Uma Análise das forças geradoras do tsunami económico e social presente a partir do seu epicentro, os Estados Unidos – Introdução geral aos textos II a VII: Uma economia subjugada. (Parte A)

Selecção de Júlio Marques Mota

Revisão de Francisco Tavares

Uma Análise das forças geradoras do tsunami económico e social presente a partir do seu epicentro, os Estados Unidos

Uma série de 8 textos

TEXTO II –Introdução geral aos textos II a VII: Uma economia subjugada (Parte A)

Os nossos recentes textos conduziram-nos a examinar a lenta erosão dos rendimentos dos 80% da população americana de menores rendimentos, os chamados low 80. Esta análise foi a ocasião de mostrar que o alargamento das desigualdades de rendimento nos EUA se concretizou sobre todas as categorias de rendimentos – com exceção das transferências sociais.

Salário, propriedade direta do capital produtivo, juros e dividendos servidos pelo capital financeiro, mais-valias sobre venda de ativos contribuem para o alargamento das desigualdades de rendimento.

Também constatámos que as quotas-partes de rendimento captadas são tanto mais fortes quanto mais nas suas formas se afastam do salário para revestirem a forma de um capital produtivo ou financeiro. Quanto mais este capital é abstrato e isolado das condições de produção, mais as partes de rendimento captadas são importantes. Para o enriquecimento da parte superior da pirâmide social, a posse de uma empresa é preferível à posse dos seus instrumentos por um artesão; a posse de um capital portador de dividendos ou de juros é mais interessante que a detenção de toda ou [eliminar em] parte de uma empresa. Do mesmo modo, a detenção de grandes patrimónios – móveis ou imóveis – permite embolsar as mais elevadas mais-valias.

O sistema americano oferece efetivamente um prémio ao detentor de capital, mas este prémio põe claramente em evidência a diferença entre a dinâmica de enriquecimento produtivo e o papel essencial dos rendimentos do capital-dinheiro. As formas imediatas de detenção do capital (propriedade direta do capital produtivo) cedem em importância face a formas mediatas (ações, detenção de colocações financeiras) e, mais ainda, em face da alienação de ativos – produtivos, móveis, propriedades.

Esta hierarquia é lógica numa economia patrimonializada, onde a dimensão dos patrimónios determina as partes de rendimentos captadas (juros ou dividendos) e as partes dos ativos alienados (MVVA mais valias por venda de ativos). Aplica-se também à detenção direta das empresas que geram rendimentos mistos (proprietor income).

Neste jogo de polarização dos rendimentos, também mostrámos que a parte dos 20 por cento dos contribuintes de mais elevados rendimentos devia ser objecto de uma análise mais precisa. Parece com efeito que a população dos 20% de topo deixou de ser um conjunto homogéneo que beneficia da polarização geral dos rendimentos a favor do topo da escala social. Desde a crise do milénio, as classes médias superiores (decis 80 e 90 ) alinharam-se sobre a evolução da maioria da população : perderam quotas-partes de rendimento e deixam de estar a ganhar com os frutos do crescimento.

Estimámos a divisão efectiva do rendimento em 60% para os contribuintes que constituem os 20% de topo e em 40% para a restante população, o low 80 %, durante a primeira década do século XXI . Parece pois que a divisão do rendimento desde os anos 2000 impõe que se proponha uma demarcação clara entre os 90% da população de menos rendimentos, os Low 90, e a população do top 10% que tira bem as suas castanhas do lume. É uma novidade.

Esta oposição nítida supõe que examinemos agora os top 10. A anatomia deste último conjunto não consiste em simplesmente estar a detalhar as suas componentes. Consiste em estudar como é que as suas componentes nos informam sobre a organização do empobrecimento relativo de 90% dos americanos que vêem lentamente a fechar‑se‑lhes a porta do aumento consequente do seu rendimento. Se nos detivermos nos dados do IRS, trata-se de explicar como é que foi possível criar na realidade tais formas de desigualdades crescentes de distribuição.

