Lá falarem de paz, o papa e os bispos do mundo católico falam. Mas o que depois vem, de ano para ano, é cada vez mais guerra, feita de inúmeras guerras. Ninguém, nenhum povo conhece a paz. Todos conhecemos-sofremos a guerra. Não apenas a das armas do passado, mas, sobretudo, a guerra financeira global. Precisamente, a que hoje mais mata. Tanto ou mais do que uma guerra nuclear de que continuamos a ter medo, sem darmos conta de que a guerra financeira mata mais do que uma guerra nuclear. Só não vemos o sangue a correr pelas ruas das grandes cidades. A não ser quando os que insistimos em chamar “terroristas” – nunca chamamos assim aos chefes dos grandes Estados do mundo – fintam os milhares de polícias e de militares armados e atiram camiões-bomba contra multidões mergulhadas em festejos públicos, como quem quer dar a impressão de que vivemos no melhor dos mundos. Não vivemos. A guerra financeira global é contínua, por mais que insistamos em enterrar a cabeça na areia e fazer de conta que são de paz os dias que vivemos. São de guerra. Contínua guerra!
Nem o papa nem os bispos vêem a realidade e por isso continuam a cumprir esquizofrenicamente o seu calendário litúrgico e a presidir aos rituais da praxe eclesiástica e cristã. Sem quererem saber para nada da realidade actual. E se no dia primeiro de cada ano falam todos à uma de paz, é só porque o papa Paulo VI, em 1968, se lembrou de instituir para toda a igreja católica o Dia Mundial da Paz. Só que a paz dos papas e dos bispos reduz-se a pura retórica, a vazios discursos, a meras doutrinas, nenhumas práticas políticas maiêuticas, ao jeito das de Jesus, o filho de Maria. As suas são vidas estéreis, tipo jarrões de flores de cores garridas, com predomínio do vermelho. E as homilias das suas missas ritualizadas e envenenadas, em cada novo dia mundial, deixam a impressão de que basta falar muito de paz, para ela acontecer. Não acontece. Só guerra e mais guerra.
Ao contrário dos papas e dos bispos residenciais, Jesus, o filho de Maria, tem o cuidado de sublinhar que a paz que dá a todos os povos das nações não é como o mundo a dá. Refere-se, obviamente, ao mundo dos sistemas de poder, no qual cada bispo diocesano, cada pároco e cada pastor de igreja estão incluídos. São todos parte do “mundo” que vitimiza os povos das nações. Esse mesmo mundo que não acolhe Jesus nem o seu Evangelho. Porque o ser-viver dele é estruturalmente de guerra, não de paz; é de poder, não de amor maiêutico; é de riqueza acumulada-concentrada, não de partilha; é de pirâmide, não de vasos comunicantes. Pelos frutos de alienação e de submissão que os seus seres-viveres históricos produzem, em tudo iguais aos dos chamados grandes das nações, é manifesto que também eles integram o mesmo mundo do poder, não o mundo dos povos, suas vítimas. Os palácios episcopais, a começar pelos do papa e dos cardeais da Cúria romana e a acabar no da diocese mais desconhecida do planeta, não enganam. Os respectivos inquilinos são em tudo iguais a Trump, dos EUA, a Putin, da Rússia, a Xi Jinping, da China, a António Guterres, o novo secretário-geral da ONU. A paz de que todos falam é exclusivamente a das armas, a pior das quais, é aquela que adoece e mata não só o corpo dos povos, mas sobretudo a alma-identidade e a mente-consciência de cada qual. E faz deles robots. Coisas. Mercadorias. Carne-para-canhão. Mão-de-obra-barata.
Recordo o Dia Mundial da Paz de 1968, precisamente o primeiro que assim se chamou, por decisão, como já sublinhei, do papa Paulo VI. Nesse remoto Hoje, encontro-me, como capelão militar à força, em Mansoa, a 60 kms de Bissau, a capital da Guiné, então ainda colónia portuguesa. Na altura. em luta armada de libertação pela sua própria autonomia e independência políticas. Obrigado pelo Poder do Estado português a integrar o Batalhão 1912, cabe-me, como presbítero da igreja do Porto, viver-anunciar, também aí, o Evangelho da Paz, essa paz que o mundo do Poder, desde o eclesiástico-religioso ao financeiro, não tem e não conhece e por isso não pode dar. Tenho perfeita consciência de que integro o Batalhão, mas não sou dele. Por mais que ele se dane. Sou presbítero da igreja do Porto. Cabe-me, por isso, praticar-anunciar, também nesse dia, o Evangelho da Paz, aquela que Jesus, o filho de Maria, nos dá e que o mundo do poder não conhece, não tem, não pode dar.
