AO REDOR DO LAROUCO (9) – A ALDEIA DESAVINHADA, por Rui Rosado Vieira

 Serra do Larouco - II

Parrazelas era aldeia desprovida de qualquer espécie de frutos. Uvas, maçãs, peras, ameixas, pêssegos, nozes, castanhas, abundantes em muitos povoados da região barrosã, não medravam ali, no solo hostil do seu termo, para tristeza do reduzido número dos seus habitantes.

Todo o trabalho destinado ao cultivo de árvores frutíferas estava, naquele chão árido, destinado ao fracasso. Como tal, só aqueles que tinham algumas posses para os adquirir em outros lugares, experimentavam o luxo de saborear tão apetitosos frutos.

Porém o que mais provocava a inveja dos moradores da aldeia era o cultivo de vinhas no território dos outros povoados existentes à volta da Serra do Larouco.

Já todas as diferentes castas de videiras tinham sido plantadas, estrumadas e regadas naquele território frio e seco, e todas acabavam por definhar. Algumas houve em que chegaram a rebentar ramos, folhas e até flores, mas de uvas nem sinal.

Bruxos e bruxas proferiram os seus esconjuros. E até missas tinham sido mandadas rezar para que aquela espécie de maldição fosse expulsa do solo do lugar. Tudo em vão. Demónios e deuses não se condoíam com tais preces. Segundo especialistas na matéria, as plantas eram atacadas por aquilo que os técnicos chamavam de desavinha. Acidente que impedia a fecundação das flores da videira e a consequente frutificação

A cultura de vinhas e a produção vinícola estavam, por isso, definitivamente varridas do termo da aldeia.

Por tal motivo, o consumo de vinho pelas gentes de Parrazelas – a bebida mais consumida pela generalidade de homens e mulheres das aldeias do Barroso – só tinha lugar quando comprado na sede do concelho, ou em algum povoado mais afortunado das redondezas.

O tempo correu e os habitantes do lugar passaram a ter maior poder de compra.

A par disso, certo dia, alguém trouxe a notícia de que um agricultor de uma povoação próxima começara a produzir vinho, ainda que de pouca qualidade, mas a preço ao alcance das bolsas da maioria das famílias da aldeia.

Tio Julião, emigrante em França durante mais de duas décadas, regressado recentemente à terra natal, tornara-se lavrador e vinhateiro, com adega e seus anexos instalados junto à sua casa de habitação.

O recém agricultor tinha hábitos alimentares singulares. Enquanto emigrante além Pireneus, comia ao longo da semana de trabalho, invariavelmente, ao pequeno-almoço, doce de letria. Ao almoço e ao jantar, costeletas de porco, que diariamente cozinhava em casa, de manhã cedo, antes de se deslocar para o emprego.

Após o seu regresso ao Barroso, alterara a dieta praticada durante mais de vinte anos na estranja. Agora, a par dos denominados “bijous”, das batatas e da carne de porco, cozidas, a sua iguaria preferida, eram as uvas da vinha que ele próprio trabalhava.

Contudo, entre as curiosidades alimentares de Tio Julião, destacava-se o total repúdio pela ingestão de vinho, líquido que, por razões que só ele conhecia, nunca na sua vida ingerira.

Nem a necessidade de avaliar a qualidade do produto que fabricava na sua adega, o levava a quebrar a rejeição por tal bebida. Para superar tal dificuldade dava-o a provar a familiares e amigos, para assim poder tomar conhecimento das características da pinga que posteriormente iria comercializar.

O mês de Outubro chegava e com ele a importante nova de que Tio Julião, fabricante de vinho em povoação próxima iria, em breve, vender o vinho por si produzido, a preço considerado em conta. Notícia que levou os habitantes de Parrazelas a procurar quanto antes chegar à fala com o vinhateiro, com o objetivo de adquirir o cobiçado líquido.

Logo do decurso da primeira semana de Novembro, prevendo que o vinho já se encontraria em fase de poder ser vendido, as gentes de Parrazelas não davam descanso ao telefone que Tio Julião instalara em sua casa, inquirindo, ansiosas, por conhecer o momento em que o conteúdo das pipas se encontraria à venda.

