AO REDOR DO LAROUCO (12) – O LARGO DA VENDA, por RUI ROSADO VIEIRA

O LARGO DA VENDA

 

Tia Vicência era mulher castigada por uma longa vida de canseiras no amanho das pequenas parcelas de terra que herdara de seus pais. Delas retirava as batatas, cenouras, couves e outros legumes que constituíam a base da sua alimentação diária.

Era pessoa de hábitos simples e princípios rígidos.

As suas três ou quatro refeições diárias eram invariavelmente constituídas por uma caneca de vinho tinto, pequeno pedaço de carne de porco, duas ou três batatas e pequenas porções de diversas espécies de hortaliça que, em pote de ferro e em lume de lenha no chão, cozia durante horas, pacientemente.

Presava muito a limpeza, as gentes, e a paz do Largo em que residia, de cuja reputação se considerava, e gostava que a considerassem, guardiã.

Não só era a criatura com mais idade, como também a que há mais anos vivia naquela artéria da aldeia. Por isso, arrogava-se o direito de vigiar e criticar tudo o que pudesse alterar a tranquilidade e os costumes existentes há largas décadas naquele seu pequeno mundo.

O lugarejo, pobre e cinzento, erguido na encosta da serra, era habitado maioritariamente por pessoas de idade avançada. Os novos tinham emigrado para outras paragens à procura de melhor vida. Por tal razão, mais de metade das casas da povoação encontravam-se desabitadas.

O Largo da Venda, com os seus doze toscos edifícios de granito, dos quais só cinco se encontravam habitados, era bem o exemplo de desertificação que atingira o povoado.

As casas que bordejavam o terreiro, algumas de dois pisos, tinham, por regra, duas entradas. Uma, a principal, por vezes provida de “escaleira”, estava virada para o Largo; a outra, de entrada do carro de bois e do gado para a “corte”, encontrava-se nas traseiras, em contato direto com os campos vizinhos.

A venda de Tio Norberto – local de aquisição de mercearias e outros artigos de primeira necessidade – e, em especial, as “escaleras” de uma casa contígua, pertença de um casal emigrante em França, constituíam, respetivamente, ponto de passagem e de encontro das mulheres do Largo e das ruas mais próximas.

Era nas escadas daquela casa desabitada que, em dias de sol, sentado nos degraus de granito, o elemento feminino se aquecia e punha a conversa em dia.

Da residência de Tia Vicência, por ter dois pisos e se situar em local mais elevado, avistava-se não só o casario à volta da praceta, como os terrenos agrícolas circunvizinhos.

Cerca de uma dezena de metros mais à frente de sua casa, em espaço descendente, residia, com o respetivo marido, a sua melhor amiga – Joana, de seu nome.

O casal vizinho, ambos bem mais novos que Tia Vicência, também não tinha descendentes. Ali viviam, desde o casamento, há perto de duas dezenas de anos, felizes e sem grandes dificuldades económicas.

Larouco - Rui Vieira - IV

Joana ocupava-se das lidas da casa. Felizardo, assim se chamava o chefe da reduzida família, cultivava a meia dúzia de leiras e lameiros de que era proprietário, donde retirava as hortaliças e tubérculos necessários à alimentação de ambos. Os excedentes, e eram muitos, serviam de alimento ao burro, que o ajudava nas suas deslocações para fora da aldeia, e para sevar dois porcos que, na altura própria, abateria e transformaria em enchidos e em carne para cozinhar, de que se alimentariam ao longo do ano. Além disso, também era dono um pequeno rebanho de ovelhas que, diariamente, pastoreava nas pastagens verdes do sopé da serra.

Tia Vicência não tivera filhos, e vivia só, em sua casa, desde a morte do marido há cerca de vinte anos, onde, depois dele, mais nenhum homem entrara.

Uma das virtudes que mais apreciava era a fidelidade aos maridos, enquanto vivos, e o respeito pela sua memória, depois de partirem deste mundo. Opinião que, sempre que o assunto vinha à conversa, era fervorosamente perfilhada pelas suas colegas de paleio.

Entretanto, a Primavera assentara arraiais, as plantas reverdeciam e o chilrear alegre da passarada fazia-se ouvir um pouco por todo o lado.

O calor e o número de horas de sol cresciam de intensidade, bem como a animação das conversas das mulheres que se reuniam nas “escaleras” existentes nas cercanias da venda de Tio Norberto.

