A IDEIA – CARTA INÉDITA DE HERBERTO HÉLDER A CARLOS LOURES -textos e escolhas de António Cândido Franco

Nota prévia de Carlos Loures

Falar sobre Herberto Hélder agora que, usando chavões em voga, ele se transformou, mais ainda do que foi em vida, num ícone da poesia portuguesa, numa figura incontornável da nossa Literatura, torna-se complicado para quem não queira analisar a excelência da sua obra ou trazer à luz dados relevantes da sua biografia.
Entre a minha chegada ao grupo do Gelo, na Primavera de 1958 e, em 1960, o ingresso de Herberto no Serviço de Bibliotecas da Gulbenkian, passámos muitas horas conversando. Pode dizer-se que nessas conversas, Herberto me ensinou generosamente muito. Generosamente, porque nunca se colocou na posição de quem ensina, mas sim na de quem lembra conhecimentos do domínio comum.
Lembro sínteses de saber que a uma mesa do Gelo me transmitiu num discurso sereno e bem encadeado. Com o leve acento madeirense à mistura com citações de Hölderlin, vinham recordações, como a de um mítico guarda-redes, do União (?), que, no dizer dos adeptos, fazia defesas em que ficava «despenso no ar»… Sempre tive uma relação cordial com Herberto, não recordo qualquer excepção a essa cordialidade. Foi o que lhe disse em carta recente – o quanto lamentava que não tivéssemos mantido um contacto mais assíduo.
Neste comentário introdutório a uma carta que Herberto Helder me enviou de Santarém em 13 de Julho de 1961 a dificuldade consiste em recordar onde pretendia ele que publicasse a sua tradução da Carta aos surrealistas de toda a parte [An open letter to surrealists of everywhere (1938)] de Henry Miller. A minha memória funciona razoavelmente. No entanto, 54 anos é muito tempo, muitas camadas sedimentares se acumulam sobre os factos e não querendo cometer a fraude tão comum de pôr os mortos a confirmar versões duvidosas e a salientar falsos protagonismos, vou tentar num esforço de arqueologia epistolar chegar tão próximo quanto possível de uma conclusão plausível. Vejamos onde estava no Verão de 1961 e o que fazia.
Estava desde 1960 a trabalhar na RTP. Em Abril tinha casado e vivia perto de Carcavelos. Raramente ia ao Gelo. Nos fins de tarde passava pelo Restauração, na Rua 1º de Dezembro, onde me encontrava com Alfredo Margarido, Edmundo de Bettencourt, Manuel de Castro, Renato Ribeiro e outros. Publicava artigos, recensões, poemas, numa revista de Palma de Maiorca, a Ponent, editada na variante balear do catalão e dirigida por Llorenç Vidal, um professor e poeta, militante do pacifismo (em 2013 foi candidato ao Prémio Nobel da Paz). O escritor catalão Fèlix Cucurull estava em Lisboa com uma bolsa da Gulbenkian e ia levando colaborações portuguesas para a publicação – Urbano Tavares Rodrigues, Natércia Freire, Manuel de Seabra, são nomes portugueses que naqueles anos 60 a 64 aparecem nos sumários da revista. E, a partir de finais de 1960, passei a ser talvez o colaborador português mais assíduo. Manuel de Castro foi quem mais me ajudou.
O terceiro número da Pirâmide saíra em Dezembro de 1960 e havia projectos diversos. Pensávamos numa nova revista – a Capricórnio. Numa tarde, à mesa do Restauração, Cândido Costa Pinto que, por vezes, aparecia, esboçou uma ideia do que deveria ser graficamente a revista. Quisemos registar o título e não foi aceite. No meu arquivo já quase tinha desistido de encontrar referências ao «projecto Capricórnio», quando há dias deparei com uma carta de Llorenç Vidal datada de Novembro de 1960, onde comenta «Realmente es una lástima que Capricórnio no pueda publicarse por falta de autorización…» Ou seja, o projecto de uma revista alternativa é anterior à data de publicação do número 3 da Pirâmide. No entanto, pode dizer-se que a «rebelião» começara na própria Pirâmide com a organização do número 2 e consumara-se com o número 3. Rebelião contra quê? Contra quem? Com a perspectiva que a distância temporal confere, diria que, de forma clara, contra a hegemonia cesarinista e, de modo mais difuso, contra a ortodoxia surrealista.
E Herberto Hélder parece ser um dos mais conscientes da necessidade de recusar obediência a regras. A autonomia da sua escrita relativamente aos cânones surrealistas era evidente. O que não acontecia com todos; quando publiquei Arcano Solar, Luiz Pacheco, num postal enviado da Sertã para Vila Real onde eu estava a viver, agradecia a oferta, mas comentava: «Dizer que gostei, seria mentir; pareceu-me que lá pró fim, a linguagem atinge um tom pessoal, mais depurado, pois os poemas iniciais cheiram muito a Cesariny (boa influência, mas para deitar fora)».
Numa carta que Manuel de Castro me enviou em Junho de 1961, há também sinais de recusa de uma disciplina surrealista ou, pelo menos, da aceitação da tal «boa influência, mas para deitar fora». Nesta carta, o Manuel alude a um texto meu publicado no número XVIII da revista baleo-catalã. Já lá iremos.
