CRISE DA DEMOCRACIA, CRISE DA POLÍTICA, CRISE DA ECONOMIA: O OLHAR DE ALGUNS ANALISTAS NÃO NEOLIBERAIS – 3. FALHAS SÍSMICAS NA UNIÃO EUROPEIA (2ª PARTE), por DOMENICO MARIO NUTI

 

Selecção e tradução por Júlio Marques Mota. Revisão de Joaquim Feio. 

Falhas sísmicas na União Europeia – 2ª PARTE

SEISMIC FAULTS IN THE EUROPEAN UNION[1]

Domenico Mario NUTI[2]

Transition, 8 de Janeiro de 2017

(continuação)

3) Migrações.

No princípio de 2016 Roubini escreveu: “Aqueles que argumentam que a crise das migrações levanta igualmente uma ameaça existencial para a Europa têm razão. Mas a questão não é os milhões de recém-chegados que entraram na Europa em 2015. São os 20 milhões mais que são deslocados, desesperados e que procuram escapar à violência, à guerra civil, ao falhanço do Estado, à desertificação e ao colapso económico em importantes partes do Médio Oriente e da África. ”De facto os anos de 2014-16 viram uma aceleração do afluxo de emigrantes na UE, não somente do Médio Oriente e da África mas igualmente dos Balcãs e do Sudeste Asiático. Em 2016, os emigrantes na UE aproximaram-se de 2 milhões, em 2017 a Comissão Europeia espera que se acelere a afluência para mais de 3 milhões. A OCDE (2016) fornece dados e previsões estatísticas e uma análise excelente, mas as suas recomendações de política são totalmente inúteis, assentes em melhores condições de vida nos países de origem (o que poderia efetivamente ter sido eficaz se tivesse sido feito há 20-25 anos atrás), investindo na integração nos países de acolhimentos (sem indicar onde é que os recursos necessários poderiam ser obtidos), e estabelecendo alegados benefícios mútuos com as migrações enquanto se negligencia os seus inconvenientes.

Os refugiados fugindo de guerras e das perseguições têm direito ao asilo (Art. 13, Declaração Universal dos Direitos Humanos, ONU-1948), mas a maioria dos migrantes são economicamente motivados e, ao contrário dos refugiados, ao seu direito de migrar não está associada uma correspondente obrigação de qualquer país baseada no Direito Internacional, para os receber. Em teoria, os migrantes de “países seguros” quanto à sua origem ou de chegada não têm direito à proteção que têm os refugiados algures, mas não há na EU, e sem falar já da ONU, nenhuma lista oficial dos países seguros e as práticas são internacionalmente muito diferentes. O Tratado de Dublin, segundo o qual o primeiro país de chegada da UE é o país responsável por identificar e receber os refugiados, tem colocado um fardo injusto sobre países vizinhos dos pontos de acesso, como a Itália e a Grécia. A identificação dos migrantes tem sido comparada indevidamente à imagem de marca dos prisioneiros de campos de concentração e a uma violação dos direitos humanos.

Em setembro de 2015 o Conselho de Justiça e Assuntos Internos da UE adotou duas decisões para recolocar 160000 requerentes de asilo a partir da Itália e da Grécia, para os ajudar a lidar com as pressões da crise dos refugiados. O ponto da situação, um ano mais tarde, a 6 de dezembro de 2016, foi a recolocação de 8162 pessoas, ou 5,1% do objetivo; os países de Visegrado (República Checa, Hungria, Polónia, Eslováquia) e a Roménia recusarem participar neste esquema. Dentro do espaço Schengen a recolocação é necessariamente ineficaz de qualquer maneira, porque os emigrantes poderão sempre deslocar-se para o país da sua preferência – a menos que os países ponham em prática um sistema de registo da população e autorizações de residência obrigatórias para estrangeiros, e tenham uma burocracia suficientemente eficaz para a poder aplicar.