Larouco - Rui Vieira - V

Tia Vicência era um pouco dura de ouvido e, de vez em quando, sentia necessidade de descansar. Por via disso, nem sempre se juntava ao grupo das conversadeiras. Por vezes, nos dias mais quentes, gostava de estar só, ao fim da tarde, beneficiando dos últimos raios de sol. Para tal, procurava as “escaleras” recatadas, limpas e cómodas, de sua amiga Joana.

As suas relações com os restantes vizinhos do Largo, ainda que menos fortes que as que mantinha com Joana, não deixavam de revelar, igualmente, grande estima e amizade.

Os dias decorriam rotineiros e sem grandes novidades.

O lusco-fusco do romper da manhã era anunciado pelos cantares dos galos da vizinhança. Pouco depois, o tilintar dos guizos das ovelhas e o ladrar nervoso do cão que, obedecendo às vozes de Tio Felizardo, investia com o rebanho, forçando-o a sair da corte em direção ao caminho que conduzia ao campo, avisava que o sol já se levantara no horizonte e que era tempo de iniciar as atividades agrícolas nas leiras e o pastoreio do gado nos lameiros.

A lembrar que a manhã já ia avançada ouvia-se, algum tempo depois, a buzina da carrinha que vinha vender peixe fresco e congelado.

Mais tarde, já próximo da hora de almoço, era ocasião de Tio João da Horta, morador com sua companheira no último edifício do Largo, paredes-meias com o espaço agrícola, conduzir, até junto de sua casa, o trator com o reboque carregado, umas vezes com forragem para os animais, outras de lenha para alimentar a lareira da cozinha.

Terminados os afazeres domésticos e quando a sua participação nos trabalhos agrícolas era dispensada, era o momento do mulherio aproveitar o tempo de lazer, para as habituais reuniões nas “escaleras” próximas da loja de Tio Norberto.

Num daqueles dias, Tia Vicência, ao se acercar do local de cavaqueira, onde duas das habituais participantes já se encontravam, reparou que estas, ao se aperceberem da sua presença, se calaram subitamente, iniciando atabalhoada conversa sobre assunto diferente daquele que as entretinha.

Dois dias depois, a suspeita que lhe queriam esconder algo, avolumou-se. Aconteceu que, para adquirir certas mercearias, Tia Vicência se deslocou à venda do Largo, junto de cujo balcão, o comerciante e uma cliente falavam em voz baixa. Conversa que terminou logo que deram conta da sua entrada na loja.

Feitas as compras, já na rua, intrigada com o ocorrido, decidiu ir bater à porta de sua amiga Joana, por saber que ela não deixaria de desvendar o segredo que lhe escondiam.

Larouco - Rui Vieira - VI

Chegada a sua casa e arrumadas as compras nos locais apropriados, Tia Vicência, dirigiu-se à residência da vizinha preferida, onde, depois de subir a meia dúzia de degraus que a separavam da entrada do edifício, para anunciar a sua chegada deu algumas palmadas fortes na porta.

Como ninguém respondesse, repetiu a operação mais algumas vezes até concluir que ninguém se encontrava dentro da habitação.

Acontecia que a tarde estava amena, a convidar exposição aos raios do sol e ao descanso. Por tais motivos, em vez de regressar à sua residência, Tia Vicência optou por ficar ali, sentada nas “escaleras” da amiga Joana, a preguiçar.

A tempo passara e não obstante ser cedo demais para tal, o som dos chocalhos das ovelhas de Felizardo já se ouvia ao longe, no seu caminhar de retorno ao estábulo, sem que de sua amiga Joana houvesse sinais de vida.

Tia Vicência, já se preparava para abandonar o local onde relaxara e esperara, quando a porta ao cimo das escadas se abriu e alguém, descalço, de botas e camisa na mão, descendo apressado os degraus, passou por ela a toda a velocidade, em direção à rua.

Perplexa, Tia Vicência, não sabia que fazer, nem que pensar. Enquanto tentava compreender o que se passava, pela porta entreaberta, vinda do pátio, nas traseira da casa, ouvia-se a voz forte de Felisberto gritar: “Joana, hoje vim mais cedo porque uma ovelha está quase a parir”.

Sentada em sua casa, já recuperada da surpresa, Tia Vicência, sabia agora dos motivos do secretismo que a rodeara e, como se tivesse Joana à sua frente, exclamou: “sua bergonhosa, sois a bergonha do Largo da Venda!”.


Larouco - Rui Vieira - VII

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