BISCATES – A CRUZADA DO BRASIL – por Carlos de Matos Gomes

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Receita para iniciar uma cruzada. Em primeiro lugar há que encontrar um pretexto que justifique a invocação de guerra justa, o que alivia a consciência dos seus beneficiários – é assim desde Santo Agostinho (sec IV). No caso do Brasil o pretexto é “a corrupção” do poder, nas cruzadas foi a ocupação dos lugares santos pelos infiéis. Em segundo há que pregar a necessidade da cruzada e denunciar os crimes dos infiéis. Foi o que fez o Papa Urbano II. No caso do Brasil esse papel cabe aos magistrados, constituídos em Sinédrio, uma bíblica assembleia secreta de juízes judeus para defender os poderes tradicionais dos seus sacerdotes. Depois há que mobilizar e organizar a carne para canhão, os cruzados, dotá-los de símbolos e de promessas. Assim surgiram as túnicas brancas com a cruz vermelha, as bulas papais a prometerem o paraíso. No Brasil as “camisetas” amarelas e o paraíso de uma ditadura militar.

O problema desta cruzada dos bons brasileiros contra os infiéis é que sobram apoiantes a rezarem e a fazerem procissões a exorcizarem os infiéis, mas falta de mão de combate, falta a carne para canhão. Faltam os templários. Os militares brasileiros estão escaldados com a cruzada de 1964. Numa sociedade onde a corrupção é endémica e a informação cada vez mais disseminada, os militares sabem que os males da cristandade brasileira não se devem aos infiéis terem ocupado os lugares santos, mas de terem ocupado os lugares de onde os príncipes da igreja retiravam os dízimos a que se achavam ter direito por decreto divino, por pertencerem ao povo eleito.

Em termos muito simples, o que se passa hoje no Brasil é o mesmo que se passa em toda a América latina. As sociedades sul-americanas vivem um tempo histórico de chegada de novas classes e novos grupos sociais às margens do poder e de confronto destas com as classes e grupos instalados desde as independências coloniais.

As independências das colónias espanholas e do Brasil foram conduzidas pelas aristocracias metropolitanas para ali destacadas, que reproduziram os modelos de exercício do poder europeus. Quando entenderam já serem suficientemente fortes para se apropriarem da riqueza que ia para a Espanha ou Portugal declararam-se independentes. O bolivarismo e o grito do Ipiranga foram tomadas de poder por funcionários coloniais, que formaram os seus exércitos, os seus partidos políticos, as suas igrejas e as suas máquinas de propaganda. Com estas ferramentas esmagaram as populações locais – índias – e exploraram o trabalho escravo negro, importado. Constituíram sociedades rigidamente hierarquizadas, com um poder endogâmico.

A guerra fria permitiu manter esse modelo de três ordens da sociedade feudal. Todos os recalcitrantes e pretendentes a aceder à mesa do poder, os do “terceiro estado”, pés descalços e servos da gleba, camponeses e artesãos eram rotulados de comunistas e o assunto resolvia-se com uma ditadura que os eliminava ou mantinha na ordem. A situação internacional alterou-se. Os militares já não invocam a segurança nacional e os comunistas de ontem são os “pardos” de hoje, os descendentes dos escravos que exigem o direito de se sentarem à mesa do banquete de riquezas nacionais, até agora monopólio da elite colonial.

O Brasil, como outros países latino-americanos, está a fazer a sua descolonização democratizando o direito a aceder às rendas e comissões apenas pelo facto de ocupar um determinado lugar no aparelho de Estado e que tem várias designações, gasosa, lambidela, matabicho, propina, mensalão, comissão…. A guerra que ocorre no Brasil é, também, a do direito à corrupção das classes baixas.

A guerra do Brasil Amarelo (na realidade branco) contra o Brasil Vermelho (na realidade negro e mestiço) é uma velha disputa entre os do champanhe e os da cachaça, os do fillet mignon e os do feijão preto.

Outra novidade deste golpe relativamente aos anteriores, consiste na clara e despudorada (ou desesperada) mancebia do poder judicial com a comunicação social para atirar porcaria à ventoinha. Destina-se a fazer os militares intervirem, dando-lhes como pretexto o risco de colapso do Estado. Foi para obterem a intervenção dos militares que os golpistas corromperam até ao âmago o aparelho judicial. A utilização dos magistrados como agente provocador é a técnica do golpe de estado do século XXI.

A situação atual do Brasil seria como a da Ucrânia, se o Brasil estivesse no lugar estratégico da Ucrânia. Nesse caso seria resolvida rapidamente. Assim irá fermentar até apodrecer. Entretanto os caciques locais reforçarão poderes. Grupos de jagunços contratados por partidos e patrões – da comuna municipal ao Estado federado – imporão as suas leis.

A corrupção de Lula ou de Dilma é uma história da carochinha para quem gosta de ouvir histórias da carochinha… Se os atuais golpistas regressarem ao poder, deixará de se falar de corrupção. O «lava jato» passa a «esquece». Os velhos corruptos, deputados e grandes empresários presos ou acusados voltarão a ter o cadastro limpo e regressará o princípio do business as usual, antes do interregno de Lula e de Dilma. Os atuais ferozes juízes retomarão as suas funções de prender pilha-galinhas, bicheiros e vendedores de cocos na praia.  A corrupção voltará a ser um segredo bem guardado.

No Brasil de hoje cada um luta com as armas de que pode dispor, uns para manterem o poder dentro do velho sistema colonial, outros para ganharem o seu lugar numa nova sociedade…

Alea jacta est

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