Sem dúvida, as migrações – tal como toda e qualquer outra manifestação da globalização – permite um ganho líquido em termos de bem-estar. Num mundo sem fronteiras o ganho líquido das migrações foi calculado como variando num intervalo, com um máximo de 143,3% do PIB global (Hamilton e outros, 1984, certamente uma sobreavaliação, além disso agora desatualizada) a um valor mínimo situado entre 7% e 17.9%, um valor bem mais baixo mas ainda assim, um valor significativo. (Docquier e outros, 2012). Mas há perdas brutas também aqui envolvidas: perdas dos trabalhadores dos países de acolhimento, especialmente se de baixo nível de competências e perdas dos empresários dos países de origem. Estas perdas são consideradas serem mais baixas do que os ganhos da globalização envolvidos, crescentes para os migrantes, para os trabalhadores que permaneceram em casa, para os empregadores no país de acolhimento; para os consumidores de todas as categorias por tirarem proveito dos mais baixos preços que se passam a verificar pelo aumento da concorrência. Os benefícios da globalização não podem porém ser mobilizados para sobrecompensar os perdedores, para fazer com que todos fiquem em melhor situação, porque as transferências dos ganhadores para os perdedores teriam que ser internacionais (o que é pouco prático) e/ou dos pobres para os ricos (o que é indesejável; ver Nuti, 2009).

A mobilidade do trabalho na UE, conjuntamente com salários flexíveis e um maior orçamento (ver o ponto 6 abaixo), é a condição prévia para se verificar a existência de uma zona monetária ótima. Contudo, na presença de barreiras culturais e linguísticas significativas, tais como as que existem através da Europa, as migrações do trabalho têm efeitos perversos para os países mais fracos porque se trata de mão-de-obra relativamente mais especializada: “As diferenças regionais na formação ou na educação podem auto perpetuar-se porque os indivíduos com maior formação e de mais competências são os que têm maior tendência a migrarem das zonas ou regiões deprimidas.” (Akkoyuniu e Vickerman 2001); “As migrações de trabalhadores altamente formados e qualificados… [farão] então aumentar as disparidades regionais em vez de as diminuírem. ” (Fatas 1998)[1].

As migrações envolvem igualmente a diluição do capital social (seja este visto como a infraestrutura social física, ou como os benefícios totais fornecidos pelo Estado Providência ou ainda como a base social e a sua coesão) e a sua apropriação livre é globalmente completamente protegida. Esta é uma contradição insustentável: não se pode ter o comunismo global para o capital social e ao mesmo tempo o capitalismo globalmente sem restrições para a propriedade privada.

Além disso, todos os benefícios do enriquecimento cultural podem ser neutralizados por perdas de empobrecimento cultural. Aqui a falha sísmica é uma divisão Leste-Ocidente, que causou o colapso de área Schengen e a construção de muros: 175km de arame farpado em aço, 4m de altura, entre a Hungria e a Sérvia, concluído em setembro de 2015; a barreira entre a Macedónia e a Grécia, concluído em março de 2016; uma parede de 4m de altura, construída em Munique, em novembro de 2016 para separar a população local do acampamento dos migrantes; a “grande muralha” construída em 3 meses para impedir os migrantes de atravessarem o canal da Mancha entrando ilegalmente nos camiões a caminho de Dover: betão armado de 1km, 4m de altura, a um custo de €2, 7 milhões pagos pela Grã-Bretanha, para completar a vedação de arame farpado em aço erguida para impedir o acesso ao porto de Calais. As paredes podem dar má aparência e serem desagradáveis, mas aos países membros de Schengen é-lhes realmente requerido que as ergam pelo art. 17 do Acordo: “Em matéria de circulação de pessoas, as partes esforçar-se-ão por abolir os controlos nas fronteiras comuns e transferi-los para as suas fronteiras externas… e tomarem medidas complementares para garantir a segurança interna e impedir a imigração ilegal por nacionais dos Estados que não são membros das Comunidades Europeias.” De facto um país como a Grécia, incapaz de satisfazer esta obrigação devido às condições de crise dramática, é responsabilizada e repreendida pela Comissão Europeia por não conseguir controlar as suas fronteiras (BBC, 2016).

A oposição às migrações é considerada como um fator importante na disseminação recente do populismo, mas é o próprio conceito de populismo que deve ser reconsiderado. O populismo inclui hoje protestos apoiados por partidos diversos e por membros de diversas classes sociais contra a reintrodução de pobreza, do desemprego em massa, de fracos serviços públicos em sociedades estáveis e acima de tudo, contra todas as perdas provocadas pela globalização e pelas migrações. A globalização excedeu “os limites das instituições que regulam, estabilizam e legitimam os mercados. A híper globalização no comércio e nas finanças, destinada a criar mercados mundiais perfeitamente integrados, desfez as sociedades nacionais” (Rodrik 2016). Tais protestos, ampliados pela incapacidade de gerar uma identidade europeia (especialmente evidente no referendo do Reino Unido onde a afirmação da “soberania nacional” foi um fator importante) são hoje parte integrante da democracia e já não merece nem o desprezo nem a demonização (do tipo expressa por Nuti, 2011). Uma redefinição do populismo é também necessária para a difusão das tecnologias da informação e para uma rápida conectividade entre as pessoas na vida quotidiana (e-mail, media sociais, blogging, acesso em massa à fuga de informações de documentos oficiais e a análises de especialidade, etc.)

