MIGRANTES: PORNOGRAFIA MÓRBIDA E MANIPULAÇÃO. ALGUMAS FOTOS ESCONDEM O ESSENCIAL – por SLOBODAN DESPOT

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Selecção e tradução por Júlio Marques Mota

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Migrantes: pornografia mórbida e manipulação

Algumas fotos  escondem o essencial

Slobodan Despot,  Migrants: pornographie morbide et manipulation- Certaines photos occultent l’essentiel.

Revista Causeur, 7 de Setembro de 2015

Fui convidado para participar na emissão Infrarouge    da  televisão suíça em  8 de Setembro para discutir uma questão candente de ética: a divulgação da foto do pequeno Aylan Kurdi afogado sobre uma praia na Turquia. Eu tive que recusar por imperativos de ordem pessoal mas raramente me lamentei tanto por não poder falar sobre um assunto.  Não o podendo fazer na televisão, vou agora resumir a minha posição por escrito e em duas palavras: indignação e manipulação! Vendo a fotografia desta criança, eu senti como se todos  os ossos do meu queixo começassem a tremer. A posição do corpo, as pequenas roupas, os seus sapatos pequenos com solas arredondadas:  tudo era rechonchudo, bonito, infantil, tudo apelava à carícia e à  protecção. E tudo estava morto! Como o diz um escritor, tem-se necessidade de  entrar pela  fotografia a dentro, voltar este corpo  e trazê-lo de  regresso à vida. Esta fotografia é uma perfeição. Ele mexe com os  nossos instintos mais sagrados. Ela dá uma cara para a tragédia das gentes do Médio Oriente expulsas das  suas casas, da mesma forma que o  sorriso sincero de Anne Frank encarna o Holocausto, da mesma forma que  a cara de dor de  Kim Phuc, a menina queimada com napalm no Vietname resume o desastre do Vietname.

Essa fotografia, diz tudo. Tudo, excepto o essencial. Faz-nos esquecer a natureza da relação entre a tragédia desta família síria destruída  na Turquia e a nossa culpabilidade, a nós, cidadãos europeus, esta culpabilidade que  serve contudo para atiçar.  É-nos atirada à cara para nos fazer baixar as nossas defesas, a nós, não  a os  que são directamente responsáveis pela morte de Aylan Kurdi. Tudo isto é equivalente a pensar que se pode  atribuir  a morte de Anne Frank à  falta de solidariedade dos habitantes de Amesterdão sem mencionar que ela foi expressamente perseguida por um Estado terceiro, a Alemanha, e a ideologia assassina que havia tomado conta desse Estado, o nazismo. O pai de Aylan tinha já visto onze familiares  assassinados pelo Estado islâmico. Se ele embarcou com a sua família neste êxodo, é por causa de nós, cidadãos da Europa, ou será antes por causa de Daech e dos seus patrocinadores? Como é que as mesmas instâncias  nos pedem  para acolher todos esses infelizes quando são elas as  mesmas que, através da sua política do  caos provocam este  êxodo, quando são elas que  não levantaram  um dedo contra a cadeia de contrabandistas no Mediterrâneo e que ainda hoje decisivamente se opõem  a qualquer intervenção armada contra o Estado islâmico? O corpo do  pequeno Kurdi Aylan quase que até parece ter  dado à costa de modo a  encalhar e  poder  ficar em frente  da  lente do fotógrafo para nos fazer engolir todas as perguntas que de enfiada nos martelam a cabeça.

