CARTA DE ÉVORA -Histórias de Évora – O Juiz e o Enforcado (I) – Joaquim Palminha Silva

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Em 1978, o cidadão norte-americano Christopher C. Lund, quando trabalhava na preparação do catálogoImagem1 descritivo da «Colecção de Manuscritos Portugueses da Biblioteca do Congresso» (EUA), deu com um manuscrito em bom estado de conservação, de encadernação em pele de bezerro com capa ilustrada com o brasão (estampado a ouro) do 2º Conde de Olivais e Penha Longa (1871-156). Com a cota P-129, manuscrito será cópia de original datado de 1644, e recolhe “estórias” anteriores esta data, segundo apurou o investigador, que o titulou «Anedotas Portuguesas e Memórias Biográficas da Corte Quinhentista», sendo o seu título original «ISTORIAS E DITOS GALANTES QUE SUCEDERAÕ E SE DISSERAÕ NO PAÇO». Foi a obra editada em Coimbra no ano de 1980. Deste curioso livro se estrai e burilou a história do Juiz e do Enforcado, acontecida em Évora, com início nos Paço Reais, que existiam colados à Igreja e Convento de S. Francisco.

 Eis a história, com mais de 450 anos, a partir do tradicional era uma vez… A Corte de D. João III, estabelecida em Évora pelo menos desde 1534.

O rei, dito «o piedoso», trouxe para os Paços Reais «a par de S. Francisco» a austeridade beata de fanático do «Tribunal do Santo Ofício» (Inquisição), bem como a “glória” mórbida de salvar as almas dos judeus, relapsos, alguns “hereges” e uns pobres “diabolizados” e enfeitiçadas, libertando-os das carnes pecadoras pelo fogo, ateado na Praça Grande da urbe (Praça de Giraldo) …

Ao contrário do que quer fazer acreditar a historiografia local, imbuída de serôdio “bairrismo”, na segunda metade do século XVI Évora não respirava uma atmosfera de tolerância humanística (esta cidade transtagana, não se parecia com Amesterdão, nem com as cidades italianas da «renascença»!) … Nesta época, pelo contrário, a cidade começa a viver um clima abafado, pesado de suspeições e perseguições religiosas, e o “ar” que se respirava já prenunciava uma longa e severa invernia espiritual…

O facto é que D. João III arrastou para aqui com a sua cinzenta pessoa, um tipo standart de mentalidade corrente, pelo que muitos, se não todos os seus directos colaboradores (contadores, capelães, cavaleiros, e mariscais, camareiros, tesoureiros, copeiros, mestres-sala, guarda-mores, escudeiros e criadagem diversa) deram em sacrificar as suas eventualmente liberais formas de pensar e “maneiras de ser” nas aras do fanático rigor real, se quiseram conservar o emprego e …a vida!

Naturalmente a Corte temia D. João III (respeitava-o?), mas não tinha génio para o imitar. O rei era de facto um católico de ortodoxia a roçar o doentio fanatismo, mas paradoxalmente era também um homem da Renascença em outras matérias, com uma cultura de raiz latina acima da média, se equiparada a outros monarcas do seu tempo. Assim, os cortesãos ficavam-se quase todos pelas aparências, e estas, como se sabe, são apenas a casca e não o miolo das existências. Enfim, deveria sair da multidão subserviente mestre Gil Vicente, mas todo o cuidado era pouco…

«Vivendo el-rei D. João III em Évora com a Rainha D. Catarina, estava lá toda a Corte, e também o Regedor João da Silva com toda a Casa da Suplicação, e lá se julgavam toos feitos cíveis e crimes, que pertenciam à dita Casa». Começa desta forma a história lúgubre de João da Silva, regedor, isto é, juiz na dita «Casa…» que vinha a ser o tribunal superior ou tribunal da Corte, sendo ele o seu primeiro magistrado.

Todas as manhãs, empunhando a sua vara de juiz e cumprindo rigorosamente as funções que lhe haviam sido atribuídas pelo Rei, João da Silva assistia aos interrogatórios (que deveriam decorrer entre açoites, torturas e muitos “ais!”), eficaz execução de mandados de captura ou de penhora de bens (que já as havia, sobretudo de judeus!), mandando lavrar os documentos com as suas sentenças, na letra estilada do escrivão de serviço, tão correcta e tão banal que faria o desespero dos grafólogos dos nossos dias.

Depois do trabalho matinal e após o almoço, passava o juiz João da Silva o resto da tarde no Paço e, muitas vezes, já com o sol-pôr, assistia «à mesa de el-rei», suprema mercê concedida pelo monarca aos que lhe eram mais próximos. Depois, noite dentro, João da Silva regressava à casa que lhe fora encontrada como aposentadoria, numa quinta fora da cidade, muito para lá do Chafariz das Bravas, depois de ultrapassada a igreja de S. Sebastião que a iluminura do Foral manuelino de 1501, muito bem mostra ao leitor…

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