Uma tentativa de golpe de Estado moderno sob a égide da União Europeia na Itália a 4 de Dezembro de 2016 – O desastre Italiano por Perry Anderson VII

Selecção de Júlio Marques Mota

Uma tentativa de golpe de Estado moderno sob a égide da União Europeia na Itália a 4 de Dezembro de 2016

O desastre Italiano

Perry Anderson at the Frontiers of Thought conference, Porto Alegre, Brazil, 2013
Perry Anderson

Perry Anderson, The Italian Disaster, London Review of Books

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(continuação)

Neste momento, ele está na maior. Desde há vinte anos, os descendentes do comunismo italiano procuraram em vão o que ele com um aperto de mão a Berlusconi obteve num par de semanas. Para o PD, como para os seus antecessores, o problema em cada eleição na Itália é a presença, representação permitida pelo sistema eleitoral, de rivais bem menores à sua esquerda, ou – mas com menor dor de cabeça – de aliados um pouco à sua direita. Se ao menos o partido desejasse ardentemente poder eliminar tais concorrentes com uma segunda volta ao estilo francês, em que depois de um show sobre a proporcionalidade na primeira volta , a vitória por maioria simples seria obtida na segunda volta, ele entraria sem entraves no seu meio natural como um partido do governo de centro-esquerda num sistema político limitado seguramente a ele mesmo e ao seu homólogo do centro-direita. Isto sempre permaneceu fora do seu alcance, em parte devido à relutância natural dos partidos ameaçados pela impotência ou pela extinção sob tal sistema, para o votar no Parlamento. Foi também – mais criticamente – porque Berlusconi, embora muitas vezes fazendo um barulho semelhante, só não foi melhor do que o centro-esquerda a segurar uma ampla coligação de forças atrás dele com menos ganhos eleitorais, devido a uma redução drástica no número destas mesmas forças, mas em que também era necessário o apoio de uma força em particular, a liga do Norte, que tem uma identidade forte e base organizada e que não poderia ser facilmente obrigada a uma Gleichschaltung do tipo da prevista pelos antigos comunistas.

Uma representação justa da opinião política na Itália, uma característica da primeira República, tinha sido lançada no acto fundador da segunda. Mas os sistemas eleitorais híbridos instalados posteriormente não foram satisfatórios para ninguém. Destes, o Porcellum foi amplamente considerado como o pior de todos eles. Napolitano, uma vez firmemente montado na sua sela ultra presidencial, pressionou o Parlamento para acabar com isso. Tal como o partido ao qual ele outrora pertenceu e pelas mesmas razões, não era nenhum segredo que Napolitano achava que uma segunda volta era o sistema ideal. O resultado da eleição de 2013 e o clamor do impasse institucional que se seguiu, desencadeou muitos apelos para uma reforma eleitoral – durante anos o rei Charles à frente dos media – cada vez mais altos e mais urgentes. Esta era a situação quando na primeira semana de Dezembro do ano passado o Tribunal Constitucional longamente considerou o Porcellum inconstitucional, por dois motivos. O prémio de uma maioria absoluta atribuído ao partido com maior número de votos, não importa se muitos se poucos, era uma distorção da vontade democrática. As listas fechadas, apresentadas por cada uma das partes, a fixação dos seus candidatos numa hierarquia de importância de cada distrito eleitoral, negava aos eleitores a liberdade de escolha na selecção dos seus representantes.

A decisão do Tribunal veio como um calafrio repentino para o PD. Se era permitido manter as coisas como estavam, as próximas eleições deveriam desenrolar-se num sistema proporcional, sem nenhuma compensação, e os eleitores poderiam seleccionar e escolher entre os candidatos da lista por eles preferida – repugnante para todos os senhores do Partido, como estando a enfraquecer-lhes o poder sobre as suas tropas. Um tal cenário era o que o PD mais razões tinha para temer.. Era vital bani-lo, portanto.