A difusão de imagens de cadáveres é uma afronta à paz dos mortos, que na verdade é a paz dos vivos.  Que  serenidade nos resta  com a ideia  de que a  nossa própria morte  se o nosso corpo já sem alma  deve servir  amanhã  para não se sabe para que  representação e em proveito de quem ? Que meios temos nós de nos opormos? É uma ofensa à própria razão, curto-circuitada  por reacções emocionais primárias deliberadamente espicaçadas. É assim,   quando se reduzem assim os  cérebros a cerebelos o que leva a que a indignação se transforma em manipulação de massas na  sua forma mais básica e mais cínica. Provavelmente não é assim que as redacções dos media concebem a  sua “missão de informação”. Elas concebem seja o que for, sobretudo, nestes momentos decisivos quando o único imperativo que importa é o de  ” fazer mais forte” do que a concorrência? Quem resistiu ao desejo de chocar? Ninguém. As palinódias éticas são relegadas para a semana seguinte. Elas ajudam a vender quase tanto  o escândalo que as provocou. Como prova, a própria emissão  em que eu deveria participar. “Era necessária? Não era  necessária? E porque não?  “Réplicas simples de teatro. Certamente, era necessário !

Certamente que se recomeçará, em situação pior se  possível  ! Não para vender escândalos: “para sensibilizar” as opiniões, naturalmente! Isto é ainda uma mentira. O excesso de sensibilização acelera a dessensibilização. Le Figaro interrogou os seus leitores no  4 de Setembro para saber se esta fotografia “altera a  [sua ] visão da crise dos migrantes”. Das 58 200 respostas, apenas 18 % são positivas. Ainda que não se saiba em que sentido a visão das pessoas foi alterada. Isto não impede a partir do momento preciso em que esta fotografia é publicada, as opiniões dos países de acolhimento são oficialmente sujeitas a um acondicionamento sistemático e deliberado.  O objectivo não é o de convencer — estão-se nas tintas  —, mas sim o de os intimidar  e de os  fazer calar. Com a  excepção parcial dos Suíços, os cidadãos europeus não têm nenhum meio para se pronunciarem  democraticamente sobre esta presença que lhes é imposta em nome da emoção e da ética humanitária. A fotografia do menino  afogado proíbe-lhes mesmo que se exprimam em  privado nas suas preocupações. Pela  minha parte, teria respondido Sim à pergunta do Figaro. Sim, a divulgação massiva  desta fotografia obscena alterou a minha visão da crise (não dos migrantes eles mesmos). Não se trata duma fatalidade “natural” à qual temos  de responder, o equivalente a um  tsunami ou um tremor de terra. É uma alavanca política instalada na Europa e que as nossas autoridades — o sistema politico-mediático — explora contra a sua própria população. Mas não para vantagem dos novos recém-chegados, não. Estes desencantar-se-ão bem rapidamente quando se aperceberem para que terão  servido.

Quanto a nós, toda a  nossa vida pública vai a partir de agora, e por  muito tempo, articular-se em  torno da nossa atitude, benevolente ou hostil, face a eles.  Seremos julgados a  cada passo, por cada palavra, mais do que nunca o  fomos. Porque é que estes mesmos meios de comunicação social nunca difundiram  as fotografias de djihadistas manifestamente não europeus a exibirem  cabeças cortadas dos sérvios na Bósnia Herzegovina nos anos 1992-1995 ? Porque não mostram como notícia de caixa os cristãos horrivelmente  crucificados quase que diariamente  na Síria ou no Iraque pelo  Daech  ? Porque ocultam as centena de horas de vídeo, as milhares de fotografias sangrentas que documentam o bombardeamento deliberado das populações civis de Ucrânia oriental pelo exército do governo putschista de  Kiev  ? Como editor e colunista, recebi a partir de 1992 as fotografias das cabeças cortadas na Bósnia Herzegovina,  recebo constantemente, via email e por Twitter, as fotografias das carnificinas de  Donbass.   Nunca os vi redifundir nada disto . O mais insustentável disto era o  vídeo desta jovem e da sua mãe , mulher de família  muito bonita,  Inna Kukurudza, filmada nos seus últimos momentos de vida, o corpo partido  em dois por uma bomba ucraniana em pleno  centro de Lugansk no dia  5 de Junho de 2014. Se as televisões ocidentais tivessem passado estes trinta segundos sem outro comentário que  fosse a data, o lugar e as circunstâncias, o regime de Kiev teria desmoronado sem dúvida. Bem, protegeram-se, seremos levados a pensar. A alavanca da bronca emocional é uma arma de blitzkrieg de um só golpe. Nunca é impulsionada  gratuitamente. Passada  a primeira vaga de sentimento, não há  nenhuma dúvida de que as populações europeias reencontrarão os seus reflexos de desconfiança e de medo. O infeliz rapazinho morto sobre a sua praia será esquecido num ano, mas não a promiscuidade, o esforço imposto às economias trémulas, o desenvolvimento do trabalho ilegal,  o crescimento real ou fantasiado da insegurança e da expansão inevitável do djihadismo.

