O MAPA (A saga do anadel/44) – O debuxante de mapas -por Carlos Loures

Estabeleceu, à falta de melhor, conversa com o desenhador de cartas. Num ambiente hostil como aquele, uma amizade, por mais precária que fosse, tornava-se numa jóia preciosa. Em todo o caso, quando o andaluz se calou, ficando à espera de que o português lhe contasse a sua história, foi parco de explicações, dizendo que, sendo um simples trabalhador do porto de rio, fora preso devido a uma rixa numa taverna e levado directamente da prisão para bordo. Julián comentara que era um consabido negócio de meirinhos esse, o de venderem presos aos comandantes de navios. Que isso não ocorria apenas em Lisboa. As prisões eram, em todos os portos, uma fonte de braços robustos para os navios que a eles aportassem. Assentiu a este comentário que credibilizava a sua história, mas olhando a pouca corpulência do andaluz, pensou que, para o terem escolhido, em Sevilha as prisões deviam estar naquela cidade muito mal providas de gente robusta. Eram cerca de seis da manhã. O sol de Verão ia subindo no céu, tingindo de vermelho o Ocidente. Vendo que o português não acabava de comer o biscoito e que o segurava olhando a paisagem, Julián avisou-o:

– Só ao meio-dia receberemos comida. Come o teu biscoito ou guarda bem o que te ficar, senão os outros vão roubar-to mal te distraias. Aqui não há piedade. Cada um procura sobreviver. Com essa tarefa já temos preocupação que baste.

No início do século XV, Veneza empreendeu a conquista de novos territórios em «Terra Firme», consolidando o domínio ao longo das rotas terrestres através dos Alpes e das comunicações fluviais com a Lombardia, rotas importantes para o seu trânsito mercantil. Utilizando exércitos na sua maior parte formados por mercenários, foi anexando a marca de Treviso, em 1339, o Paduano, em 1405, e, após três guerras contra Milão, Brescia e Bérgamo, entre os anos de 1426 e de 1429, Crema, em 1454, e, finalmente, Cremona, em 1499. Quando começou o novo século, a República possuía em redor das suas doze ilhotas iniciais, territórios como os de Izonzo, e do Adriático ao Adda e dos Alpes ao Pó. A inicial confederação de cidades da laguna, constituída com fins defensivos, convertera-se agora numa forte potência continental. Quando os Turcos conquistaram Constantinopla, em 1453, Veneza, que não se prendia com escrúpulos de natureza religiosa ou de fidelidade ao Ocidente cristão, negociou com o Império Otomano, embora não tenha podido evitar, entre 1464 e 1479, uma guerra contra os Turcos que lhe custou a perda de Eubeia e de diversas praças do Peloponeso. Conservou, no entanto, os seus privilégios comerciais a troco de um avultado tributo pago à Sublime Porta. Pôde também, mercê da sua capacidade diplomática, instalar-se, a partir de 1489, em Chipre.

Veneza conhecera já dias melhores e um dos factores para o seu declínio eram os descobrimentos portugueses e castelhanos, sobretudo os nossos, abrindo rotas alternativas às do Mediterrâneo. As relações entre Portugal e Veneza, que quase não existiam até ao início das navegações, foram marcadas quase sempre por um clima de conflitualidade. A abertura da rota do Cabo não podia deixar de afectar o monopólio que Veneza detivera até então sobre o tráfico de especiarias e de outros produtos vindos do Oriente. Até então, dominara esse comércio, revendendo as mercadorias nos principais portos europeus. A possibilidade de transportar os produtos da Índia por mar, poupando os demorados e acidentados trajectos das caravanas, bem como onerosos e múltiplos tributos alfandegários, permitindo que as mercadorias chegassem aos destinos a preços mais competitivos, não podia deixar de originar uma grave crise entre Veneza e Portugal.

Veneza, porém, nunca descurava a vertente diplomática. Ao mesmo tempo que espiava e por vezes preparava expedições militares, nunca deixava de negociar acordos e tratados. Em 1392, quando reinava o Mestre de Avis e governava Veneza o doge Antonio Venier, fora assinado pacto de colaboração comercial entre os dois estados. Ambas as partes beneficiavam com este acordo: os navios venezianos podiam aportar a Lisboa sem pagar a dízima, ou seja, a décima parte do valor das mercadorias transportadas, a menos que essas mercadorias se destinassem a ser vendidas em território português, cláusula que constituía grande privilégio para os comerciantes da República. Portugal beneficiava da experiência de Veneza nas artes de viajar e de mercadejar. Pilotos, astrónomos, debuxantes, geógrafos, artífices, comerciantes de Veneza, passaram a circular com frequência em Lisboa, beneficiando quase todos de bom acolhimento e alguns de protecção por parte da Corte. Foi o caso de Alvise Ca’da Mosto que, em 1456, em nome da Coroa de Portugal, atingiu a foz do rio Geba, na Guiné.

Vieram navegadores e debuxantes venezianos – à mistura com maiorquinos, catalães, castelhanos, genoveses. Em Veneza, a arte de desenhar cartas foi acompanhando o avanço das navegações, narrando em planisférios, mapas e cartas portulanas o descobrimento de novas terras. As relações entre os dois estados nem eram más. O pior estava para vir, pois as navegações iam tornando inúteis as rotas terrestres usadas pelas caravanas, mudando as regras de um jogo que parecia eterno. Sob a capa diplomática, as coisas foram azedando. Entraram então em cena os espias. Na pelagem do nosso cão, as pulgas iam sempre aumentando.

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