A CRISE AUSTERITÁRIA E A QUADRATURA DO CÍRCULO – REFLEXÕES SOBRE A CRISE DA ECONOMIA, DO PENSAMENTO ECONÓMICO E DA DEMOCRACIA – A INTRODUÇÃO DE JÚLIO MARQUES MOTA – III

Obrigado ao blog do tirloni.
Obrigado ao blog do tirloni.

Uma nova série de textos onde se dá basicamente a palavra a três grandes economistas, apresentando algumas peças já anteriormente publicadas: São eles Satyajit Das, Bill Mitchell e Michael Pettis.

júlio marques mota

(conclusão)

No último texto publicado de Michael Pettis, intitulado Dinheiro que parece criado a partir do nada pode transformar-se em dinheiro gerado pela produção,  podemos ler:

“2.  No segundo caso [criar procura de bens e serviços criando simultaneamente a produção desses bens e serviços], assume-se o outro extremo, no qual a economia tem uma enorme folga – existe uma enorme quantidade de trabalhadores desempregados que têm todas as qualificações que possamos necessitar e que podem começar a trabalhar sem qualquer custo, as fábricas estão a operar bem abaixo da sua capacidade e podem ser mobilizadas com um simples toque no interruptor, e existem suficientes infraestruturas não utilizadas que podem satisfazer qualquer aumento da atividade económica.

Neste caso, quando a criação de empréstimos ou o défice público criam procura “a partir do nada”, também criam o seu próprio abastecimento. Quando Thin Air [1]dispende dinheiro para comprar determinados bens ou serviços, estes bens e serviços são automaticamente criados pondo em funcionamento o equipamento fabril e pondo os trabalhadores desempregados a trabalhar.

Aqui também temos um multiplicador em ação. Assuma-se que a despesa de Thin Air é para investimento, e que projeta adquirir $100 de bens e serviços para fins de investimento. Em virtude de não ser necessário construir capacidade produtiva ou adquirir existências, o total das despesas irão para salários. Além disso, assumamos que os novos trabalhadores contratados poupam 1/4 do seu rendimento.

À medida que Thin Air efetua pagamentos de salários, os trabalhadores gastarão 75% desses salários em consumo, e pouparão 25%. O seu próprio consumo exigirá a produção adicional de bens e serviços, o que exigirá o recrutamento de mais trabalhadores. Para que Thin Air possa adquirir $100 de bens e serviços, pode ser facilmente demonstrado que o total de despesas de Thin Air e do consumo dos trabalhadores serão os originais $100 divididos pela taxa de poupança de 25%, de modo que no final o PIB aumentará em $400, consistindo $300 de consumo adicional e $100 de investimento adicional. Em virtude de o aumento do PIB exceder em $100 o aumento em investimento, o total de poupanças atingirá $100.

Por outras palavras, numa economia com suficiente folga para absorver totalmente o investimento de Thin Air, o investimento cria estímulo suficiente na produção total de bens e serviços para se tornar auto financiável – aumenta as poupanças no mesmo montante em que aumenta o investimento. Repare-se, então, mais uma vez, que em momento algum a igualdade entre poupanças e investimento é violada.

3. Na realidade nenhuma economia terá folga zero, como no primeiro caso, nem plena folga, como no segundo caso. Em vez disso existirá algum tipo de combinação dos dois casos. Nesse caso a procura criada por Thin Air “a partir do nada” será parcialmente satisfeita pela supressão de procura ou investimento algures na economia, e parcialmente pela criação de uma maior quantidade de bens e serviços para satisfazer o aumento de procura.

Uma questão importante, que é frequentemente obscurecida pelo intensa discussão política sobre poupanças, é que no segundo caso, no qual a procura criada por Thin Air cria a sua própria oferta, quanto mais baixa for a taxa de poupança, maior será o aumento do PIB resultante de qualquer despesa adicional efetuada por Thin Air. As poupanças aumentam automaticamente para financiar o investimento provocando a subida do total de bens e serviços produzidos em maior quantidade do que o total adicional de bens e serviços consumidos, com a diferença entre os dois, as poupanças, aumentando precisamente o suficiente para financiar o investimento de Thin Air (e o mesmo pode ser facilmente demonstrado ser verdadeiro se as despesas de Thin Air assumissem a forma de consumo).”

