HOMENAGEM A JOÃO CRAVINHO PELOS SEUS OITENTA ANOS – DE UMA CRISE A OUTRA, DA CRISE DOS ANOS DE 1930 NA ALEMANHA À CRISE DOS ANOS DA TROIKA — A EQUIVALÊNCIA NOS DISCURSOS POLÍTICOS, A EQUIVALÊNCIAS NAS POLÍTICAS ECONÓMICAS APLICADAS – IX

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Selecção, tradução e montagem por Júlio Marques Mota

PARTE VI: Dos tempos de Brüning aos tempos da Troika – II

(conclusão)

Mas será que Bruxelas, Berlim e Washington têm razão? Historicamente, prova-se que não têm nenhuma razão e no plano imediato também não a têm como mostra a situação social, política e económica da quase totalidade dos países da zona euro.

É com uma amargura muito grande que lemos, contra a Troika comandada pela senhora Merkel, o que Lautenbach escreveu em 1931, substituindo-se agora Alemanha pelos países fragilizados da zona euro e os bancos estrangeiros pela Troika:

A expansão das nossas exportações e a limitação/redução das nossas importações terão inevitavelmente repercussões comerciais muito desagradáveis. O facto de que é apenas a pressão aplicada a partir do estrangeiro que nos conduz a esta mudança no comércio exterior não nos protege, naturalmente, de maneira nenhuma, de medidas defensivas (política anti-dumping) dos nossos países parceiros. É tão pouca a racionalidade económica e a coerência que determina o comportamento de grupos estrangeiros, o que é mostrado ainda mais claramente pela atitude dos bancos estrangeiros. Não pode haver a menor dúvida de que a tentativa e os esforços destes bancos para liquidar mais rapidamente possível os seus empréstimos, os créditos concedidos à Alemanha, vista à luz da economia mundial é absurda e prejudicial para os países credores.

Por exemplo, nenhum dos países do sul da Europa a aplicar medidas de austeridade puras e duras, com efeitos de arrasto económicos e sociais negativos que irão perdurar por décadas, viu melhorada a sua posição. Antes pelo contrário, a dívida prosseguiu a sua progressão e as contas públicas continuam a estar desequilibradas. E durante este tempo, a atividade económica reduziu o seu ritmo de evolução, as falências continuam, os desempregados não diminuem ou descem muito lentamente e estes veem cada vez menos a luz ao fundo do túnel, a precariedade atinge níveis imcompreensíveis para países desenvolvidos e a pressão para uma maior austeridade continua. Ainda aqui vale a pena reler Lautenbach quanto à política deflacionista seguida então e agora igualmente:

Sendo assim, resta como a única redução prática de custos possível a redução dos salários e vencimentos. O que significa isto para a política económica?

a) Em relação ao estrangeiro, melhora a nossa posição competitiva. As empresas alemãs irão suplantar as concorrentes estrangeiras, tanto no mercado externo quanto no mercado interno. Este aumento de vendas pode significar também a possibilidade de um certo aumento na produção.

b) No entanto, apenas as indústrias de exportação vão experimentar uma notável melhoria na sua situação. Para as outras indústrias, o alívio experimentado pelo mercado interno, devido ao aumento das exportações, e a eventual redução nas importações de produtos manufaturados são regularmente compensados, digamos neutralizados, pelo facto de que os bens (bens de consumo) que chegam ao mercado, no momento da redução dos salários, de repente, se confrontarem com uma procura nominal reduzida. A adaptação a essa procura reduzida através de uma descida de preços correspondente provoca perdas totais de inventários e leva a uma redução do número de empresas, especialmente porque mesmo com um perfeito ajustamento dos preços aos novos custos não se elimina o desequilíbrio pré-existente entre a oferta e a procura, que alguns empresários procuram contrariar através de crescentes estrangulamentos da produção.

Se adicionarmos que, contra a dinâmica das exportações, encontramos atualmente nos países parceiros a mesma política de austeridade e de dumping, também percebemos que agora nem a dinâmica das exportações no quadro do modelo imposto pela Troika pode levar a resultado algum. Por outras palavras, o que se sabia em 1931, pretende-se agora ignorar.

Também a linha da Troika imposta por Berlim e pela senhora Merkel é apoiada pelos mercados financeiros e encontramos aqui uma nova relação: o apoio dos mercados a Hitler, o apoio dos mercados financeiros à senhora Merkel, até porque foi a política europeia que sucessivamente os tentou salvar da crise mesmo que à custa do futuro das nações e do presente das suas populações[1]. E é de resto a política europeia que os continua a considerar como agentes racionais que se auto-regulam. Não será pois por acaso que não há nenhuma agência de rating do Banco Central Europeu para a dívida pública dos estados-membros da zona euro que ficam dependentes dos humores dos mercados. Exemplo, uma baixa de rating para Portugal pela empresa de notação canadiana seria uma catástrofe sobre a qual nem sequer queremos falar e pode ser admissível apenas por uma simples mudança de expetativas. Não foi isso que a Standard and Poors fez com Espanha? Baixou-lhe o rating porque reduziu em 0,1% as suas expetativas quanto à taxa de crescimento esperada para seis meses?

À força de se imporem políticas de austeridade, os nossos Brünings modernos acabam por ganhar a sua aposta: toda a Europa, incluindo a Alemanha, vive a ameaça de deflação que põe em risco as já baixas taxas de investimento e de crescimento da produção, que continuam a pressionar à baixa os salários nominais, logo o consumo, o que leva a uma redução do ritmo dos investimentos e assim sucessivamente. No fundo, uma situação que se pode complicar de tal forma que ninguém saberá depois como se pode sair dela. Veja-se já o que se passa em Espanha ou o que se pode passar em Itália brevemente ou em França no próximo ano ou ainda o que se pode passar se Bruxelas exigir a estes mesmos países o mesmo rigor austeritário que exige aos outros países fragilizados.