Providencialmente, o homem para conseguir isto tinha chegado. Cinco dias depois da decisão do Tribunal, Renzi assumiu a direcção do PD. Em apenas umas poucas sessões feitas à pressa e à porta fechada, Renzi e Berlusconi, cada um apoiado por um assessor com especialização técnica – o cientista político Roberto D’Alimonte, há muito tempo na Universidade de Florença, como assessor de Renzi; para Berlusconi o seu assessor florentino Verdini,– estabeleceram um acordo para dividir o bolo eleitoral entre eles. Juntos poderiam apresentar no Parlamento um sistema concebido para lhes garantir a maior parte da representação política no futuro.

Depois de pequenas alterações, as disposições da lei para entrar em vigor dariam um prémio de 15 por cento dos assentos na Câmara para qualquer partido que alcançasse 37 por cento ou mais, na primeira volta , com um limite máximo de 55 por cento dos assentos; e se nenhum dos partidos atingisse 37 por cento, um total de 52 por cento dos assentos seria para o partido com a maior votação na primeira volta e que viesse à frente na segunda volta. Em cada distrito eleitoral, de que haveria muitos mais, ainda haveria listas fechadas dos partidos, mas estas seriam mais curtas – três a seis candidatos – tornando mais fácil para os eleitores escolher entre eles. O objectivo deste regime era o de contornar as objecções do Tribunal face ao Porcellum, especificando um limite abaixo do qual o prémio não desceria, preservando assim a essência do Porcellum – uma flagrante distorção da opinião eleitoral, enganando com um gesto simbólico a possibilidade de maior liberdade de escolha entre candidatos. Limando o texto – grandiosamente intitulado o Italicum pelos seus arquitectos; apelidado de Renzusconi pelos seus críticos – ter-se-ia uma maior segurança contra as tentações desgarradas entre o eleitorado. Três limites separados para a representação política de todos os tipos foram estabelecidos: um partido que se apresentasse por si-próprio, sozinho, teria que ter mais de 8 por cento para ganhar um qualquer lugar que seja, um partido em coligação precisa apenas de 4,5 por cento e uma qualquer coligação precisaria de 12 por cento.

O pacto entre os dois líderes, no entanto, também estipulava que o Senado seria oportunamente abolido como um órgão eleito tout court, dando lugar a um assembleia com muito menos poder e constituída por notáveis regionais – com efeito uma folha de figueira a esconder que se trata de um sistema com uma só Câmara . Mas enquanto um novo sistema eleitoral pode ser aprovado por uma maioria simples nas duas Câmaras, a Câmara alta não pode ser modificada sem se alterar a Constituição italiana. Letta tinha tentado curto-circuitar os procedimentos para tal objectivo mas tinha falhado. O artigo 138 da Constituição permanece em vigor, inquebrável: estabelece que as alterações à Constituição exigem duas deliberações sucessivas por cada Câmara , com um intervalo não inferior a três meses entre elas, e na segunda ocasião as alterações devem obter a aprovação da maioria absoluta em cada Câmara e devem então ser sujeitas a um referendo popular, no prazo de três meses após a sua publicação, se um quinto dos membros de qualquer Câmara , ou meio milhão de cidadãos, o pedir – uma disposição que somente uma maioria de dois terços em ambas as Câmaras pode evitar, o que não tem actualmente nenhuma chance. A lei eleitoral poderia ser apressada e apresentada numa questão de dias. A abolição do Senado levaria pelo menos um ano, com a certeza de um referendo, no final do processo.