Podia, como faz nesse mesmo dia o papa Paulo VI e, com ele, (quase) todos os bispos residenciais e párocos do mundo, tecer inócuas e eruditas considerações sobre a paz, sem nunca aterrar na realidade, na altura, o sofrido e roubado continente africano. Podia. Traia a minha missão presbiteral para que nasci e vim ao mundo, mas não tinha quaisquer problemas com o Estado e os seus três ramos das Forças Armadas. Pelo contrário, seria até louvado pelo comandante do Batalhão. Mas a verdade é que não me deixo seduzir nem cair na tentação. Muito menos, me deixo tolher pelo Medo. A homilia que preparo por escrito e que digo pausadamente na celebração viva a que presido na igreja da Missão, ali mesmo ao lado da sede do quartel cercado de arame farpado, não se limita a dizer doutrina. Também a diz, mas lá onde o politicamente correcto me aconselha-ordena a ter de parar, eu decido dar os passos em frente necessários para não trair o Evangelho nem a minha própria consciência. E formulo um manancial de Perguntas, fecunda e politicamente subversivas, como sempre acontece com a Verdade praticada. Um exemplo: Para haver paz, tem de ser respeitado o direito-aspiração dos povos colonizados à sua autonomia e independência. Pergunto: estamos aqui como exército armado para ajudar a concretizar este direito-aspiração do povo guineense, ou para o impedir?
As perguntas deixam o meu comandante, sentado a pouco mais de um metro de distância de mim, manifestamente incomodado-perturbado. Cabe-lhe, como a mim próprio, escutar aquela Palavra e praticá-la, se ambos queremos verdadeiramente a paz, fruto da Verdade e da Justiça praticadas. Mas dos dois, com responsabilidades acrescidas no Batalhão, só eu me manifesto comprometido com a concretização da paz. O estatuto dele é o de militar profissional. Vive, mai-la sua família, do que lhe pagam mensalmente para fazer a guerra. É um mercenário legal, institucional. Ao passo que eu, como presbítero da igreja do Porto, sou, procuro ser, presença viva e activa de paz, a que Jesus nos dá. Resultado: Esse 1 de Janeiro de 1968 é o primeiro dia do resto da minha vida de presbítero, definitivamente confirmado na missão de Evangelizar os pobres e os povos. Acabo expulso do Exército, embora sem qualquer julgamento no tribunal militar. E com o rótulo de “padre irrecuperável”, atribuído pelo próprio Bispo castrense, D. António dos Reis Rodrigues, outro mercenário-mor, ao nível eclesiástico, do Poder político de turno. Foram por isso de guerra interior até à morte o resto dos dias deste bispo castrense. Enquanto todos os meus dias têm sido de crescente paz, aquela paz que o mundo, também o eclesiástico-cristão, não conhece, não tem e por isso não pode dar. E que feliz eu sou, apesar de odiado, denegrido, ostracizado por muitas, muitos, que estão no mundo e são dele. Ao contrário de mim que estou no mundo, mas recuso-me a ser dele. Tomara que todos os bispos e presbíteros fossem também assim. Infelizmente, a maioria prefere estar no mundo e ser dele. Melhor fora, por isso, que lhes atassem a mó de um moinho ao pescoço e os lançassem ao mar (Mt 18, 6-7). Não seriam mais ocasião de tropeço-escândalo para os povos que neles confiam, só porque sempre se lhes apresentam como pastores, quando na verdade são os piores dos mercenários. Acordemos, irmãs, irmãos! Acordemos!
Este texto procura, sem o conseguir, meter tudo no mesmo saco, para concluir que “eles” são todos iguais. Chega a acusar o papa de não querer ver a realidade. Embora haja algo de verdade em alguns pontos do texto, é o seu autor que se recusa a ver alguns factos. Nomeadamente, este papa é o único chefe de estado que tem tido a ousadia de atacar de frente a fonte do mal, denunciando sem reservas os impactos destrutivos do capitalismo selvagem na humanidade e no ambiente e apelando à paz.
Alegar que Trump é igual a Putin, é outro absurdo. Quem pretende há muito conquistar e manter a hegemonia no mundo a qualquer preço são os EUA que mantém tropas em mais de 100 países. Obama fica na história como o presidente que mais armamento tem vendido. Os EUA e seus aliados vassalos têm invadido e destruído uma série interminável de países. As acções russas estão infinitamente longe de tudo isto. A Rússia só entrou na Síria após o conflito entrar no 5º ano de guerra, quando já lá estavam todos os outros actores a esventrar o país e a assaltar os seus recursos. Isto diz algo sobre o alegado” imperialismo russo”. Dizer que é tudo o mesmo é pactuar activamente com aqueles que, esses sim, pretendem lançar poeira para os olhos do povo, apoiados pelos seus exércitos de obedientes jornalistas.
Vamos fazer o jogo desses ou vamos desmascará-los?
Eu já fiz a minha escolha, e vocês?
Não esbanjámos …. Não pagamos