As análises das desigualdades – pensamos em Piketty ou Stiglitz – satisfazem-se em fazer a constatação do aumento das desigualdades sem estar a entrar no detalhe dos mecanismos de produção económica que as geram e sustentam. O essencial é preparar uma grande reforma fiscal (Piketty) ou uma reactivação keynesiana da economia (Stiglitz). Os mecanismos de aprofundamento das desigualdades mostram que querer promover tais reformas, é saltar à pés juntos por cima de uma realidade que torna as reformas impossíveis de acontecer. As desigualdades estão demasiado enquistadas no crescimento patrimonial, inigualitário e desequilibrado, para poder encontrar uma correcção na intervenção cidadã ou na política. A esse respeito a política de imobilismo dos EUA desde a crise não tem nada de acidental, traduz simplesmente as relações de classes que se viraram a favor de uma minoria reduzida dos Americanos.

Tínhamos esboçado esta problemática constatando que a transferência relativamente rápida da parte de rendimento e do volume de rendimento – expresso em preços constantes ou em preços correntes- não se podia explicar unicamente pelos efeitos do mercado mas sim por uma organização voluntária da distribuição desigual do rendimento. É pois uma vontade socialmente identificada de que falamos aqui. E não se trata de examinar os quadros macroeconómicos, mas de penetrar no interior de lógicas distintas que permitem que as desigualdades de rendimento se aprofundem. Esta mudança de orientação como veremos nos artigos seguintes é sensível. Resumimos os limites dos nossos textos anteriores e esboçamos o interesse dos dados para esclarecer os desafios desta mudança de orientação.

 

A –Resumo das nossas análises anteriores

1° Estabilidade da repartição do rendimento nacional

1

TR1 Todd

A análise do rendimento das pessoas nos EUA não nos coloca sobre a pista da lógica de captação de rendimentos que se está a verificar. Numa perspetiva de longo prazo, é necessário notar que a baixa dos custos do trabalho tem correlação com um aumento dos lucros distribuídos, dos rendimentos dos empresários e dos rendimentos dos alugueres dos alojamentos detidos por particulares. Os juros não desempenharam nenhum papel sobre a fraca progressão dos custos do trabalho: os juros baixaram .

O que resulta das evoluções quantitativas das componentes do rendimento não permite compreender as evoluções da sua distribuição efetiva entre os americanos. Além disso esta evolução não parece verdadeiramente marcada por uma polarização dos rendimentos a favor da parte mais alta da escala social.

2

A análise das componentes do rendimento, expressas em percentagem, contradiz uma ideia intuitiva: ou seja, as quotas- partes de rendimentos do capital aumentam muito fortemente para enriquecer os detentores de capital. Na realidade, os custos do trabalho têm permanecido durante muito tempo estáveis (1970-2000), estes não deixam os rendimentos do capital afirmarem-se (Rendimento mistos, Lucros, alugueres) senão depois dos anos 2000.

Não há nestas evoluções vestígios fortes do papel das formas do capital no aumento das desigualdades.

 

2° O papel dos patrimónios

De facto as formas do capital só podem operar se é só se forem cruzadas com a concentração crescente dos patrimónios a favor do topo da escala social. É com efeito esta concentração dos patrimónios que torna possível a captação de partes crescentes de rendimentos e de PVCA [mais valias pela venda de ativos] pelos 10% das famílias de topo da escala social.

Frequentemente analisa-se a dinâmica patrimonial sublinhando que, no âmbito de uma divisão sempre mais desigual do rendimento, os patrimónios tinham várias funções.

Para os Americanos do low 80-90, os patrimónios imobiliários – largamente financiados pela dívida – permitem manter uma ilusão de riqueza largamente incentivada pelas políticas dos atores privados (refinanciamento dos créditos pela titularização privada e para-pública, emissões de créditos imobiliários com risco de tipo Alt A, de subprime com ou sem taxas variáveis) e dos atores públicos (uma larga tolerância do Tesouro e do FED às práticas de financiamento aventureiristas do conjunto da fileira imobiliária, taxas de juro à baixa, uma fiscalidade sobre as mais-valias por venda de ativos muito vantajosa).