A falta de sincronia entre os dois processos permitiu que os partidos menores da coligação de centro-esquerda governante e uma minoria no próprio PD colocassem um pequeno travão nas rodas do vagão em movimento chamado Renzusconi. Se a lei eleitoral passasse como proposto, abrangendo ambas as Câmaras antes do Senado ser abolido, não haveria nada para impedir Renzi de querer uma eleição de urgência, sem demora, em que os partidos menores seriam destruídos e a parte do PD cuja fidelidade tinha sido dada a Bersani ou d’Alema, sobre cujos corpos ele tinha ganho o poder, seriam igualmente arrasada. Mas se isto estava confinado à Câmara, enquanto o longo processo para alterar a Constituição de modo a conseguir abolir o Senado estava a decorrer, haveria pelo menos a possibilidade de decorrer um ano antes destes grupos enfrentassem os camiões pesados e, neste intervalo, algo poderia acontecer que os salvasse. Embora diminuindo em número, enquanto os adversários antigos começaram a aglomerar-se em torno do novo líder, os calafrios de uma minoria no interior do PD não poderiam ser completamente ignorados. Durante a noite, o novo sistema eleitoral foi restrito à Câmara, impedindo-se eficazmente o recurso às urnas até que o Senado fosse derrubado, uma vez que este último iria ser eleito pelo Porcellum, agora limpo do prémio e das listas fechadas, tudo isto a garantir um resultado assimétrico com o da Câmara, como em 2013

O cálculo de Renzi em alcançar o seu pacto com Berlusconi foi duplo. Ele tinha um objectivo a curto prazo. Para garantir um acordo tão fundamental com o maior partido de oposição ao governo, ele mostrou que Letta era agora irrelevante e poderia ser destituído sem mais delongas. De importância muito maior e mais duradoura foi a clara vantagem que o acordo concedeu ao PD, permitindo-lhe mover-se muito mais para o centro, invadindo assim o eleitorado de Berlusconi, sem ter de temer prejuízos à sua esquerda. A eleição em duas voltas tinha sido o seu Santo Graal: o partido tinha-o agora conseguido.

Com Renzi de longe muito à frente nas sondagens de opinião, porque aceitou Berlusconi um acordo de que ele tinha tão pouco para ganhar e senão tudo, tinha muito certamente a perder? Três circunstâncias o terão empurrado no sentido desta armadilha. Desde a desgraça de Umberto Bossi, a liga do Norte – que, no passado, sempre tinha sido sempre necessária para ganhar uma eleição, e por razões óbvias vetaria um acordo deste tipo – estava em claro eclipse. Berlusconi contou que poderia agora descartar-se dela. Além disso, ele era agora um criminoso condenado, proibido de ocupar cargos políticos por dois e talvez por mais anos, que tentou e não conseguiu derrubar o governo, com o custo de uma cisão no seu partido. Ao selar um pacto com Renzi para transformar o sistema eleitoral e o constitucional, ele próprio poderia regressar ao centro da vida política, não só independentemente das sentenças judiciais contra ele, mas na esperança de que poderia ser adequadamente compensado pelo seu serviço desinteressado a favor da Itália, como um estadista responsável por ter estes conjunto de serviços. Alguns dos elementos do pacote legislativo, reforçariam os poderes do executivo em detrimento do legislativo eram, aliás, todos aqueles que ele próprio defendeu muitas vezes, mesmo se nunca bem sucedido em alcançar estes objectivos. Ele podia sentir-se com direito a uma quota-parte da inspiração do acordo alcançado e a ser convenientemente recompensado como co-arquitecto de uma nova e melhor ordem política.

Por último, e criticamente desde a primavera de 2012, quando o torniquete do Ministério da justiça começou a fechar-se à sua volta, o julgamento político de Berlusconi tinha-se tornado cada vez mais errático. Retirado do poder por Napolitano, sem nunca se tornar plenamente consciente do que lhe tinha acontecido, Berlusconi tornou-se cada vez mais distante dos seus assessores mais experientes, envolvendo-se com um par de semi-alfabetizadas dançarinas do Sul, uma delas a sua companheira actual, e é desde aí que se começaram a disparar sobre ele os tiros do seu partido, para além do seu poodle e de um indescritível jornalista de televisão. Ilusões que seria fácil limpar, com o Norte claramente desligado da Liga, e escapar mais ou menos impune às sentenças contra ele, ilusões estas que foram criadas neste bunker de combinações, de orquestrações políticas. Mesmo Verdini, arriscando o exílio de Arcore, dava sinais de desânimo. Nestas condições Renzi, vendo como Berlusconi estava enfraquecido poderia, basicamente, ditar as linhas gerais de um acordo favorável ao PD.

