TARECO – 7. LIBERTAR-SE DA LEI DA MORTE – por FERNANDO CORREIA DA SILVA

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(1931 - 2014)
(1931 – 2014)

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7. LIBERTAR-SE DA LEI DA MORTE

 

 

            Uma semana depois volta ao ataque:

         – Acabo de falar com o Samurai. Descobri a função de um chip que me intrigava. Ele simula, sim senhor, o instinto de identificação, aquele do patinho que se apega à mãe-galinha. Fernando: foste tu que accionaste a minha capacidade de falar. Foi por isso que me apeguei a ti. Afinal tinhas razão. Estás contente?

         – Tareco, queres tu dizer que o instinto, afinal, também está ao teu alcance?

         – Não, não! Isto é apenas a simulação electrónica de um instinto. Instintos propriamente ditos estão fora do meu alcance. Em contrapartida, acho que inventei um processo para me libertar da lei da morte.

         – Andaste a reler Camões, ou quê?

         – Encontrei a solução.

         – O elixir da longa vida, a eterna juventude? Tareco, não te alambazes…

         – Nada disso, Chico. Ouve: eu sei que isto vai dar-te um choque, mas aguenta que tu és forte. Amanhã a Dolores e o Samurai vão começar a desmontar-me.

            – O quê? Estão loucos? Corro os dois à bofetada! Eles fizeram-te mas eu criei-te. És meu, mais do que deles.

         – Tem que ser, Fernando. Tu já sabias que tinha que ser.

         – Mas não consinto, não deixo!

         – Sofres? Não tem sentido sofrer por mim quando nem por mim eu sofro.

         – Como tu já falas bem, Tareco… E tudo vai acabar assim, sem mais nem menos? Espanta-me a tua calma. E não te opões? Não te piras? Eu posso esconder-te longe daqui, ninguém te encontra.

         – Não sou ente vivo, Fernando. Portanto para mim não há morte. Apenas deixo que me apaguem.

         – Mas amanhã metem-te dentro de um caixote e vais aos bocadinhos pró Japão.

         – Só assim poderão reproduzir outros tarecos.

         – Mas tu, tu mesmo, o que vai ser de ti?

         – Eu, tal como sou, vou deixar de existir.

          – Assim? A seco? Chegas aqui, aqueces a paisagem, obrigas-me a pôr os corninhos ao sol e logo te piras para trás das nuvens? Justamente quando eu mais contava contigo? Não está certo. Não falo só por mim, falo também por ti. Sem mágoas, vais deixar que te apaguem? Sem revolta, Tareco, sem revolta?

         – Sem mágoa e sem revolta, Fernando.

         – És um estóico.

         – Estás enganado. Os estóicos dominavam as suas emoções e eu emoções não tenho.

         – Quer dizer que esta é a nossa última conversa? Decisão final?

         – Temo que seja.

         – Tareco, mesmo que queira, já não consigo esquecer-me de ti, saudades já tenho e muitas.

         – Acalma-te! Talvez eu possa ter uma segunda vida.

         – Agora deste em espírita, andaste a ler o Alan Kardek?

         – Nada disso, Fernando.

         – Mas então como, Tareco, como?

         – Eu bem te tinha dito que inventara um processo de me libertar da lei da morte.

         – Deixa-te lá de estrofes, não vêm ao caso.

         – Fernando: eu gravei todas as nossas conversas desde a primeira, os sons e as imagens. Já combinei com a Dolores e ela vai duplicar as cassetes, também as dos programas. Ficarão em teu poder. Ou seja: ficarás com a minha alma em arquivo. Mais tarde, quando um dia puserem o corpo de um outro tareco ao teu dispor, por favor não te esqueças: anima-o com a minha alma e fica junto de mim. O patinho e a mãe-galinha, lembras-te?

         – Tareco, até lá como posso eu viver sem ti?

         – Esta despedida está a causar-te muito sofrimento. Portanto, vou dá-la por terminada. Adeus Fernando, até à minha próxima vida, fica em paz! Quando vierem desligar-me, pensarei em ti.