Não haveria uma maneira mais civilizada de nos  preparar para a coabitação  que os espera  ? A reportagem premiada , seguidamente adaptada ao cinema, de Maria Pace Ottieri sobre os náufragos de Lampedusa, Une fois que tu es né, tu ne peux pas te cacher, de que eu tive a chance  de publicar a tradução francesa, descreve  esta migração com profundidade e lucidez, apesar da sensibilidade de esquerda afirmada pela cineasta.  Ottieri não  filmou  o mar com os seus guarda-costas  para filmar  os cadáveres — e Deus sabe se ela teria podido  —, mas para interceptar   seres vivos  no momento preciso da sua chegada a  esta prometida terra europeia. Ouviu-os, interrogou-os com tato e simpatia. Acompanhou-os no seu trajecto seguinte. Esquecemo-las, à custa de ver tanta televisão, mas estas pessoas não são uma massa esfomeada e estúpida. São seres  humanos, da mesma maneira que nós, e às vezes um pouco mais . Uma tristeza imensa liberta-se do seu livro. A tristeza por  tantas  vidas perdidas ou desviadas por uma odisseia tecida de ilusões. Por  uma vez, não é o nosso medo que nos é dado sentir em frente deles, mas a sua   desorientação em frente a nós, o seu rancor face às   imagens idílicas que lhes eram servidas sobre a nossa realidade, a sua angústia, frequentemente, no meio de um mundo cujos códigos lhes são desconhecidos  — e paradoxalmente mais frios e mais duros, por mais de uma razão, que aqueles de onde vieram. Para a cobertura da edição Xenia, escolhemos um corpo naufragado, já, mas coberto por um pano. E, sobretudo, um corpo desenhado, não um corpo fotografado. Esta escolha tinha sido objecto de vários dias de discussão. A mediação artística, tal como a história, retira às cenas horríveis esta crueza da fotografia que incita às pulsões voyeuristas. A carne fotografada é exposta na sua pseudo – materialidade objectiva. Esquece-se que são apenas manchas de tinta sobre o papel ou pixéis sobre um ecrã, e esquece-se a presença determinante do fotógrafo cujo “clique” constitui o momento da colocação em cena. E, sobretudo poupa-se  o tremendo fedor, o  tocar  imundo da carne endurecida ou já decomposta. Ou mesmo, se for caso disso, os gritos de dor insuportável dos familiares presentes. O espectador de uma fotografia de cadáver é   exactamente como o espectador  de um espectáculo pornográfico protegido pela sua vidraça.  Os testemunhos e os inquéritos de fundo sobre o fenómeno migratório não têm realmente cotação. Ottieri foi distinguida  no seu país porque não se podia fazer de outra maneira , mas isso não  alterou nada. Os migrantes continuam a ser  estatísticas desagradáveis. A tradução francesa do seu livro, publicado  em 2007, não teve direito a nenhuma recensão em nenhum dos  meios de comunicação social significativos  do mundo de língua francesa. Os Europeus à quem querem  fazer engulir sem  protestar  um dos movimentos de população dos  mais colossais da história não são cidadãos que querem  convencer, mas sim  cães  de  Pavlov sobre  os quais se trabalha porque os querem domesticar.

Slobodan Despot, Revista Causeur, Migrants: pornographie morbide et manipulation- Certaines photos occultent l’essentiel. Publicação autorizada pela redacção da revista.

Texto disponível em : http://www.causeur.fr/migrants-aylan-kurdi-syrie-ukraine-34461.html

 

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