4) Austeridade

As regras de Maastricht sobre os limites dos défices orçamentais e da dívida pública (respetivamente 3% e 60% do PIB ou da convergência suficientemente rápida para aqueles limites), o Pacto de Estabilidade e Crescimento e o Fiscal Compact (capítulo específico da Tratado de Estabilidade Orçamental que regula as disposições orçamentais a seguir) condenaram os Estados-membros à aplicação de políticas orçamentais pro-cíclicas, que nos países do Sul os conduziu à situação de recessão prolongada e ao desemprego de massas, criando uma divisão Norte-Sul.

As anteriores reivindicações de uma possível “consolidação orçamental expansionista (Giavazzi-Pagano, 1990, 1996; Alesina-Perotti 1995; Alesina-Ardagna-Trebbi, 2005) foi contestado pelo departamento da pesquisa do FMI (Blanchard e Leigh, 2012 e por uma literatura revista por Nuti, 2013) e está agora a ser abandonada pelos seus próprios proponentes. Foi e é agora bem claro que durante todo o período de 1970-2009 o FMI e outras organizações internacionais tinham subestimado os multiplicadores orçamentais em países da UE e da OCDE situados então à volta de 0,5 em média e que recalculados agora nos indicam multiplicadores na ordem de 1,7 (o argumento é conduzido em termos de valores médios internacionais, mas os multiplicadores orçamentais dependem em parte da dimensão económica do país: os pequenos países dependentes do comércio externo têm multiplicadores menores do que os países maiores, devido ao efeito de fugas). Esta revisão à alta dos multiplicadores está justificada pela eficácia reduzida da expansão monetária já com as taxas de juro perto de zero, pela falta de possibilidades para a desvalorização da taxa de câmbio especialmente na zona Euro, por uma grande diferença entre o rendimento potencial e o atual (os multiplicadores são mais altos em recessão quando as fugas externas são mais baixas do que quando se está em crescimento) e pela consolidação que ocorreu em simultâneo em diversos países. Também, o multiplicador orçamental para os cortes na despesa, contrariamente às expectativas, expressa-se por ser 10 vezes mais elevado do que o efeito gerado por uma consolidação feita pelo aumento de impostos.

Segue que a consolidação fiscal é muito mais intensa em termos da perda do PIB do que se acreditava anteriormente. Pior ainda, pode-se mostrar que, partindo de um equilíbrio orçamental hipotético, uma consolidação orçamental (os aumentos do imposto mais os cortes na despesa pública) conduzirá sempre necessariamente a um aumento em vez de uma diminuição da relação dívida pública /PIB, no que diz respeito ao que essa relação seria de outra maneira, tanto quanto o multiplicador orçamental é maior que a relação de PIB / Divida Pública do país[2]. Deste modo a consolidação orçamental funciona somente nos países com uma baixa relação Dívida Pública/PIB, que não precisam de nenhuma consolidação (Nuti, 2013b, veja-se igualmente Stuckler e Basu[3] 2013

Um argumento adicional para a austeridade foi apresentado por Reinhardt e Rogoff (2010), que defendiam que a existência de uma relação Dívida Pública/PIB acima de 90% retarda o crescimento económico significativamente[4]; uma tal argumentação igualmente foi evidenciada como sendo desprovida de sentido e falsa pelo FMI.

A austeridade pode igualmente assumir a forma de políticas salariais restritivas que conduzem a grandes excedentes comerciais que bloqueiam o crescimento nos países que não seguem o modelo (e então têm défices nas balanças comerciais e acumulam dívidas externas) assim como enfraquecem o crescimento nos países que aplicam políticas de contenção salarial. É por esta razão que tais políticas são sujeitas a uma coordenação europeia, embora tenham sido levadas a cabo unilateralmente e consequentemente de forma ilegal pela Alemanha com a desvalorização interna de Schroeder-Hartz, e pela Áustria (Bagnai 2012, 2013). “Na prática, a política conduzida à custa do enfraquecimento económico de outros países (beggar thy neighbour policy).” é igualmente uma política de fracos resultados para quem a aplica “, ‘a beggar-thyself policy” (Laski and Podkaminer, 2011;  2012, 2013).