E isto significa que nos encontramos perante Lautenbach contra Brüning, ou ainda que nos encontramos perante a tese de Michael Pettis contra o austeritarismo da União Europeia e dos seus Brünings de agora. Uma saída da crise exige uma política de criação de empregos, uma política de crescimento que a prazo irá provocar o saneamento das contas públicas que não pode ser nunca um fim em si mesmo, mas sim um resultado colateral e não imposto, a ser alcançado através de condições de crescimento que o venham a prazo permitir. O contrário, a política de austeridade que continua a ser praticada na União Europeia e em particular na zona euro, tem vindo a mostrar os seus resultados políticos na ascensão de movimentos ou partidos como Aurora Dourada na Grécia, a extrema-direita na Áustria, o Vlaans Belang na Bélgica, a Frente Nacional em França, o movimento nazi Ustase da Croácia, e por muitos outros movimentos ainda por essa Europa fora.

Relativamente ao texto de Michael Pettis, este enquadra-se perfeitamente na sequência do texto de Lautenbach. Veja-se um excerto:

No segundo caso [folga para criar procura de bens e serviços gerando simultaneamente a produção ou o escoamento desses bens e serviços, dada o excedente da capacidade produtiva existente], assume-se… que a economia tem uma enorme folga — existe uma enorme quantidade de trabalhadores desempregados que têm todas as qualificações que possamos necessitar e que podem começar a trabalhar sem qualquer custo, as fábricas estão a operar bem abaixo da sua capacidade e podem ser mobilizadas com um simples toque no interruptor e existem suficientes infraestruturas não utilizadas que podem satisfazer qualquer aumento da atividade económica.

Neste caso, quando a contração de empréstimos ou o défice público criam procura “a partir do nada” também criam a sua própria oferta. Quando a Thin Air[2] despende dinheiro para comprar determinados bens ou serviços, estes bens e serviços são automaticamente criados pondo em funcionamento o equipamento fabril e pondo os trabalhadores desempregados a trabalhar.

Aqui também temos um multiplicador em ação. Assuma-se que a despesa da Thin Air é para investimento, e que projeta adquirir $100 de bens e serviços para fins de investimento. Em virtude de não ser necessário construir capacidade produtiva ou adquirir existências, o total das despesas irão para salários. Além disso, assumamos que os novos trabalhadores contratados poupam 1/4 do seu rendimento.

À medida que a Thin Air efetua pagamentos de salários, os trabalhadores gastarão 75% desses salários em consumo e pouparão 25%. O seu próprio consumo exigirá a produção adicional de bens e serviços, o que exigirá o recrutamento de mais trabalhadores. Para que Thin Air possa adquirir $100 de bens e serviços, pode ser facilmente demonstrado que o total de despesas de Thin Air e do consumo dos trabalhadores serão os originais $100 divididos pela taxa de poupança de 25%, de modo que no final o PIB aumentará em $400, consistindo $300 em consumo adicional e $100 em investimento adicional. Em virtude de o aumento do PIB exceder em $100 o aumento do consumo, o total de poupanças atingirá $100.

Por outras palavras, numa economia com suficiente folga para absorver totalmente o investimento da Thin Air, o investimento cria estímulo suficiente na produção total de bens e serviços para se tornar auto-financiável — aumenta as poupanças no mesmo montante em que sobe o investimento. Repare-se, então, mais uma vez, que em momento algum a igualdade entre poupanças e investimento é violada.

Na realidade, nenhuma economia terá folga zero, como no primeiro caso, nem plena folga, como no segundo caso. Em vez disso existirá algum tipo de combinação dos dois casos. Nesse caso, a procura criada pela Thin Air “a partir do nada” será parcialmente satisfeita pela supressão de procura ou de investimento algures na economia e parcialmente pela criação de uma maior quantidade de bens e serviços para satisfazer o aumento de procura.

Uma questão importante, que é frequentemente obscurecida pela intensa discussão política sobre poupanças, é que no segundo caso, no qual a procura criada pela Thin Air cria a sua própria oferta, quanto mais baixa for a taxa de poupança, maior será o aumento do PIB resultante de qualquer despesa adicional efetuada pela Thin Air. As poupanças aumentam automaticamente para financiar o investimento, provocando uma subida da produção total de bens e serviços maior que o consumo total de bens e serviços adicional, com a diferença entre os dois, as poupanças, aumentando precisamente o suficiente para financiar o investimento da Thin Air (e o mesmo pode ser facilmente demonstrado como verdadeiro caso as despesas da Thin Air assumissem a forma de consumo).

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[1] Como assinala Jean-François Bouchar: “Para elas, as autoridades europeias, é necessário salvar a todo mo custo os bancos. Assim, fortes e caríssimos planos de resgate foram postos em prática pelas autoridades nacionais, na Irlanda, na Grécia, na Alemanha ou noutros países e a tal ponto que durante o período de 2010-2012 na Europa mais de 10% do PIB do continente foi absorvido por estes resgates. Os balanços dos bancos centrais vivem apenhados de acitvos duvidosos comprados aos financeiros considerados responsáveis pelo desencadear da crise”.

No entanto, outra quadratura do círculo: as autoridades europerias querem salvar os bancos afundando a economia pela austeridade! Exemplo: a banca italiana está quase toda ela praticamente falida, 6 anos depois de rebentar a crise dita da dívida soberana.

[2] Thin Air aqui tanto pode ser a entidade a favor da qual o banco concedeu um empréstimo a partir do nada como pode ser a agência governamental responsável pelo défice público. Relembramos aqui o título do artigo de Michael Pettis: Thin Air’s Money Isn’t Created Out of Thin Air.

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