O papel de Herberto na tal afirmação de independência ficou bem definido pela publicação no Jornal de Letras e Artes, de 2 de Maio de 1962, de um texto que assinou de parceria com Máximo Lisboa. Texto de uma inequívoca rejeição de colagens ao movimento surrealista, e simultaneamente de aceitação de princípios gerais que o surrealismo também partilha, como bem diz Maria Estela Guedes em artigo aqui publicado.
Voltando à Ponent, em carta de 23 de Fevereiro de 1961, enviada de Santarém e dirigida a Rui Mendes, um poeta de Coimbra, amigo de José Afonso, Herberto Hélder escreve: «Disseram-me que o Poney (mas pode dar-se o caso de ser A Briosa ou mesmo A Via Latina, visto a pessoa que me informou não estar segura do nome) publicou, num dos seus últimos números, possivelmente no último, um artigo da autoria de Carlos Loures sobre a poesia portuguesa contemporânea. Afirmaram-me que o artigo era notável, pelo que fiquei muito interessado em lê-lo e possuir.»
É óbvio que se gerou uma confusão Ponent transformou-se em Poney e o artigo a que o Herberto se referia era a um texto publicado em Janeiro de 1961 – Breu nota sobre la moderna poesia portuguesa. Neste artigo do número XVIII de Ponent, eu dizia que entre os poetas mais importantes e representativos da jovem poesia portuguesa se contavam os nomes de António Ramos Rosa, Egito Gonçalves, Natália Correia, Papiniano Carlos, Herberto Hélder, Manuel de Castro e António José Forte. Numa nota que conservo refiro que no dia 1 de Abril de 1961 me encontrei pela manhã no Gelo com o Herberto, com o João Vieira e com o Gonçalo Duarte. Nessa manhã terei levado ao Herberto o exemplar da Ponent. Na carta de 13 de Julho o Herberto já não se refere ao artigo, sinal de que já o lera.
O destino mais provável para a tradução do texto de Henry Miller seria a revista que prolongaria a Pirâmide. Mantendo o título ou criando uma nova designação, a ideia seria a de, forma menos ortodoxa como a matriz cesarínica impunha ou como negativo dessa matriz, como o Pacheco desejava e, de certo modo, conseguiu impor no número 2, procurava-se uma linha politica mais assumidamente de esquerda, mais interventiva. Herberto não era dos que lançavam anátemas sinistros sobre os neo-realistas, admirava Carlos de Oliveira e outros escritores da corrente literária cuja nascente se situava não no maravilhoso, no insólito, mas nos aspectos mais imediatos do chamado real quotidiano. Herberto, tal como outros escritores de recursos literários mais modestos, sabia que o realismo não constitui o avesso do maravilhoso. Foi um escritor demasiado talentoso para se subordinar a escolas. Após Abril de 74, terá passado meteoricamente pelo PCP. Herberto Hélder ajustava-se mal a regras que sufocassem a criatividade. O tudo é e não é alternadamente, que António Maria Lisboa proclamou e que adoptou, não é compatível com estruturas que vivem da firmeza dos princípios e de verdades absolutas. Mas não se poderá dizer nem que foi um poeta surrealista, nem que o surrealismo lhe foi indiferente.
A revista que não fizemos, a Pirâmide 4 ou a Capricórnio seria diferente de qualquer dos três números iniciais. Por aquilo que cada um de nós fez, facilmente nos apercebemos de que alguns dos colaboradores do primeiro caderno não teriam lugar nem quereriam colaborar – O alvo deixou de ser o que era – a flecha não podia ser a mesma.
Em 25 de Fevereiro deste ano (2015) escrevi-lhe uma carta. Terá sido das últimas que recebeu. Embora o dispensasse de me responder, a sua resposta ter-me-ia dado uma alegria tão intensa como a tristeza que a notícia da sua morte me provocou.
Meu Caro Herberto,/ Como um fantasma vindo do passado, aqui estou eu a dar sinal de vida para te transmitir umas breves palavras. A leitura da revista do António Cândido Franco, contendo evocações preciosas e também algumas versões menos rigorosas do que foi o Gelo, com mitificações que por vezes transformam aquele espaço onde matávamos o tédio numa espécie de academia de Platão, recordou-me alguns episódios e conversas. E deu-me também vontade de te cumprimentar, de te dizer que te considero o maior poeta de língua portuguesa e que há muito que sei que assim é. O meu elogio vale o que vale, mas gostava que soubesses que penso assim. […] Envio-te um livrito que publiquei o ano passado. O terceiro verso do poema 7 (página 21), alude à tua poesia como carga preciosa do porão de uma nave, à mistura com versos de Dante, de Petrarca e de Camões… Uma homenagem singela que já te teria feito chegar se tivesse sabido antes o teu endereço postal. / Guardo de ti uma boa recordação, lembro muitas das nossas conversas e lamento que não tivéssemos tido um contacto mais assíduo. / Não te sintas obrigado a responder. / Um abraço do/ Carlos Loures.