A evidência teórica e empírica que as políticas de austeridade eram realmente ineficazes não fez nenhuma diferença à prática europeia. O anterior primeiro-ministro italiano, Matteo Renzi, prometeu fazer a Europa “mudar de direção” mas perversamente a sua política levou à obtenção de elevados excedentes primários (imediatamente a seguir à Dinamarca e mais elevados que na Alemanha) e reduziu o ritmo de crescimento da dívida, atualmente a inverter-se no terceiro trimestre de 2016.

(continua)

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[1]

Veja também Fratesi e Riggi, 2004. “As assimetrias económicas crescentes dentro da União Europeia têm posto em causa a capacidade da mobilidade do trabalho para atuar como um amortecedor dos choques no seio da UE. Ao passo que a livre circulação de trabalhadores na UE foi estabelecida há mais de 40 anos, a taxa de mobilidade no seio da UE tem permanecido relativamente baixa quando comparada com outras regiões de livre mobilidade tais como EUA, Canadá e Austrália. Enquanto a emigração vinda da periferia tem aumentado significativamente desde 2008, em termos absolutos o nível dos fluxos de mobilidade desta região continua a ser extremamente limitado.” (Holland e Paluchowski 2013).

[2] Seja D=Dívida Pública, Y=PIB, d=D/Y (inicialmente d=0) e considere-se uma consolidação orçamental em que x=aumento de impostos mais cortes na despesa pública, expresso este valor em percentagem do PIB, seja ΔD=-xY, ΔY= -mxY, onde m é o multiplicador orçamental. Temos então:

 = -x Y2 + mxY D = -x + mxD = mxd – x

   Y2   Y2     Y2

ou seja, Δ (D/Y) = x (md – 1) = x d (m – 1/d)

Desta expressão é imediatamente visível que o rácio D/Y deve crescer, isto é,

 Δ(D/Y) >0 se e só se m>1/d. Q.E.D. Veja-se Nuti 2013b.

[3] A Rússia é provavelmente uma exceção, precisamente por causa de um baixo multiplicador orçamental devido aos constrangimentos da oferta e aos severos constrangimentos sobre as finanças devido às sanções.

[4] Com base numa nova base de dados de quarenta e quatro países abrangendo cerca de duzentos anos, incorporando “mais de 3.700 observações anuais cobrindo uma ampla gama de sistemas políticos, instituições, regimes de taxa de câmbio e circunstâncias históricas”, Reinhart e Rogoff descobriram que “a relação entre a dívida pública e crescimento real do PIB é fraca para rácios de dívida/PIB abaixo de um limiar de 90 por cento do PIB. Acima de 90%, as taxas de crescimento médio caem por um por cento, e crescimento médio cai consideravelmente mais.”

Vários críticos imediatamente apontaram que a causalidade estava condicionada a funcionar na direção oposta, mas a crítica arrasadora para a o dogma de dívida/PIB acima de 90% veio de Herndon e outros (2013), que replicaram a análise usando os dados originais. Descobriram que Reinhart-Rogoff excluíam seletivamente dados disponíveis para várias nações aliadas — Canadá, Nova Zelândia e Austrália — que saíram da segunda guerra mundial com uma dívida elevada, mas, que, no entanto, apresentavam um crescimento sólido. E as estatísticas de síntese foram todas igualmente ponderadas independentemente do alto nível de endividamento e da prestação em matéria de crescimento. Herndon e outros (2013) concluíram que “quando calculados devidamente a taxa média efetiva de crescimento do PIB para países que tinham um rácio dívida publica / PIB de mais de 90% é na verdade de 2,2 por cento, e não de 0,1 por cento como foi publicado em Reinhart e Rogoff”. Verifica-se que “o crescimento médio do PIB perente rácios de dívida pública/PIB de mais de 90 por cento não é dramaticamente diferente do que quando o rácio dívida/PIB é mais baixo.”

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Texto disponível  em:

https://dmarionuti.blogspot.pt/2017/01/seismic-faults-in-european-union.html

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Para ler a Parte I deste trabalho de Domenico Mario Nuti, publicada ontem em A Viagem dos Argonautas, clique em:

CRISE DA DEMOCRACIA, CRISE DA POLÍTICA, CRISE DA ECONOMIA: O OLHAR DE ALGUNS ANALISTAS NÃO NEOLIBERAIS – 3. FALHAS SÍSMICAS NA UNIÃO EUROPEIA (1ª PARTE), por DOMENICO MARIO NUTI

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