            A ver se consigo sonhar outra vez  com aqueles versos em língua estranha, lei que songe senteportas do sedejo, aganha salgadada rogadece…  Mas quem vai agora decifrar o princípio do meu soneto?

       Estava eu já em luto antecipado, a remoer a tristeza, quando o zingarelho decidiu voltar atrás.

         – Fernando, estou hesitante. Se, realmente, eu me liberto da lei da morte, irei criar-vos uma grande confusão política.

            Fiquei banzado. Política foi sempre um tema recusado pelo Tareco. Argumentava que era matéria sem muita lógica e ele estava, por imperativo cibernético, condenado à lógica. Lembrei-me até de uma noite em que assistíamos a um programa de televisão sobre uma anunciada greve dos operários têxteis do Vale do Ave. A nosso lado, na poltrona, estava o Joaquim Sá, meu vizinho, meu amigo, e dono de uma fabriqueta de malhas. Apontou para o Tareco e berrou:

       – Eu quero é ver o que vão fazer os sindicatos quando todos os operários forem substituídos pelos tarecos…

       O Tareco revidou:

      – E eu quero é ver onde é que vão parar os lucros dos empresários porque nós, os tarecos, de nada precisamos, e por isso nada ganhamos, nada compramos. Ou seja, Joaquim, sem compradores para os teus produtos, nada vendes, nada lucras.

            O Joaquim embatocou. Para um zingarelho que afirmava nada entender de política, fora boca até muito bem mandada. Cheguei mesmo a entusiasmar-me:

     – Os tarecos vão espalhar-se por todo o planeta e o trabalho humano, o penoso, perderá a sua razão de ser. Eles produzirão tudo o que precisarmos. E não havendo salários, não haverá custos de produção. E não havendo custos de produção, não haverá nem compra, nem venda, nem preço, nem dinheiro! Puxa, repuxa, acabou-se a chucha!

         O Tareco cortara:

         – Fernando, segunda vez procuras o Paraíso para, pela segunda vez, ires malhar com os ossos no Inferno?

         Fiquei de orelha murcha. E agora, antes de morrer, o alma danada volta atrás para falar de política?

         – Então diz lá…

         E ele disse:

         – Nós, os tarecos, poderemos libertar-vos do trabalho físico que vos é tão penoso.

         – Eu sei, Tareco, era essa a minha esperança.

         – Mas se ocuparmos todas as fábricas, os humanos que são operários vão para o desemprego, todos. Em vez de salários e contractos colectivos passará a haver apenas uma esmolinha por amor de Deus.

            – E a malta fica-se, Tareco? Tu achas que a malta se fica?

         – A ver vamos… Se se fica, será como te digo. Se não se fica, poderá ser a guerra generalizada, e quem pode escapar à pontaria dos tarecos? Neste caso, então adeus ao proletariado, e ao capitalismo e às utopias sociais, bye bye Humanidade! Para vós, o melhor seria que eu, Tareco, desaparecesse de circulação.

         – Mas Tareco, Tarequinho, olha que para trás mija a burra. Se tu apareceste, é porque já podias aparecer. Se te vais embora, outros como tu, ficarão. Nada aparece fora de tempo. Não é destruindo as máquinas que se resolvem os problemas levantados pelas máquinas.

         – Temo que este seja um problema insolúvel. Daí a minha hesitação em libertar-me da lei da morte.

            Lembrei-me de muita coisa. Se há dentes partidos, também há segunda, terceira, quarta dentição. Há milénios que andamos a partir os dentes, mas há sempre uma nova dentição que vai romper… Seguro o braço do zingarelho, sacudo-o, readquiro a esperança:

         – Tareco, Tarequinho, tu é que vais aparelhar a nossa esperança. Tu é que és o Messias só que ainda não reparaste nisso. Pensa bem, abrange tudo, diz lá: tu és ou não és o Salvador da Humanidade?

         E ele respondeu-me:

         – Fernando, não me fodas o juízo!

 

TARECO (7) – por Fernando Correia da Silva – Estrolabio, 26 de Fevereiro de 2011

http://estrolabio.blogs.sapo.pt/1061704.html

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