Uma análise que está nas antípodas do que defende a Troika, do que defendem os neoliberais, uma análise solidamente apoiada no que de mais profundo se tem produzido em teoria económica. Se repararmos bem estamos a falar da dinamização da economia através do crédito, do dinheiro nascido do nada e que serve para dinamizar a economia, ou não, tudo depende, para onde é que ele vai quando criado, se para os mercados financeiros aumentando a massa de capitais disponíveis para a especulação ou se, alternativamente, quando criado é injectado na economia real, na procura de bens e serviços sejam de consumo, sejam de investimento, mas sobretudo de investimento. Desde que haja folga na economia, desde que a economia esteja abaixo do seu potencial produtivo máximo, e isso é exactamente o caso europeu, caracterizado por desemprego em massa. Relembremo-lo para assim se entender que este texto de Michael Pettis é, do ponto de vista científico, uma profunda crítica às políticas que desde 2010 têm sido seguidas na Europa e defendidas por governos à esquerda e à direita porque o importante para todos eles é salvar a Europa da austeridade, porque não há outra saída que não seja a austeridade. Desmentido brutal que aqui é dado neste último texto de Michael Pettis.

O texto de Michael Pettis  apresenta ainda uma outra característica que muito me sensibilizou. Neste seu trabalho  e com  pinceladas magistrais, passam pelos  seus textos aqui publicados,  Ricardo e Marx  versus Malthus, passam pelos seus textos os defensores da Moderna Teoria Monetária, onde assumem especial relevo autores como Randall Wray e Bill Mitchell, da mesma forma que possam por este  texto outros autores cujos trabalhos  foram relevantes nos grandes debates económicos dos anos 70, como Kaldor, Domar, Harrod, Kalecky, para além dos sempre presentes Minsky  e Keynes.  Passam pelos seus trabalhos algumas das grandes questões que todos estes autores levantaram e que com a vaga do neoliberalismo deixaram de ser preocupações dos economistas e deixaram de ser relevantes do ensino nas Universidades. Não foi assim por acaso. Refrescantes também, deste ponto de vista, os trabalhos de Michael Pettis.

Atrevo-me mesmo a dizer que cada um dos seus textos representa uma boa pista para tema de doutoramento em economia, assim haja alunos interessados e orientadores disponíveis para os acompanhar. Depois de implantada a reforma de  Bolonha, com Sócrates, com Mariano Gago, isto parece-me difícil quer pelo lado do corpo docente quer pelo lado do corpo discente. Do corpo discente por falta de motivação ou de conhecimentos adquiridos para se perceber a importância e para se motivar pelos respectivos temas. Pelo lado do corpo docente, porque na sua maioria é já ele de formação neoliberal e porque vive trancado nas regras de avaliação na carreira, nos artigos para as revistas que “contam” para a avaliação, praticamente todas elas de matriz neoliberal. Portanto, os docentes  vivem encerrados num circulo vicioso, definido pela formação de base, neoliberal, e pelas  obrigações de carreira, em que têm de escrever artigos de matriz neoliberal para as revistas que contam para os  ratings,  as revistas de pensamento único. Por outras palavras, hoje,  os docentes estão cada vez mais emparedados  entre, por um  lado,  a obrigação de ensinar quem é cada vez menos capaz de aprender, não por culpa própria mas por falta de formação de base à chega à  Universidade e por falta de tempo para a criarem depois de chegarem, pois mal dão por isso, já estão a sair de diploma na mão, e, por outro lado,  os docentes têm a obrigação de investigarem, sendo esta a vertente de mais peso nos seus ratings de docentes. Dupla função, de professores e de investigadores, dupla situação de precariedade na mesma figura de docente e, aí,  a nobre missão de ensinar, de despertar a inteligência onde há apenas potencialidade, perde-se, diluiu-se nos múltiplos artigos da mesma coisa que o docente tem  de  escrever, tem de apresentar, tem de publicar!  Percebe-se pois o nosso pessimismo quando ao aproveitamento possível que estes textos possam ter nos meios universitários.