Cabe aqui dizer que o procurado vinhateiro não era desconhecido dos moradores da desavinhada aldeia. Muitos dos seus habitantes se recordavam de o ver, ainda adolescente, chegar todas as segundas-feiras, bem cedo, de bornal às costas com o avio de que se alimentaria durante a semana. Para ir até à aldeia onde aprendia o ofício de alfaiate, tinha de se levantar ainda de noite, em casa dos pais, percorrer caminhos difíceis, subindo e descendo as acidentadas encostas do Larouco.

Os anos passaram. Agora era tempo de na sede de concelho ter lugar a Feira dos Santos, a mais importante do ano e de, em quase todas as aldeias da região, o sino da igreja chamar o povo para a festa do dia de Todos- os-Santos e da missa de “fiéis defuntos”, habitualmente seguida de procissão desde a igreja até ao cemitério.

Acontecia porém, ainda que raramente, que por falta de sacerdotes para acudir a todos os lugares no mesmo dia, aquelas cerimónias religiosas se realizavam em data não coincidente com o indicado no calendário litúrgico.

Num desses dias, logo às primeiras horas da manhã, lá do alto da torre da igreja, o sino da aldeia fez-se ouvir. O seu som repenicado, logo se propagou pelas pequenas e íngremes ruas, de casas graníticas cobertas de colmo, dispostas desordenadamente por uma das vertentes da serra.

Tratava-se, certamente, de chamar os habitantes da aldeia para as tradicionais cerimónias religiosas daqueles dias que, em breve, teriam lugar no interior do pequeno templo.

Contudo, alguns moradores notaram, com espanto, que o som das badaladas do campanário era alegre, não se assemelhando, no ritmo nem no tom, ao usado para convocar os crentes para a missa em memória de fiéis defuntos.

Não obstante a estranheza, a população do povoado não podia ignorar o toque do sino da igreja. Por isso, obedecendo ao secular chamamento, todos se encaminharam para o largo fronteiro ao pequeno templo.

Mal a generalidade dos habitantes da aldeia se reunia à volta da velha ermida, e enquanto o alegre som do sino se continuava a ouvir, foguetes rebentavam no ar.

Para alegria de todos, bem no centro da reduzida praceta pejada de gente, alguém retirava, à vez, do interior duma carrinha de caixa aberta, vasilhas com dez litros de vinho, que rapidamente desapareciam, levadas às costas pelos seus compradores.

Tio Julião tinha finalmente chegado e com ele o cobiçado líquido que, naquele dia e em parte do seguinte, tornaria a pequena povoação numa espécie de taberna gigante. Durante horas e horas, cantorias e gaitas de foles ecoaram pela aldeia em festa, sendo certo que, se contavam pelos dedos da mão, os moradores que não se encontravam embriagados.

Todos os anos, em princípios de Novembro, a população do lugar passou a viver momentos de singular contentamento – o da chegada à desavinhada aldeia, do vinho tinto produzido na adega de Tio Julião.

Aquele ato festivo, continha, na sua essência, elementos que lembravam costumes das antigas civilizações gregas e romanas. Contudo, a espessura do tempo, as características geográficas, e as especificidades das gentes do lugar, haviam conduzido ao surgimento de outras práticas de socialização etílica.

Agora, naquele povoado isolado do mundo, não se viam mulheres desnudas dançando e gritando pelas ruas, como acontecera em Atenas ou Roma na antiguidade clássica, mas antes homens embriagados que, assim, procuravam esquecer, por algum tempo, a pobreza de suas vidas.

O alvo das homenagens das gentes de Parrazelas não eram os deuses mitológicos do olimpo ou do panteão romano. Não eram Dionísio nem Baco – exímios fabricantes de vinho e amantes exagerados do seu consumo. O centro das atenções era um homem comum – Tio Julião – que sabia fazer vinho, mas nunca no decurso de sua vida bebera tal líquido.

Leave a Reply