Esta ilusão de enriquecimento acoplada às mais-valias por venda de ativos imobiliários estimula, por sua vez, um consumo tipo prego a fundo, isto é, a toda a velocidade mesmo sem se ter possibilidades imediatas, ou seja sem poupança. As famílias do decil 80-90 conservam por conseguinte um nível de consumo elevado que leva ao aumento dos créditos ao consumo, em parte sob garantia dos bens imobiliários.

Para as famílias do top 10, a inflação do valor dos activos financeiros e imobiliários é por sua vez a causa de um muito forte consumo. Os Americanos do top 10 beneficiam, na verdade, de um efeito de enriquecimento tanto maior quanto maiores forem os patrimónios financeiros e imobiliários que detenham.

O crescimento económico não pode senão ganhar com estes dois motores do consumo que fazem funcionar a economia americana efetivamente bem acima das suas capacidades reais de produção de riqueza. Há um sobrecrescimento que oculta a fraqueza essencial da economia americana desde há mais de uma década: o fraco crescimento do valor produzido por hora de trabalho realizada e o fraco valor per capita produzido nos serviços enquanto que a parte das produções de bens físicos do sector primário e do sector secundário, mais criadores de valor, não deixam de continuar a diminuir. O sobrecrescimento é a reação a esta fraqueza que deveria ter provocado uma forte redução do ritmo da economia americana depois da crise do milénio. A redução atual do ritmo de crescimento americano (+ ou – 2% por ano) não é a expressão de uma retoma que não chega a acelerar, é o estado normal de um crescimento que deixou de ter fortes capacidades de produção de riqueza e que perdeu os seus estímulos artificiais (endividamento generalizado, fornecimento de poupança estrangeira que reequilibra a balança dos pagamentos, forte dinâmica dos patrimónios hoje inflacionados pela política do FED).

A economia americana soube evitar a armadilha da redução do ritmo geral desde os anos Clinton porque a prerrogativa dólar tornou possível a aplicação de um modelo de crescimento aberrante: o consumo excessivo das famílias arrastou consigo um défice crescente da balança dos pagamentos, o refinanciamento da balança dos pagamentos pelos fluxos líquidos de capitais (entrada menos saída de capitais) forneceu a poupança nacionalmente disponível (poupança nacional + poupança importada). O sistema financeiro (bolsa + mercado dos créditos e de dívidas) pôde assim sustentar uma dívida massiva de que a causa final é a lógica de extracção de valor feita pelas famílias mais ricas. Nós voltaremos a este tema quando mostrarmos como é que eles se tornaram credores estruturais.

 

3° O mecanismo de transferências que respeita os equilíbrios de repartição do rendimento nacional

Os patrimónios concentrados a favor do alto da pirâmide social reclamaram partes crescentes de juros e de dividendos. Para resistir a esta pressão, as empresas anónimas financeiras e as não-financeiras tiveram que se endividar para conseguirem uma dupla acumulação de capital: a acumulação de capital produtivo foi à mínima, a acumulação de capital financeiro visou limitar a pressão dos detentores de ações e capital dinheiro que lhes foi emprestado que se traduz em aumento dos juros e dividendos líquidos servidos pelas empresas anónimas. Foi do mesmo modo para as empresas na mão de proprietários a titulo individual, estas compensaram a pressão dos rendimentos mistos por uma acumulação financeira de menor amplitude que a das sociedades anónimas.