A manipulação dos sistemas eleitorais para maquilhar os resultados não é nenhuma raridade nas democracias liberais: se há alguma coisa, esta até é a regra e não a excepção. Na Inglaterra e na América, os sistemas maioritários na primeira volta datam dos acordos pré-modernos de uma sociedade hierarquizada dominada por uma classe aristocrata constituída pelos mais ricos e poderosos, ainda com muito das suas origens feudais, em que poucas eleições foram mesmo contestadas. No início do século XVII, apenas 5 a 6 por cento dos círculos eleitorais tinham mais de um candidato; até mesmo no Longo Parlamento, não havia mais do que 15 por cento. A sua manutenção nos tempos modernos expressa o peso da natureza da democracia anglo-saxónica. A quinta República em França e na Espanha, a monarquia restaurada oferece outros exemplos familiares de sistemas eleitorais manipulados para manter de fora a concorrência indesejável da esquerda. Na Itália, o regime oligárquico que se seguiu ao Risorgimento – em 1909, o eleitorado foi de 3 milhões numa população de 33 milhões – dava um ar de um sistema maioritário à primeira volta modificado, a partir do modelo da Inglaterra. Depois da primeira guerra mundial, o sufrágio universal masculino e a representação proporcional apareceram em simultâneo, como complementos lógicos da democratização. O fascismo, não menos logicamente, anulou esta última com a lei de Acerbo. Quando a democracia foi restaurada após a segunda guerra mundial, a Constituição italiana que saiu da resistência foi projectada para impedir qualquer retorno ao regime autoritário. Na primeira República, uma Presidência honorífica de poderes estritamente limitados, duas Câmaras legislativas, de peso igual, o primeiro-ministro sem poder para demitir ministros, segredo no voto parlamentar aquando de aprovação de leis, referendos populares sob petição de cidadãos – e representação proporcional – tudo isto veio em conjunto.

Com a segunda República, esta configuração começou a ficar anormalmente distorcida para os dois lados, acima e abaixo. Distorcida para baixo, com a representação proporcional primeiramente a ser reduzida para não ser mais do que um resíduo do sistema eleitoral e, em seguida, abolida completamente com a introdução de um prémio na mesma linha do sistema Acerbo. Distorcida para cima, com a Presidência a tornar-se eventualmente o centro do poder mais poderoso na terra, a fazer e a desfazer os governos. Com o segundo pacto estabelecido entre Renzi e Berlusconi ir-se-á introduzir a Terceira República, concentrando o poder no executivo e reduzindo a possibilidade de escolha do eleitor muito mais drasticamente. Por qualquer padrão que a questão seja analisada, o novo sistema eleitoral, que passou sua primeira audiência, é um monstrum . Não contente com um prémio, premiando o vencedor quase que em metade dos votos, quase tantos lugares de prémio como pelos votos dos eleitores recebidos, vai ainda mais longe até do que o conseguido pelo regime de Mussolini nos obstáculos que coloca no caminho de qualquer partido menor ou coligação poder garantir um qualquer assento que seja. Nas palavras do advogado Aldo Bozzi – actuando como um cidadão privado – cujo reclamação acabou por receber um veredicto do Tribunal Constitucional contra o Porcellum, o Renzusconi é um Super-Porcellum. Mesmo D’Alimonte, um dos seus próprios arquitectos, tem-se questionado publicamente sobre se os seus limites são constitucionais.

(continua)

Uma tentativa de golpe de Estado moderno sob a égide da União Europeia na Itália a 4 de Dezembro de 2016 – O desastre Italiano por Perry Anderson VI

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