CARLOS DE MATOS GOMES – BISCATES – Os Mercenários Ideológicos

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O governo do Partido Socialista com apoio dos partidos à sua esquerda tem provocado muitos fenómenos curiosos. Um deles é a revelação do mercenarismo ideológico. Um processo que foi muito utilizado nas guerras coloniais consistia em utilizar antigos guerrilheiros para combater os seus antigos companheiros. Os Flechas da PIDE, em Angola, são o exemplo mais conhecido. Os Flechas da atual guerra subversiva contra o governo de António Costa estão organizados numa unidade ideológica que se chama Observador. Os dois melhores caçadores trânsfugas chamam-se Fátima Bonifácio e José Manuel Fernandes. Melhor aquela do que este.

Até à descoberta de que não havia castas de votantes, nem eleitores impuros, ou intocáveis, que todos os votos valiam o mesmo, que as maiorias para formar governo se constituíam no parlamento existia a ideia mais ou menos generalizada (julgo) que os intelectuais utilizavam as suas ferramentas de análise da situação política e social com um mínimo de deontologia. Que as suas análises assentavam em fundamentos teóricos, as suas ferramentas, oriundas umas do marxismo, outras do funcionalismo, outras ainda do estruturalismo, mas que era possível aos leitores terem com os intelectuais relações de boa-fé.

A luta contra o novo governo destruiu essa confiança (nos casos em que existiu). Os grupos de interesses que cresceram e engordaram pendurados no aparelho de Estado, e que haviam confiado em que a ideologia dominante do absolutismo do mercado funcionava em circuito fechado – sempre os mesmos à volta da mesma mesa – alarmaram-se e declararam a política de terra queimada.

O grupo de maiores recursos incendiários formou o Observador e recorreu ao tal velho método de ir contratar tropas ao antigo inimigo. Seguiu o mesmo princípio dos poderosos dos séculos XVIII e XIX, que contratavam companhias de mercenários suíços para combateram por si e pelos seus estados. Mercenários, de quem Maquiavel, no Príncipe, dizia não serem gente de confiar, mas que tinham a vantagem de saber combater e de utilizar as suas armas.

É o que fazem, para já, os mercenários ideológicos. Os mais elaborados pertencem ao grupo que animou o marxismo ocidental pós Maio 68 e que, em Portugal, nos anos 60 e 70 deu origem aos PCP-ml e ao MRPP. Fátima Bonifácio e José Manuel Fernandes, em dois artigos recentes no Observador, servem para descodificar a linguagem que tem hoje o Luta Popular como exemplo de fóssil vivo.

JMFernandes, 27 de novembro: ”Vai valer tudo. Até arrancar olhos. Vai deixar de haver escrúpulos e muito menos vergonha. Tudo sob a batuta de António Costa.” “Já tínhamos assistido, entre o incrédulo e o revoltado, à forma como Costa começou por assaltar o seu partido e, depois, por tomar São Bento, atirando borda fora, pelo caminho, qualquer princípio ou qualquer fidelidade à matriz identitária do PS.”

Fátima Bonifácio, 30 de novembro: “Já tudo foi dito sobre o desbragado oportunismo de António Costa.” “Morreu o PS. Viva o PS!” ”António Costa, com o seu talento “tacticista” que já quase toda a gente lhe reconhece e enaltece, conseguiu chegar a primeiro-ministro, que era o mínimo indispensável para se aguentar à frente do partido.” “Para se perceber bem o que é o “costismo”, para além da pessoa, dos métodos e das circunstâncias do próprio Costa, basta atentar na atitude dos barões socialistas ricos de há muito ou ricos de há pouco.” “O “costismo” significa o dobre a finados pelo Partido Socialista fundado por Mário Soares e triunfalmente defendido por Mário Soares contra o Partido Comunista. E anuncia o nascimento de um novo partido desembaraçado de identidade ideológica, pronto a envergar qualquer ideologia que lhe sirva de instrumento para se alçar ao poder.” “O poder pelo poder, traduzido no deleite de mandar e simbolizado pelo carro preto com motorista e um cortejo de assessores; e sobretudo o poder como instrumento e oportunidade para “subir na vida” e fazer dinheiro.”

Vai valer tudo, como afirma JMFernandes a propósito dos seus empregadores, falando do outro. Estes discursos são eficazes como uma pianola com apenas duas teclas para revelar a essência da música que vai ser tocada: a do ataque ao homem – que no discurso da luta de fações é sempre acusado de traidor, de renegado, de ambicioso, de pôr em causa o ideal. O renegado Vilar (da fação do PCP-ml de Heduíno Vilar), o renegado Saldanha (de Saldanha Sanches do MRPP e agora o renegado Pereira, de Garcia Pereira); segundo, a tecla da conquista e da tomada do poder, do papel do “partido” e da sua direcção – o papel das vanguardas, ou das elites, neste caso.

Subjacente aos artigos, a toda a literatura de combate de Fátima Bonifácio e de JMFernandes, está a questão central do marxismo-leninismo e da variante do maoismo: a “linha justa”. Acusam Costa de ter afastado o PS da “linha justa”, a da aliança com o PSD/CDS. A acusação de  desvio, de aburguesamento (a sede de poder e o desejo de andar de carro preto com motorista) é recorrente em toda a guerrilha ideológica e comunicacional dos PC-ml de onde provêem Fátima Bonifácio e JMFernandes e lembra aos mais velhos a disputa entre a fação Vilar e a fação Mendes de 1975, que hoje nos parece caricata, mas faz de coisa séria nestas novas embalagens.

Foucault, o filósofo francês, escreveu uma obra sobre estas estratégias a que deu o apropriado título: “ Vigiar e punir”. Althusser reflectiu na teoria geral da ideologia sobre técnicas de subversão daquilo que designou como aparelhos ideológicos de Estado. Os atuais mercenários ideológicos do Observador seguem a cartilha de concentrar o fogo num inimigo personalizado e bem identificado, um Outro, um Sujeito, Único e absoluto. Elegeram António Costa. Para Althusser, e para estes espúrios seguidores, toda a ideologia tem um centro, um lugar único ocupado pelo sujeito Absoluto, que é necessário endeusar, em certos casos – fase do culto da personalidade – ou diabolizar – fase da negação e da dessacralização (desestalinização, por exemplo). Nesta concepção, a ideologia deve garantir quatro objectivos, e esses constam dos artigos de Fátima Bonifácio e de JMFernandes:

a) a interpelação – Costa é interpelado por não ter feito o que era esperado;

b) a submissão ao Sujeito – Costa é zurzido, acusado de traidor, de renegado, de ter destruído o partido por não se ter sujeitado à norma;

c) o reconhecimento entre os sujeitos e o Sujeito, e entre os próprios sujeitos, os outros membros do grupo – leia-se “arco da governação”; donos disto tudo, leia-se empresários e banqueiros do regime – não reconhecem Costa e esforçam-se para causar a zizânia, a revolta entre os membros do próprio PS, vejam-se os louvores a Beleza, a Assis, a Maria de Belém;

d) a segurança absoluta de que tudo andava bem no modo em que vinha andando e que assim deveria e deverá continuar, desde que os sujeitos se conduzam em conformidade (Amén).

A estratégia de subversão da direita contra o governo de Costa assenta nestes quatro pontos.

Tal como na guerra de alecrim e manjerona que Arnaldo de Matos e Garcia Pereira travam à força de insultos e difamações no Luta Popular pela liderança do MRPP, vai valer tudo na guerra on line declarada no seu Observador pela direita do compromisso Portugal contra uma alternativa de governo que lhe ofende as rendas certas e os negócios de privilégio.

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