As famílias do grupo dos 80% de menos rendimentos, as famílias do Low 80, que não dispõem de activos financeiros, tiveram que [eliminar se] endividar-se cada vez mais para poderem permanecer na corrida ao património imobiliário. Fazendo assim, pagaram juros líquidos tanto mais elevados quanto estas mesmas famílias detêm muitíssimo pouco património financeiro sólido (aplicação financeira a mais de um ou dois anos). Por conseguinte, este enorme grupo de famílias, o low 80, transferiu rendimentos – via pagamento de juros imobiliários – a favor do topo da escala social cujo endividamento é mais fraco. A concentração dos dividendos a favor do topo da escala não deixou grande coisa de dividendos recebidos pelos restantes 80% dos americanos que detêm muito pouco capital.

Esta fonte dos patrimónios revela-se também um logro para os detentores de ativos estrangeiros: a balança dos JLD (Juros, lucros, dividendos) esteve sempre a favor dos EUA, os detentores estrangeiros de ativos sempre reinvestiram sob a forma de compra de ativos os juros e dividendos recebidos em solo americano [ou em solo dos EUA]. Os JLD líquidos terão assim e muito paradoxalmente, enriquecido os americanos mais ricos: uma balança negativa dos JLD teria implicado transferência de volumes de juros, de dividendos e de lucros; os JLD recebidos pelos Americanos teriam, neste último caso, estado ao nível nacional mais fraco.

Temos demonstrado longamente que o modelo de crescimento patrimonializado beneficiava essencialmente uma fração reduzida da população que tinha posto em prática este mesmo modelo para seu próprio interesse. Este resumo sucinto permite retomar o fio à meada.

 

 

4° O lugar do sistema produtivo

O sistema produtivo – forma específica do património de um país – pode por sua vez ser compreendido no âmbito duma luta das classes em torno da repartição do rendimento e do investimento. A sub-acumulação crónica de capital nos EUA (1967-1992) e a baixa da taxa de lucro – mais antiga – aparecem com efeito compatíveis com a criação nacional de valor sob o constrangimento da distribuição inigualitária do rendimento (1977-1992) até ao momento de viragem decisivo dos anos 90.

Depois desta data, esta sub-acumulação ameaçava a economia americana de uma redução forte do ritmo de crescimento e do rendimento que teria tornado infinitamente mais dura a distribuição do rendimento sobre um fundo de redução geral do ritmo de crescimento. A partir de 1993 a re-acumulação do capital afastou este obstáculo reintroduzindo uma utilização mais intensiva dos meios de produção. Este regresso a um crescimento intensivo teve por efeito uma paragem na mobilização da população em idade de trabalhar que, sobre o fundo de baixa do valor produzido por hora e per capita nos serviços, deveria ter tido como efeito uma redução do ritmo do crescimento.

O estímulo patrimonial – adquirido ao preço de um endividamento colectiva nacional e internacional crescente – teve como efeito puxar o crescimento para cima e dissimular o enfraquecimento das bases produtivas do crescimento americano. A manutenção a um nível elevado da mobilização da mão-de-obra americana foi o produto do sobre‑crescimento da economia americana

 

5° A crise inevitável

Este sobre-crescimento apoiado em numerosos desequilíbrios só poderia acabar num acidente financeiro crucial: a crise “dita de subprimes” que é com efeito a reversão de um modelo de crescimento patrimonializado e desequilibrado: a produção de valor real foi sempre superior à capacidade de produção real, os desequilíbrios de distribuição não podiam aguentar as corridas ao património, o financiamento do sistema de crédito não dispunha de uma poupança suficiente – com ou sem o reforço da poupança importada – para ter as rédeas suficientemente sólidas, a política do crédito exacerbava as contradições e os desequilíbrios económicos e sociais da sociedade americana. A crise pôs um fim a este forte crescimento e ao pleno emprego. Este último não voltará mais, somente os jornalistas complacentes podem negligenciar o facto de que a baixa da taxa de desemprego americana se explica pela entrada diferida dos jovens na população activa e por uma baixa geral do crescimento da população activa que faz cair a taxa de actividade da população americana.

(continua)

Crescimento desigual e políticas sociais, uma análise de base preliminar

 

1 Comment

Leave a Reply