A CARTA DE HERBERTO HÉLDER 

Santarém, 13. VII.1961

Caro Loures

Acabo de reler a minha tradução da Carta aos surrealistas de toda a parte. Já não me lembrava muito bem: é um texto espantoso, de uma saudável violência e, possivelmente, de uma oportunidade em toda a parte e tempo. Claro que não é coisa que interesse só a surrealistas, e o surrealismo é apanhado por Henry Miller somente pelo equívoco que criou entre algumas das suas propostas e a objectivação do estilo revolucionário da sua acção que, como se sabe, nem sempre (a bem dizer, só excepcionalmente) foi exemplar, profunda e, finalmente, útil em termos gerais históricos. Esta carta é o credo na resolução sistemática e a acusação das várias fraudes, das pequenas resoluções ao nível das sessões de escândalo para o burguês, sessões a que ele próprio, o burguês, chama um figo. Isto tudo é escrito com aquela vitalidade própria de Miller, tirando partido do grosseiro, lançando-se admiravelmente na profecia insensata, etc. Sabes o género. É um texto muito bom. Inconveniente: a carta é de 16 páginas manuscritas. Isto é: umas 8 páginas tipográficas, talvez um pouco menos, se o corpo for o mínimo legível. Convém? Responde depressa. Se não convier, não terei o trabalho de passá-lo à máquina, tarefa que me chateia completamente.

Um abraço

Herberto

P.S. Obrigado pela Pirâmide 2.

ANEXO DOIS DOCUMENTOS

(1.) Carta (Junho de 1961) de Manuel de Castro a Carlos Loures (v. A Ideia, 73/74, 2014, p. 13): Quanto ao espaço do Ponent: penso que deves escrever tu: quanto a mim depois se verá. Aliás, sem des-ou-modéstias (merda): um texto como o já publicado no XVIII (insisto para que obrigues o tal Vidal a mandar-mo), é mais importante que qualquer poema minha. Dixit. Ou melhor: se queres razões, dou estas por boas: um poema não é poesia – tem-na(quando a tem); um texto pode dispor à poesia, abri-la – como se faz às melancias para sugar. Ensinem-se as bestas aos canivetes  e depois se lhes dê melancia. Ou não se ensinem – bata-se-lhes. Olha, não sei. Mágica e dogmaticamente afirmo: escreve tu. Conta como aqui se morre. Principalmente. Como morrem aqueles que sabem que tal coisa lhes vai acontecendo. / Forte escreveu aprovando a sua colaboração e pedindo (com o que eu concordo) que se ponha violência e raiva mas que se não façam mais avisos aos distraídos. Concordo com esta última sugestão por razões com as quais penso que estarás de acordo e penso não serem bem as do Forte: entre elas creio ser de acabar com a publicidade gratuita que a Pirâmide tem feito aos revolucionários que nada revolucionam (Artaud), excepto improvavelmente a quantidade de açúcar a pôr na beberagem literária do Café Gelo.

2.)Texto colectivo de Herberto Helder e Máximo Lisboa (Jornal de Letras e Artes, de 2 de Maio de 1962): [Os abaixo assinados] Recusam a denominação de “surrealistas” que alguma crítica, por desatenção e desocupação, lhes atribuiu ou atribuirá. Aceitam do surrealismo a proposta de uma liberdade tão grande que nela caiba mesmo uma atitude “anti-surrealista”. […] Aceitam do surrealismo todos os primados que se encontram com a dignidade humana e a Alegria de Viver, garantia (consideram) de uma posição ética fundamental diante da mesma vida. Aceitam do surrealismo – para amor e admiração secreta e pública – os actos, obras e morte de alguns exemplificadores que foram surrealistas, quando isso os identificou com a sua pessoal vocação de homens livres. Recusam, finalmente, o surrealismo onde ele não pode ser isso. Recusam-no como escola, como prisão, como antologia, como Chiado.

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