chipre, etc. E na Europa, a Grécia, em termos de importância económica é mesmo marginal, como marginal era qualquer pharmako na Grécia antiga, para lá do século V antes de Cristo, a recuarmos no tempo, portanto. Marginal por marginal, aqui temos mais uma equivalência, na ironia da historia que, como diz Mark Twain pode não se repetir, mas, que rima, rima.

Num recente artigo Carlo Bordoni considerou a crise como um sacrifício humano, com o artigo Crisis: A Bloody Sacrifice onde afirma:

“Assim, a Europa do terceiro milénio, chocado pela pior crise económica desde a queda da bolsa de 1929, viu-se perante um regresso aos casos de suicídio: formas extremas de desespero que se destacam num quadro mais amplo de vidas devastadas, empobrecidas, reduzidas à miséria e onde se é, então, , forçado a lidar com o desgaste emocional de uma condição de vida injusta, insuportável e sem esperança. A desigualdade, já está presente e de forma crescente e, portanto, menos aparente do que em tempos “normais”, tornou-se marcante e desumana desde 2008 nos países em maiores dificuldades da Comunidade Europeia.

(…)

Este é o preço da crise: quase uma guerra, um sacrifício sangrento no altar da finança e da insensibilidade humana.”

Mas também aqui, no texto de Carlo Bordoni, a ideia de um sacrifício humano, de uma sacrifício sangrento.

Boa leitura, portanto.

Coimbra, 19 de Maio de 2015

 

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