E pensar que este quadro das Universidades foi criado pelo Partido Socialista …

Estamos certos de que esta série longa é constituída por um conjunto  de textos de leitura nada fácil mas que nos permitirão ler a realidade de hoje a uma outra luz face à obscuridade com que a ciência económica dominante e os seus media de serviço nos têm matraqueado. Desse ponto de vista, diremos que com esta série prestamos culturalmente um bom serviço à Universidade, assim haja gente interessada em retomar estes temas.

Repetindo-me, direi mesmo que alguns textos de Bill Mitchell e sobretudo os textos de Michael Pettis, são de leitura a exigir um nível de formação em matéria económica acima da média. Trata-se de textos que não estarão possivelmente ao alcance sequer dos jovens licenciados e mestres de hoje, os jovens formados por Bolonha, tendo em conta as estruturas de ensino criadas sob a égide da EU para reduzir os custos do ensino superior e para desvalorizar a mão-de-obra dos jovens recém-formados pelas Universidades. E isto num momento em que a UE abandona o seu objectivo de referência: “tornar-se na economia do conhecimento mais competitiva e dinâmica do mundo, capaz de gerar um crescimento económico sustentável com mais e melhores empregos e maior coesão social.” Em vez disso, a Europa tornou-se num continente em pura agonia, um futuro cemitério para desempregados de longa duração e pouco mais que isso. Entretanto, os diplomas das Universidades sofreram a erosão que todos nós conhecemos mesmo que disso pouco ou nada se fale. Estas tornaram-se assim fábricas de diplomas de não-empregabilidade assumida. Lamentavelmente assim. O que importa são as estatísticas de gente licenciada, nada mais. Os licenciados podem ser caixas de um Continente qualquer ou mergulhar em trabalho escravo nas vindimas na Suiça! Importam apenas as estatísticas no que interessa aos poderes dominantes. O resto, o não-emprego ou o emprego não correspondente às habilitações conseguidas, é culpa dos cidadãos ou, maior novidade ainda, é culpa das Universidades e por isso devem descer de rating, de financiamento! Uma invenção de Mariano Gago e seguida depois com que fúria por Nuno Crato. A Universidade como um  deserto de ideias, eis pois a obra destes dois ministros, um deserto onde será cada vez menos possível um ensino capaz de formar técnicos e cidadãos à altura dos desafios cada vez mais complexos com  que a sociedade se debate. Por este caminho, os jovens investigadores de alto nível correm o risco dentro de alguns anos de serem uma espécie em extinção. Naturalmente assim a menos que se considere que a qualidade nasce do nada.  Algumas vozes no deserto apenas a lembrar-nos desta triste realidade e aqui sublinho as muitas e profundas intervenções de Luis Reis Torgal, como a que ainda muito recentemente escreveu no jornal Público.

A terminar esta apresentação não posso deixar de agradecer a todos aqueles que me ajudaram na tradução e ou revisão dos textos aqui apresentados. São eles, Maria Cardigos, Francisco Tavares, João P. Moreira, AMS, MM e sem excluir o editor, João Machado.

Boa leitura, portanto.

Faro, 17 de Agosto de 2016.

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[1] Thin Air tanto pode ser a entidade a favor da qual o banco concedeu um empréstimo a partir do nada como pode ser a agência governamental responsável pelo défice público.

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Para ler a Parte II desta introdução de Júlio Marques Mota à série A Crise Austeritária e a Quadratura do Círculo, clique em:

A CRISE AUSTERITÁRIA E A QUADRATURA DO CÍRCULO – REFLEXÕES SOBRE A CRISE DA ECONOMIA, DO PENSAMENTO ECONÓMICO E DA DEMOCRACIA – NOVA SÉRIE – A INTRODUÇÃO DE JÚLIO MARQUES MOTA – II

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